quinta-feira, novembro 29, 2007

Guns of Navarone

Existem poucas sensações tão bem vindas (e, por isso e para isso, raras) quanto à dos momentos em que nos vemos caindo de amores por uma canção logo na primeira audição. O estranho contágio dos segundos e a percepção de estarmos diante de uma peça memorável enquanto ela se desenrola – em surpresa que se aperfeiçoa a cada acorde - me parece o mais próximo que temos de uma memória afetiva musical (memória que independe do objeto em si e se encontra no afeto, bruto e simples – embora o clímax do crítico de cozinha que lembra o sabor dos pratos de sua mãe em "Ratatouille" me venha, agora, à cabeça). Ontem, em um desses dias raros como todos têm direito de ser, me vi dobrado diante de “Guns of Navarone”, faixa de abertura de Heresy and the Hotel Choir, terceiro disco do fantástico Maritime. A cada compasso me via seduzido, sugado pela extraordinária canção, e desde então venho interrompendo meus playlists do Winamp para ouvi-la mais uma vez. Foi como ouvir “Last nite” (ou “A magazine called sunset”) pela primeira vez novamente. E, como momentos como esse me parecem só encontrar razão na partilha, abandono-os em poucas linhas com o link da canção na página da banda no MySpace.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Top 5 da semana

Tive uma mudança meio brutal no meu horário de trabalho, saindo do turno da tarde e entrando para o incômodo mundo onde celulares despertam às 5h20 da manhã. Ainda assim, me parece um preço bastante ameno pelas tardes livres que, nessa semana, gastei – quase todas – nos cinemas da cidade. Não sei se a freqüência é o determinante, mas esses últimos dois meses do ano me parecem vir para compensar a magreza do cardápio cinematográfico de 2007: não só vi filmes bem acima da média, como já começo a guardar espaço na agenda das semanas seguintes para estréias vindouras que me interessam (“Lady Chatterley”, de Pascale Ferran e, sobretudo, “Novo Mundo”, filme de Emanuele Crialese que há muito tenho curiosidade de assistir, e que já tem trailer e cartaz circulando nas salas do Rio). É por isso que passo batido por uma mais que tardia vista impressionadíssima de “Os reis do iê iê iê” (primeiro filme de Richard Lester com os Beatles que até essa semana esburacava meu repertório de vida) em dvd e faço um top 5 dos mais recheados, só com filmes em circuito. Aproveitem a bonança, pois ela tem sido mais rara do que todos nós gostaríamos.

01 - Hotel Chevalier - Wes Anderson


Como entusiasta do cinema de Wes Anderson, foi com alguma tristeza que me peguei entediado por boa parte de seu último longa, “Viagem a Darjeeling”. Nenhum questionamento ao talento do rapaz; estão ali a estranha frontalidade de suas composições, a exuberância de suas cores primárias, os tons acima da encenação, o primoroso gosto musical, a pontualidade do slow montion, o silêncio de seu humor. O incômodo é que a leve sensação de desconforto que já marcava o terço final de “A vida marinha com Steve Zissou” apareceu com uma recorrência meio assustadora em “Viagem a Darjeeling”, e fiquei cá na poltrona como se estivesse em uma festa para a qual não recebi convite. Anderson continua um apurado compositor visual (alguns momentos de “Darjeeling” tem a força visual das telas de Miguel Calderon que Anderson usou como elemento de cena no irretocável “Os excêntricos Tennenbaums”), mas seu centro dramatúrgico me parece extremamente cansado (e cansativo) nesse seu último filme. Embora apareçam alguns elementos de construção bastante inspirados (a ineficiência completa de toda e qualquer ritualística externa; a belíssima seqüência do funeral do menino indiano; a redistribuição, como bem observou minha Clarissa, dos papéis familiares ausentes entre os filhos), “Viagem a Darjeeling” me parece a confirmação de uma anunciada (por parte da crítica) perda de fôlego artístico que eu ainda não havia sentido.

