quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Welcome to the jungle

Luísa Andrade de Jesus; sobrinha e nova musa, dia 22/02, seis horas depois de abrir os olhos pela primeira vez.

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

Cavando a própria cova;
ou A necrofilia de se ler apenas as capas dos livros

O homem saiu de casa para levar o cachorro para dar um passeio noturno no calçadão de Ipanema. Parou para beber um côco em um quiosque, e jogou a carcaça da fruta pro seu golden retriever. O cão atacava a casca com um gosto que fazia qualquer um ter vontade de imitá-lo.

Do arpoador, lá vinha uma senhora, acompanhando outros dois cães. Um deles era um labrador amarelo claro, de olhar afeito a toda sorte de peraltices; o outro... ninguém reparava no outro. Quando cruzaram o quiosque, o labrador peralta veio focinhar o golden retriver, que rapidamente se levantou, protegendo seu côco. O princípio de conflito rendeu ao cão safado uma jornalhada na orelha. Ele olha para a dona (mãe - diria ela), tentando entender o esporro:

- Pára com isso, Marley!

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Um parágrafo: O Casamento de Rachel (Rachel Getting Married)
De Jonathan Demme, 2008

É interessante que o título original de Rachel Getting Married fosse Dancing With Shiva, pois a música é, sem dúvida, o aspecto estético e político central nesse novo filme de Jonathan Demme. Como questão estética, por Demme trabalhar com essa câmera free jazz, com uma mise-en-scene que precisa ser redefinida o tempo todo, buscando os enquadramentos enquanto as situações se desenvolvem, mas antes que elas se percam completamente (resquício direto da incursão documental mais presente em sua carreira recente). Se, por um lado, essa opção estimula presenças cênicas bastante fortes (sendo a síntese aquele poodle gigante e deselegante que, ao contrário de seus donos, sempre interage com leveza com todos ao seu redor), por outro, revela a maior fraqueza do filme: a necessidade de se instaurar um elemento (Shiva, ou seja, Kym – personagem de Anne Hathaway) capaz de gerar constantes crises, fazendo do roteiro uma rubrica a um cinema que só existe se existir conflito – algo mais questionável pela banalização da idéia de conflito no roteiro de Jenny Lumet, e pela necessidade de se fechar um arco dramático, ao fim. A resposta eloquente, porém, vem da família do noivo – negros, amorosos e extremamente musicais (e dizer que isso não importa é, na verdade, fugir de uma questão que o filme propõe com muita clareza). Não faltam grandes exemplos – da presença segura e silenciosa de Sidney (Tunde Adebimpe, vocalista do TV On The Radio) ao primo militar que voltara temporariamente do Iraque com um sorriso irremovível em seu rosto – e o contraste entre essas estruturas familiares não é exatamente maniqueísta ou ingênuo, mas sim uma postura política. É interessante, portanto, que Jonathan Demme sublinhe essa musicalidade e, ao mesmo tempo, tente incorporá-la ao filme. Ao fim e ao cabo, O Casamento de Rachel é um filme sobre brancos aprendendo a dançar – seja literalmente (a ótima cena com a bateria de samba; a outra, com a máquina de lavar louças; a linda dança a quatro que ilustra esse parágrafo; o Neil Young no casamento), ou pela aceitação da imprevista irmã de cinza, e da chuva na hora do casamento; mas também pelo choro do bebê que perturba a cena, e que Jonathan Demme valoriza como uma interferência bem vinda e musical em seu próprio cinema.

domingo, fevereiro 15, 2009

2008 em 10 discos

10 – The Killers – Day & Age


Mais uma vez, começo minha lista de melhores com uma moderada decepção. Mas como poderia, eu, falar dos discos do ano sem passar pelo insolúvel quebra-cabeça de cinco peças que é Day & Age, terceiro álbum dos Killers? Pois, considerando os excessos (já que excluí-los seria matar a banda), quantas bandas recentes foram tão bem sucedidas usando como mote criativo a esquizofrenia completa de idades e influências, criando um rosto que é, ao mesmo tempo, moderninho e anacrônico; belo e repugnante; vagabundo e glamouroso; másculo e aviadado? Ouvir os discos do Killers é, em diversos momentos, como se aproximar demais de um rosto conservado jovem por sucessivas cirurgias plásticas - às vezes, você só consegue enxergar as cicatrizes.