Seria preocupante se, antes de “Viagem a Darjeeling”, não fôssemos contemplados com uma pequena obra-prima de 13 minutos chamada “Hotel Chevalier”. Apresentado como introdução à estória de “Viagem a Darjeeling”, o curta realizado por Wes Anderson com Natalie Portman e Jason Schwartzman traz todos os elementos fascinantes de seus longas, sem o esgotamento narrativo que fere “Darjeeling”. A enxurrada de amarelos, a mise-en-scène criada pelos próprios personagens (a canção que o personagem de Schwartzman põe pra rolar em seu iPod, conferindo ao momento real um clima cinematográfico, me parece um resumo de muitas das intenções cinematográficas de Anderson), os belíssimos planos em slow motion (sim, a cena de nudez de Natalie Portman merece um inevitável destaque), a composição sempre estranhamente bem equilibrada, os movimentos de câmera meio zombeteiros, o texto que enfeita o vazio... tudo que faz Wes Anderson aos meus olhos aparece condensado em “Hotel Chevalier”, com economia e vigor absolutamente arrebatadores.

02 – Jogo de cena – Eduardo Coutinho


Assim como acontece com Wes Anderson, há dois filmes o projeto cinematográfico do gênio Eduardo Coutinho vem esbarrando em suas próprias paredes. Sem querer desqualificar “Peões” e “O fim e o princípio”, desde a obra-prima “Edifício Master” a obra do mais importante documentarista brasileiro me parecia aguardar um sopro de renovação. “Jogo de cena” não é, porém, uma ruptura. É a busca da essência da caminhada que indicará os destinos possíveis.

Embora muito se tenha dito sobre um suposto flerte com a ficção, regra do jogo (expressão utilizada por Coutinho como o recorte que permite a existência de cada um de seus filmes) continua a mesma: um filme que documenta encontros entre duas vozes (a de Coutinho e de seu entrevistado), buscando não no discurso, mas no próprio ato da fala, algo revelador. A mistura de atrizes (mais ou menos profissionais) com suas personagens (em “Jogo de cena”, todas mulheres) pouco altera a estrutura do filme: em Coutinho, todos atuam, e é esse olhar sobre si mesmo que interessa o diretor.

Muito me impressiona, portanto, o depoimento da atriz Andréa Beltrão, logo no início do filme. Mais do que um jogo do recontar, o que Coutinho busca é a verdade que cada boca adiciona seu discurso. A dificuldade da atriz em reviver certas nuances da personagem que inspira seu discurso me parece um dos momentos mais belos de todo o cinema de Coutinho: o momento da percepção do outro, da vinculação de cada história a seus protagonistas, da aproximação de retratista e retratado (no caso de “Jogo de cena”, sempre pelo viés da família, da filha que se torna mãe), da consciência de imagem e auto-imagem. Quando não se deixar escorregar nos excessos do dispositivo (a atriz que se revela por um “e foi assim que ela contou”, no final do depoimento, por exemplo), Coutinho faz um filme realmente belíssimo.

03 – Os donos da noite (We own the night) – James Gray


Não conheço nada da filmografia anterior de James Gray, mas me parece extremamente difícil driblar o deslumbramento (e por que faríamos isso?) diante de alguns preciosos momentos de seu “Os donos da noite”. Curioso que esse encanto não seja nunca buscado pela supra-estilização do gênero (aqui, o policial), mas sim por abordagens inventivas de sua essência mais tradicional. As fotografias de abertura, a canção do Blondie que embala o quase-coito e a impressionante pista de dança em plongé (é muito fácil filmar cenas em casas noturnas mal, e a força que vem de um único, breve plano de Gray me parece fruto de exímia precisão), o matagal que queima, a chuva que cega uma perseguição de carros etc. “Os donos da noite” parece combinar “O pagamento final”, “Os infiltrados” e “Zodíaco” e alcançar quase tudo o que há de melhor nesses três filmes.