É plenamente compreensível, portanto, o bloqueio de fãs de música bastante dedicados diante do Killers, pois a aproximação com a banda atravessa essa espinhosa parede de referências trabalhadas em chaves que as desmentem, muitas vezes neutralizando o exato valor que a banda foi buscar ali. Em Hot Fuss, o bonde do rock de garagem era projetado contra as bolas de espelho já enferrujadas dos anos 80, desnudando a nova pose de rebeldia em uma penteadeira de sintetizadores. Em Sam’s Town, a banda transformava a motivação épica das grandes bandas de rock de arena (Queen, U2, Bruce Springsteen) em um cabaré bolorento, onde os paetês já não tinham mais brilho algum, e as plumas eram substituídas por rabos de pombos mortos. De certa forma, a nobreza maior dos discos dos Killers está justamente nessa revelação da mágica como espetáculo; do épico como alegoria carnavalesca, mostrando o banquinho de madeira em que precisa subir o frontman para fingir que seus refrões são maiores que a vida. O rock é um espetáculo, mesmo em sua raiz mais espontânea, e o Killers simplesmente não compra o engodo; ao contrário, jogam-no, todo desmontado, no colo do ouvinte (o que faz da participação de Lou Reed em "Tranquilize" - tão polêmica à época - até mais coerente que as de Elton John e Neil Tennant em "Joseph, Better You Than Me").

Day & Age é ainda mais exigente, pois não pretende sequer a ilusão de foco: desde o primeiro momento, somos apresentados a combinações que não se encaixam, influências evocadas em cômodos em que elas não cabem, versos ridiculos entoados como verdades divinas. “Are we human, or are we dancer?”, pergunta Brandon Flowers em “Human”, segunda e melhor faixa de Day & Age. Mas não pergunta, somente; se põe de joelhos, como se a resposta trouxesse solução para os mais secretos mistérios da existência – e faz isso sobre camas de teclados datados, melodia roubada de alguma balada do U2, e batidão pra se entrar correndo em um programa do Celso Portiolli. E, do lado de cá, o ouvinte olha aquela cena um tanto embaraçosa, sem saber exatamente o que fazer com aquilo - dividido entre o riso de deboche e a compaixão que o faz querer andar até o pobre coitado do cantor, e limpar os joelhos de sua calça. Até que o céu se abre e, lá de cima, Deus responde com majestosa impostação: “Dancer”.

É preciso, portanto, se assumir como dançarino, pois o Killers abre a porta para um fim de mundo onde só se caminha em passo marcado. O desafio, para roqueiros emburrados como eu, é esse exercício de soltar a franga, de se deixar levar por essa onda ridícula e, por isso mesmo, maravilhosa. É aprender a cantar banalidades como se sua vida dependesse disso; de acessar o armário de influências sem um mínimo de organização ou método, pois é essa a paixão do desvario. É entrar em Las Vegas (terra da banda) e enxergar o cenário de Fundo do Coração. E, como o Harry Haler de O Lobo da Estepe, não só perceber que o mundo é uma venda e é melhor mesmo aprender a rebolar; mas também que estamos em um livro que, apesar de ter sido levado a sério demais desde sempre, nunca deixou de ser raso e vagabundo.

O Killers é esse minúsculo leviatã de cultura pop; essa inofensiva máquina ceifadora de rádios. Daí misturarem, em “Joyride”, funk de branco com percussões de salsa, sax de cassino e um refrão que faz lembrar as melhores coisas do Modest Mouse; ou, em “Spaceman”, começarem com um oh-oh-oh vexaminoso para, depois, culminar em refrão gigantesco, digno das maiores arenas de Springsteen. É um saco onde cabe tudo - da Cinderella white trash de “A Dustland Fairytale”, à lambada Disney de “I Can’t Stay” - que parece se resumir perfeitamente nos primeiros 30 segundos de “This Is Your Life”: abrir com uma paródia dos coros do Queen, cobri-la com um cravo sintetizado e, logo depois, chutar a porta com harmônicos de extraordinário bom gosto, carimbando a canção com a elegância silenciosa das guitarras de The Edge.