04 – Antes só do que mal casado (The heartbreak kid) – Peter e Bobby Farrelly


Mais um filme dos irmãos Farrelly, mais um mergulho dedicado na projeção de preconceitos e expectativas que (re)moldam o mundo. “Antes só do que mal casado” não tem o fôlego dos melhores momentos da dupla (embora me pareça tão bom quanto “O amor em jogo”, o bom trabalho anterior dos irmãos), mas, por diversos momentos, o que parece uma atenuação se revela uma democratização da imperfeição, um deslocamento imperceptível que gera um ângulo absolutamente novo para as questões da dupla (e o reaparecimento de motivos clássicos da obra dos diretores reaparecem aqui justamente para se mostrarem esvaziados, pedindo uma nova abordagem). Também, como poderia eu não me dobrar diante de um filme que retrata o ápice da felicidade em um casal que corta a estrada ensolarada ouvindo “Rosalita”, e cantando a letra da canção alto o suficiente para abafar o barulho do motor? Eu posso ser mais fácil que uma manhã de domingo, mas a satisfação em ver uma cena como essa (que ainda serve de escada para uma das melhores piadas do filme) é prazer do qual não faço planos de me privar.

05 – Mutum – Sandra Kogut


“Mutum” poderia muito bem ser um grande filme se não tropeçasse na relutância da diretora em se entregar ao tempo de determinadas passagens (importantíssimas, porém). Ainda assim, o primeiro filme de ficção de Sandra Kogut (que havia realizado o bom “Um passaporte húngaro”) me parece muito mais interessado em se colocar diante do mundo de uma maneira autêntica do que um Karim Ainouz, por exemplo. Embora a montagem seja mãe dos problemas mais evidentes de “Mutum” e o do supra-comentado “O céu de Suely”, Sandra Kogut me parece se entregar mais na busca de uma estética, enquanto o filme de Karim Ainouz me parece reproduzir uma gestalt de “cinema de arte” contemporâneo, buscando atalhos para um sentimento que raramente está lá. Com todos seus tropeços, “Mutum” e a proximidade delicada de seu olhar sobre o universo que escolhe é não raro cativante (no meu mundo de associações desconexas, em momentos me lembrou “A floresta dos lamentos”, de Naomi Kawase). O trabalho impressionante dos atores e a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. escoram uma sensibilidade instigante, que tem tudo para se revelar mais intensamente na segurança dos trabalhos futuros.

sexta-feira, novembro 16, 2007

You used to be a stranger, now you are mine

Como blogs me parecem lar perfeito para platitudes taxativas, brado, aqui, do alto de minha cabeça, que o verso em negrito logo acima é, possivelmente, a melhor síntese já feita da relação do homem com o mundo. Existe ali uma apreensão da capacidade do olhar de fazer tudo se tornar seu, uma percepção do mundo como potência que aguarda ser iluminado pelo interesse de alguém disposto a se apaixonar que realmente me desconcerta. Bernard Sumner me parece um grande letrista às avessas: suas canções fazem pouco sentido enquanto unidade narrativa/poética, mas seu método parece ser o de um atirador de palavras. E embora muitas vezes ele gere versos que reverberam no óbvio de uma piscina vazia, por vezes saem um par de jóias (brincos, eu diria) que justificam o dadaísmo dietético de suas canções. Assim como o New Order sempre tropeçou em discos imperfeitos, Sumner talvez nunca tenha assinado uma grande letra. Ainda assim, existe algo na inflexão de sua voz que faz a aparente ingenuidade de certos versos se tornar concreta, viva, inquestionável. Nesses momentos, Sumner é o condutor do sublime. “Regret” é uma enormidade de canção.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Duas ou três coisas sobre Superbad


Salvo engano, desde a entrega total às salas do festival do Rio eu não pisava no cinema. Mantive as sessões caseiras e o cineclube em alta rotatividade, mas, se quando pensamos em cinema estamos falando de projeção em película, da solidão coletiva, da legenda que bate a cada fotograma, tirei, realmente, um tempo para dar folga ao hábito. Até que, nesse último fim de semana, fui com minha pequena assistir "Superbad - é hoje", de Greg Mottola, e me peguei pensando um par de coisas que me pareciam um bom ponto final para o silêncio-luto-pós-não-Feist que abateu esse blog.

Existem poucos momentos tão gratificantes quanto aquele em que percebemos a surpresa conquistada por um filme pelo qual nutríamos pouca ou nenhuma expectativa. Parte do arrebatamento vem da beleza da própria surpresa em si; por mais que tente, conscientemente, desarmar-me antes de cada projeção, a dedicação mais atenta ao cinema (sentimento que muitos chamam de cinefilia – palavra que sempre me deu calafrios por parecer vir acompanhada de um forte cheiro de café seco e um gorduroso excesso de vírgulas) traz consigo a dúvida de até onde seu gosto permanece seu. Falsa questão, claro. Mas, por mais que eu afaste toda defesa da pureza pela pureza, assistir a um filme que vai me ganhando aos poucos - misturando meu senso crítico com o gosto de espectador mais instintivo que às vezes se acanha diante das racionalizações – me vem sempre como um agradável exercício de afirmação de individualidade.