É justamente essa colagem de fragmentos que impressiona, pois os extrai de qualquer contexto, isolando-os em sua força (ou falta de) individual. Daí o falsete roubado do Bono funcionar lindamente em “Neon Tiger” (0:48 da canção), e a emulação de Bjork em “Goodnight, Travel Well” parecer tão despropositada. Pois a força da música do Killers nunca esteve no raciocínio sobre as estruturas musicais pop convencionais, mas sim por tratar a canção como a apropriação de pequenas manifestações, de sonoridades que produzem uma emoção que eles tentam, à sua maneira, reproduzir. Nesse sentido, Day & Age é, igualmente, o mais ousado e menos bem sucedido disco da banda, pois se torna inteiro justamente em sua fragmentação indiscriminada e esquizóide. É o retrato fascinante e imperfeito de uma banda que busca, com afinco cada vez maior, se tornar uma paródia de si mesmo.


For Dummies
Álbuns do Killers recomendados em ordem de interesse

Sam’s Town, 2006
Hot Fuss, 2004
Day & Age, 2008 (Download)

domingo, fevereiro 01, 2009

Fabito’s Way 2008 Mix – Last Chance to Dance!

Assim como em 2007, começo minha peregrinação pela memória musical mais ou menos recente disponibilizando a vocês, fiéis leitores, uma coletânea com alguns dos hits que mais bombaram por aqui. Como sempre, o fiscal do recorte é o AllMusic: todas as canções presentes nessa compilação são registradas no banco de dados do site como lançadas em 2008 (e dessa vez isso me garantiu ao menos uma boa trapaça). Vale sempre lembrar que nem todas são as minhas faixas favoritas em seus respectivos álbuns, pois a regra número 1 por aqui é a interação entre as canções, a fluidez do conjunto. E como eu sigo ouvindo alguns discos que passaram pro ano novo por debaixo da porta, é bastante provável que bandas ausentes nessa coletânea acabem aparecendo na minha listinha de melhores; na verdade, um disco que já segue seguro entre os 10 primeiros não teve faixa alguma pinçada aqui, simplesmente por nenhuma delas funcionar bem fora de contexto.

Esse ano, selecionei 23 canções (3 a mais que em 2007), mantendo o limite de 80 minutos (tá, passei 39 segundos, mas isso não deve ser problema) para os antiquados modernos queimarem em um cd. O arquivo completo – com capinha superindie, subtítulo hehehe e tudo mais – está disponível para download. Abaixo, o tracklist corrido, e depois o faixa-a-faixa detalhado que vocês já bem conhecem. Coloque os headphones aí, enquanto eu coloco os meus aqui, e escrevo sobre as canções enquanto elas vão rolando.

01 – Ryan Adams & The Cardinals – Crossed Out Name (2:43)
02 – T.V. On The Radio – Crying (4:10)
03 – The B-52’s – Hot Corner (3:24)
04 – Little Joy – Keep Me In Mind (2:22)
05 – Vampire Weekend – Mansard Roof (2:09)
06 – Supergrass – Rebel In You (4:41)
07 – Smoking Popes – If You Don’t Care (4:16)
08 – The Hold Steady – Sequestered In Memphis (3:32)
09 – R.E.M. – Supernatural Superserious (3:23)
10 – Drive-By Truckers – The Righteous Path (4:13)
11 – Bon Iver – Skinny Love (3:58)
12 – Elvis Costello & The Imposters – No Hiding Place (4:00)
13 – Cat Power – Silver Stallion (2:52)
14 – MGMT – Time to Pretend (4:25)
15 – The Killers – Human (4:06)
16 – Hot Chip – Ready For The Floor (3:52)
17 – Santogold – Lights Out (3:12)
18 – Cut Copy – Unforgettable Season (3:13)
19 – Frightened Rabbit – Good Arms Vs Bad Arms (5:07)
20 – Fleet Foxes – White Winter Hymnal (2:28)
21 – Billy Bragg – If You Ever Leave (3:00)
22 – The Decemberists – The Raincoat Song (2:22)
23 – Ron Sexsmith – Hard Time (3:11)


01 – Ryan Adams & The Cardinals - Crossed Out Name
de Cardinology

Ryan Adams pode continuar lançando um disco medíocre por ano, desde que em cada um deles exista algo do peso de “Crossed Out Name”. Cardinology talvez seja ainda mais fraco do que Easy Tiger (2007), e só um pouquinho melhor do que Love Is Hell (2004) e 29 (2006), mas traz na sétima faixa a melhor e mais sofrida canção gravada por Adams desde “My Winding Wheel”. É um bocado estranho começar qualquer coletânea com uma pedrada como essa, mas é fascinante como “Crossed Out Name” vai se esgueirando pelos ouvidos, crescendo nas beiradas menos prováveis, adicionando ao violão reto um pad que canta o vento, e um piano que marca o último refrão nas oitavas mais graves, como se uma mão pesada batesse à porta - um estranho que chega para tornar mais ambígua a solidão. Apesar de estar lá no meio do disco, acaba sendo um convite forte para qualquer coisa que a siga.

Nick Hornby uma vez publicou um artigo sobre “Oh My Sweet Carolina”, onde ele definia Ryan Adams dizendo: “Some people are at their best when they're miserable”. “Crossed Out Name” parece, como nenhuma de suas canções parecia desde Heartbreaker (nem mesmo “So Alive”), fruto dessa profunda e incontornável solidão. Embora seus ásperos sussurros do primeiro disco tenham se transformado em uma impostação aberta e anasalada, só a dor e o vazio podem gerar frases de simplicidade tão forte quanto “I wish I could tell you just how I’m hurt”, ou “For everything there is a word / for everything but this”. Palavra, talvez de fato não haja. Mas quando a sua ausência encontra a força de uma bela canção, o sentimento fica absolutamente cristalino.

02 – T.V. On The Radio – “Crying”
de Dear Science

Respeitando a dinâmica iniciada pela abertura em canção de mesmo tom, mas arejando sensivelmente o clima, “Crying” é o hit mais imediato do extraordinário Dear Science. É notável como a sofisticação dos arranjos do T.V. On The Radio (ótima banda para se ouvir com headphones) nunca distraem o ouvinte de seu gigantesco talento para canções plenamente radiofônicas. Ao contrário, a precisa economia de baixo e guitarras fazem chão para o empilhamento incessante de teclados, palmas eletrônicas e sintetizadores etomológicos, que culminam em contágio crescente com os metais após o último refrão. Deslizando pela dinâmica, as muitas vozes de Tunde Adebimpe – um mestre do double tracking – dançam na largura de seu registro, indo do grave profundo ao falsete em um mesmo verso, alcançando efeito especial quando ele harmoniza duas vozes cantando as mesmas notas, só em oitavas diferentes (um bom exemplo aos 1:55, e outro mais radical a partir de 2:45).

03 – The B-52’s – “Hot Corner”
de Funplex

Aproveitando o convite à pista de “Crying”, celebremos o retorno do B-52’s após 16 anos de férias, exibindo a mesma forma de sempre: discos meio chatos em sua cansativa dispersão, mas que sempre trazem ao menos um momento de brilho intenso e instantâneo. Em Funplex, é esse o caso de “Hot Corner”, canção de inspiração pop semelhante a “Legal Tender” e “Roam”, mas com sonoridade saudavelmente atualizada por toques de garage rock. Os ingredientes são confiabilíssimos: riff forte de guitarra que faz lembrar o de “Flores”, dos Titãs (que, por sua vez, foi roubado de alguma canção que eu nunca lembro qual é – e os comentários estão aí para quem se lembrar), Fred Schneider cantando feito boneco de ventríloquo, cowbell e pandeirolas pendurados no ventilador, e as inconfudíveis vozes de Kate Pierson e Cindy Wilson cantando coisas como “Shake it honey! shake! shake it honey!” e (minha favorita) “Shimmy shimmy! hot! shimmy shimmy!”. E, nessa fanfarronice toda, escrevem uma canção que vale as discografias do Hives e do Kaiser Chiefs somadas.

04 – Little Joy – “Keep Me In Mind”
de Little Joy

É, eu também não imaginava, mas o fato é que o disco de estréia do Little Joy – que tem show marcado no Circo Voador em 6 de Fevereiro – continua rodando firmemente por aqui. “Keep Me In Mind” não é a favorita (prefiro “Next Time Around”, "No One's Better Sake" e “Brand New Start”), mas melhor fazia a transição do B-52’s para a faixa seguinte. Além de ser no mesmo tom da canção anterior (recurso barato que eu nunca abro mão de usar - já foram duas vezes, em quatro canções), é a que mais parece uma colagem do melhor das duas bandas que geraram o Little Joy: guitarras picadas alternadas e bateria reta como no primoroso disco de estréia do Strokes, com um refrão que os Hermanos esqueceram de incluir no Ventura.

05 – Vampire Weekend – “Mansard Roof”
de Vampire Weekend

Em outra bela estréia, o Vampire Weekend assina umas cinco canções dignas desse espaço. “Mansard Roof” é a que abre o disco, e é um sambão torto, ensolarado e divertidíssimo. A bateria em frevo marcial que atravessa o metrônomo, o tamborilado teclado que parece música de roda gigante, as imagens tropicais da letra, a presença surpreendente do arranjo de cordas (que, a propósito, garante boa parte do charme do disco), o refrão instrumental com guitarra de palhetadas natalinas – tudo em “Mansard Roof” parece jovem e urgente, em uma viagem a jato que conecta terras de sabores, cores e sonoridades distantes. Faz lembrar as primeiras coisas dos Paralamas, só que sem a produção ruim e o reverb feio das guitarras. Talvez por isso, fazem uma boa ponte “brasileira” com o Little Joy.

06 – Supergrass – “Rebel In You”
de Diamond Hoo Ha

Lembro que o que mais me impressionou quando ouvi o Supergrass pela primeira vez, lá na época do I Should Coco (1995), foi o descompromisso latente com que a banda trabalhava todos os aspectos de suas canções: da execução precisa, mas extremamente livre de Danny Goffey (um dos herdeiros mais visíveis de Keith Moon), aos backing vocals no debochado falsete de Mickey Quinn, e, principalmente, a falta de pudor com que Gaz Combes se aproveitava de influências de anos muito anteriores aos seus, sem nunca sistematizá-las em excesso. Bandas que se sustentam pelo frescor correm, porém, o risco iminente de perderem a vida com a bonança da maturidade – algo que parecia inevitável pelas densas camadas de psicodelia que cobriam Road to Rouen (2005). Diamond Hoo Ha não é exemplo de íntegro rigor – há, sobretudo, um deslumbramento de Combes com seus pedais oitavadores que cansa logo na quarta ou quinta canção – mas “Rebel In You” resgata cores que a banda parecia decidida a não mais usar. Apesar do monocromatismo da capa, os ecos de Bowie da canção fazem lembrar das camisetas coloridas do clássico clipe de “Alright”. E, mesmo com todos os anos passados, eles ainda as vestem muito bem.

07 – Smoking Popes – “If You Don’t Care”
de Stay Down

O que acontece quando uma banda de pop punk destacada pela ousadia com que sempre desbravou cantos escuros das escalas musicais retorna, após 11 anos de sumiço, com uma canção de absoluta convencionalidade melódica? Se a banda for o Smoking Popes, a resposta vem com “If You Don’t Care”: eles escrevem a melhor música de sua carreira. Os três irmãos Caterer voltam ao mundo com a companhia de Neil Hennessy (baterista dos Lawrence Arms), mostrando que o desinteresse quase absoluto que eu desenvolvi pelo punk rock nos últimos anos só aguardava que uma grande banda lançasse um grande disco para ser quebrado novamente. Em Stay Down os Smoking Popes fazem tudo aquilo que sempre fizeram de melhor: canções de tranquila urgência, onde um baixo de notável bom gosto, guitarras cortantes e baterias desenfreadas aconchegam o vozeirão de Josh Caterer, sempre nos lembrando o porquê de eles serem a banda americana favorita do Morrissey. “If You Don’t Care” é o lindo primeiro single do ultra-ignorado Stay Down, e foi a canção que abriu o show da banda que vi (ao lado de umas outras 80 pessoas) em minha passagem por Nova York.

08 – The Hold Steady – “Sequestered In Memphis”
de Stay Positive

De todos os discos do Hold Steady, Stay Positive é o que mais traz à vista – a começar pelo título – as raízes punk da banda. Curiosamente, é nele que aparece a canção mais pop que Craig Finn e companhia já escreveram: “Sequestered In Memphis” tem riff forte de piano, guitarras roqueirérrimas dividindo as orelhas com o hammond (cada um pra um lado), sax quase Kid Abelha, e refrão tão fácil de cantar junto que a banda ainda volta a ele com palmas e coro antes de fechar. Mas, como sempre se deve esperar do Hold Steady, os fortes raios de sol encobrem apenas parcialmente um mundo de personagens fora de foco, de significados que se escondem nas sombras. A toda a alegria dos tons maiores, a letra (na verdade, um interrogatório policial) da canção ilumina imagens muito particulares, por um ponto de vista que raramente ganha tanta complexidade em canções pop. “In barlight, she looked alright / In daylight, she looked desperate”, canta a banda no pré-refrão. Barra pesada, mas que Craig Finn olha com honestidade tão apaixonada que dilui esses momentos nas contradições e banalidades de personagens absolutamente cotidianos.

09 – R.E.M. – “Supernatural Superserious”
de Accelerate

Considerando que as duas últimas grandes canções escritas pelo R.E.M. eram baladas (“At My Most Beautiful”, de Up, e “Imitation of Life”, de Reveal), é bastante surpreendente que o melhor momento de Accelerate seja um dos rockões mais furiosos da carreira da banda. “Supernatural Superserious” tem uma pegada fortíssima, com guitarras tão marcadas que lembram até Ramones, e um refrão que traz todo o drama registrado por Michael Stipe.

10 – Drive-By Truckers – “The Righteous Path”
de Brighter Than Creation’s Dark

Patterson Hood canta praticamente uma nota só durante toda a canção e isso diz tudo: é a tentativa de se manter “on the righteous path”. Letra e música se equivalem com uma precisão assustadora, e a entrega do Drive-By Trucks aos adornos que sustentam essa quase única nota é tão dedicada que mantém (as oscilações se devem ao "trying", do refrão), tranquilamente, a força durante os quatro minutos de “The Righteous Path”. No hi-hat que morde a baqueta, na pedal steel que desliza sobre as guitarras, na postura absurdamente roqueira que nunca quer ser roqueira demais (quantas canções tão rock têm guitarras tão leves? Quantas têm tão poucas viradas de bateria?) e em frases como “I don’t know God, but I fear his wrath”, os Drive-By Truckers sintetizam o espírito do sul dos EUA como poucos artistas já foram capazes.

11 – Bon Iver – “Skinny Love”
de For Emma, Forever Ago

Fico saltitante por o AllMusic não considerar a data original de lançamento de For Emma, Forever Ago, caso contrário, o Bon Iver seria a grande ausência de meus melhores de 2007. Graças ao relançamento oficial pela Jagjaguwar, pude incluir a linda “Skinny Love” nesse mix, fazendo justiça a um dos artistas que mais ouvi nesse ano. As comparações da voz de Justin Vernom com a de Adebimpe, do T.V. On The Radio, vêm não pelo timbre, mas pelo recurso de execução: ambos abusam de falsetes em double tracking, fazendo com que a voz perca sua textura mais reconhecível, parecendo mais uma teia, um tecido esburacado que tenta cobrir esse amor magricela, frágil, quebradiço. Acho impressionante como antes de cantar “And I told you to be patient”, no segundo refrão, Vernom acrescenta um compasso de pausa, como que exercitando a paciência que ele pediu no refrão anterior, e que não lhe foi concedida. Naqueles segundos de silêncio, de aparente hesitação, temos um dos mais fortes momentos da música em 2008.

12 – Elvis Costello & The Imposters – “No Hiding Place”
de Momofuku

O nome do disco parece coisa do Sérgio Mallandro, mas Costellão é sempre Costellão: “No Hiding Place” mostra que ninguém tem a capacidade dele de pegar uma canção de estrutura simples e, aos poucos, ir transformando-a a partir de suas bases mais sólidas. Isso pode vir na mudança do mi maior, do verso, para o menor, na ponte; na progressão perfeitamente executada para um improvável sol maior, no refrão; ou ao adicionar uma nova parte à canção quando ela já aparece terminada. Embora “No Hiding Place” prometa uma boa forma que Elvis Costello não consegue manter até o final de Momofuku, até mesmo seus discos menos firmes são incrustados de grandes soluções, e de um domínio absoluto das convenções da composição pop.

13 – Cat Power – “Silver Stallion”
de Jukebox

Se eu conseguisse congelar minhas primeiras impressões até as listas de melhores do ano ficarem prontas, Jukebox teria um lugar folgado na de 2008. Talvez tenha sido a empolgação com o belo placebo-não-Feist que ela ofereceu no Tim de 2007, ou a confirmação de que, apesar de ser boa compositora, Chan Marshall é uma interprete ainda mais interessante. Logo que saiu, o disco não parava de tocar por aqui. Mas com o tempo, Jukebox foi se cristalizando como o que realmente parece ser: um disco de covers bastante divertido em sua intenção de criar novos standards, mas não exatamente memorável em sua totalidade.

Não à toa, a única versão realmente brilhante é essa aqui: uma interpretação levemente sombria em voz e violão para “Silver Stallion”, rock à Dire Straits dos Highwaymen. A interpretação de Cat Power é mais do que superior à original: faz real o chavão “parece ter sido escrita para ela”. Isso porque quando a voz falha de Chan Marshall canta “I’m gonna find me a reckless man / Razorblades and ice in his eyes / Just a touch of sadness in his fingers / Thunder and lightning in his thighs”, as imagens ganham contornos de tocante delicadeza, como se ela imaginasse em voz alta o homem dos seus sonhos jovens. E para gerar essa impressão, a voz sussurrada de uma mulher é muito mais instigante do que a de um sujeito que masca as palavras como um punhado de tabaco.

14 – MGMT – “Time to Pretend”
de Oracular Spectacular

O show é uma chatice, o disco não é lá grande coisa, mas é questão de justiça: “Time to Pretend” é uma das canções mais bacanas do ano, e dá início à lasca mais dançante desse mix. O MGMT embarca em uma (boa) onda recente de revisitar o que havia de legal na música disco dos anos 1970, tirando aquela falsa alegria putrefata e focando na putaria, no desbunde da década que se escondia sob pantalonas brancas. “Time to Pretend” fala sobre casar com modelos e morrer cedo; mistura ABBA com cocaína, passado sem futuro, e, bom, dá uma puta vontade de dançar.

15 – The Killers – “Human”
de Day & Age

Are we human, or are we dancer?

16 – Hot Chip – “Ready for the Floor”
de Made In The Dark

Hit de pista absoluto de 2008, “Ready for the Floor” combina batidas tortas de electro, barulhinhos de tudo que é jeito, e um refrão digno dos melhores dias dos Pet Shop Boys. Além disso, é a melhor música já feita para se dançar imitando robô. Se isso é coisa que te apetece, claro.

17 – Santogold – “Lights Out”
de Santogold

Santogold é uma ex-A&R da indústria da música norte-americana que, um dia, decidiu já conhecer suficientemente bem o mercado para cavar seu espaço nele. O resultado é um disco extremamente diverso, em que Santogold muda de voz como muda de gênero (e de estampas, no clipe de “Lights Out”): vai do raggamuffin ao rock, passando por r&b, pancadões à M.I.A., e uma penca de gêneros bons pra pista. Nem sempre Santogold funciona por aqui, mas “Lights Out” é um deleite: com seus doces "aahs", parece uma versão synth pop para uma canção perdida dos Fastbacks.

18 – Cut Copy – “Unforgettable Season”
de In Ghost Colours

Outra feliz descoberta de 2008, o Cut Copy mistura tudo que de melhor foi feito na dance music durante as décadas de 1980 e 1990: baixo à New Order, passagens oníricas dignas de “Being Boring”, teclados ritmados que emulam Erasure, e até umas guitarrices tiradas do Jesus & Mary Chain. “Unforgettable Season” é a “Regret” de In Ghost Colours; canção em vibrante dó maior, com riff de guitarra insistente, imagens ensolaradas jogadas a esmo pela letra, uma linha de baixo marcante, e um refrão que o ouvinte já intui como será antes mesmo que se chegue a ele pela primeira vez.

19 – Frightened Rabbit – “Good Arms Vs. Bad Arms”
de The Midnight Organ Fight

O Frightened Rabbit era uma das bandas que apareceram na lista de melhores do Filipe no Roadrunner e na lista da Pitchfork, e que eu nunca nem tinha ouvido falar. O que imediatamente me chamou a atenção em The Midnight Organ Fight é como o vocal de Scott Hutchinson se parece com o de John Roderick, dos Long Winters. A diferença é que, antes de mergulharem no indie rock, os escoceses do Frightened Rabbit parecem ter passado bons anos ouvindo Death Cab For Cutie e Get Up Kids (basta ouvir “The Modern Leper”), enquanto o sr.Long Winters (um quarentão, ora bolas) escutava Neil Young e R.E.M. O resultado é tão estranho quanto a base da equação: apesar da semelhança, The Midnight Organ Fight é mais legal de se ouvir de cabo a rabo do que qualquer disco dos Long Winters. “Good Arms Vs. Bad Arms” vem cumprir a obrigatória cota de canções em compasso 3/4 nesse mix, sustentando o dó maior da canção anterior nos violões da introdução. É a transição mais bonita de toda a coletânea.

20 – Fleet Foxes – “White Winter Hymnal”
de Fleet Foxes

Quando estava programando minha viagem de férias, o nome Fleet Foxes se tornou familiar por me seguir em turnê de uma costa à outra nos EUA. Nunca tinha ouvido falar na banda, e esnobei solenemente suas apresentações. É claro que pouco depois eles despontariam como grande hype do ano e, pior, hype dos bons. “White Winter Hymnal” é canção que joga em uma mesma fogueira The Band, Beach Boys e Fleewood Mac, criando algo que parece brotar das cascas das árvores, do ar, das folhas secas, dos duendes, ou algo que o valha. É estranho, bonito e circular, dando aquela familiar impressão de estarmos diante de uma melodia que é tão velha quanto o mundo.

21 – Billy Bragg – “If You Ever Leave”
de Mr. Love and Justice

Talvez a ponte do Fleet Foxes para o Billy Bragg tenha vindo das imagens que encerram o comentário sobre a canção anterior: aquilo que parece sugerido nas entrelinhas de "White Winter Hymnal" se torna literal em Bragg, com menções ao sol, à praia, à tempestade, às marés, à costa, às estrelas. Tudo ao alcance do rapaz que, apesar do contato oferecido pelo mundo, diz “If you ever leave / there’s nothing for me here”. Mr. Love and Justice é incrivelmente forte nas primeiras audições, mas logo se desgasta em algum esquematismo, e uma certa previsibilidade. “If You Ever Leave” nada tem de surpreendente, mas prova que o cuidado da carpintaria de Bragg é capaz de gerar frutos muito impressionantes. Em acordes simples, refrão familiar e imagens aparentemente desgastadas, Billy Bragg consegue criar uma canção fresca, cheia de vida, sustentada apenas pelo exímio controle de sua estrutura.

22 – The Decemberists – “Raincoat Song”
de Always the Bridesmaid vol.3

É impressionante como a série de singles Always the Bridesmaid começou a pintar os Decemberists como uma caricatura de seu próprio passado: se discos como Her Majesty e mesmo The Crane Wife inflavam seu pop naif com sopros de novidade, as canções de Always the Bridesmaid parecem todas inspiradas na trilha-sonora de Juno. Os resultados podem ser minimamente agradáveis (“Valerie Plame”) ou totalmente ridículos ( “I’m sticking with you”), mas sempre esterilizando o indie pop com melodias infantis e uma fofura desmedida, quiçá um tanto embaraçosa.

“Raincoat Song” só é diferente no que lhe é essencial: é uma ótima canção. Rolam um violão dedilhado de fazer Dylan corar de vergonha; uma previsível harmonização em quinta logo no segundo compasso, e a decência de acabar com isso tudo antes que o constrangimento bata. Ao fim da canção, fico sempre me perguntando por que “And the raincoat that you wore when it rained today / I think it only made it rain more” é tão melhor do que “I’m sticking with you / ‘cause I’m made out of glue”. Não encontro resposta mais satisfatória do que um “porque sim”, mas isso é suficiente para convidar o refrão – esse sim feito de cola – a passar o resto do dia zanzando em minha cabeça.

23 - Ron Sexsmith - "Hard Time"
de Exit Strategy of the Soul

Poucas coisas tão tristes já foram escritas quanto a frase "One could say I'm having a hard time". É de uma entrega tão resignada e absoluta que sequer faz questão de pegar ar, de manter a cabeça pra fora da janela. É triste, triste, triste. Não sei o porquê de ter resolvido encerrar o ano pesando tanto a barra, mas "Hard Time" é tão bonita que me dá vontade de filmar um longa-metragem, só pra poder usá-la como encerramento. É genial como ela, saindo do mesmo tom de "Raincoat Song" (ah, a safadeza!) passa bem a bola para "Crossed Out Name" - caso alguém caia na pilha de ouvir a coletânea no repeat.

* * *

E assim foi.