Mais apropriado impossível, portanto, que após tanto tempo longe dos cinemas eu me visse sorrindo com as belas imperfeições que aos poucos me aproximavam de “Superbad” de maneira pulsante, viva. Gratas surpresas tendem a reservar bons lugares na memória; ainda defendo praticamente sozinho a vontade que pareceu tomar Norah Ephron de rachar a cabeça no fundo da piscina de metalinguagem que afoga “A feiticeira”, e sinto que o silêncio crítico diante de “Superbad” pede, aqui, um par de parágrafos (escritos com tripas, há de se dizer).

O que mais me comove no filme de Greg Mottola é um interesse agudamente apaixonado pelo universo adolescente que evita o excesso de romantização nostálgico (penso na série “Anos Incríveis”, por exemplo) e o dedo em riste (sensação que – para ficar em um cineasta que admiro – vira e mexe mordisca o cinema de Larry Clark, por exemplo) que conecta boa parte das expressões adultas acerca do universo jovem. Os maiores méritos de “Superbad” parecem vir da idéia de que o que existe de mais interessante na adolescência é a sua existência enquanto tempo – esse incrível limbo entre a infância e a vida adulta que condena os jovens a um milhão de novas experiências por minuto. Se para Gus Van Sant algo é irremediavelmente sacrificado no processo, para Greg Mottola (e é preciso acrescentar os nomes dos roteiristas Seth Rogen e Evan Goldberg à lista) o que mais parece interessar é justamente o ato de descobrir (des-cobrir, de fato) que é a adolescência.

Em “Superbad” o registro desse tempo é apenas coerente com seu objeto. Se na série “American Pie” as piadas buscam graça em uma estrutura de gags circense, em “Superbad” elas são cuspidas com a falta de acabamento típico do universo dos personagens; são piadas de adolescentes, não piadas sobre adolescentes (não à toa, os únicos personagens que são aparentemente ridicularizados são os policiais – alvos mais que comuns quando se tem17 anos). Essa fé absoluta no universo que retrata ficou ainda mais clara por uma coincidência de projeção: após a saída de cena dos pré-adolescentes de vinte e tantos anos que figuravam o trailer de “Pode crer”, o rosto claramente jovem de Michael Cera (que interpreta Evan com precioso equilíbrio) ganha uma expressividade impressionante. Em vez de tentar fazer um panorama geracional, as piadas sobre MySpace, sites de pornografia e peitos recauchutados ganham, em “Superbad”, funções climáticas.

Climáticas, sim, pois é nos climas que o longa de Greg Mottola se revela, e nesse ponto “Superbad” acaba se aproximando de “Jovens, loucos e rebeldes”, ainda hoje meu filme favorito de Richard Linklater. Se a trama principal (dois garotos nada populares vêem na possibilidade de comprarem bebidas alcoólicas para uma festa de colégio a maneira mais rápida de se aproximarem das garotas que desejam) é rapidamente exterminada pela nossa falta de vontade de cumprir certas leis (uma criança de dois anos pode se embebedar sem esforço no Brasil), “Superbad” se safa pela força das sensações decorrentes do ato de descobrir que é a adolescência. Quando Evan percebe que está prestes a perder sua virgindade com a garota de seus sonhos, é inevitável que o espectador tenha a espinha esmagada pelo misto de ansiedade e curiosidade que congela as palmas encharcadas que tocam o desconhecido. É aí que “Superbad” se afasta do cinema besteirol ou da comédia física de onde ele aparentemente nasce (trata-se de um filme irmão, em produção, do magnífico “O virgem de 40 anos”), e se torna um filme doce, carinhoso e extremamente encantado com o universo que retrata.

“Superbad” talvez não seja sequer um grande filme (dificilmente entrará pra minha lista de melhores, ao fim do ano), mas acaba se mostrando uma das mais animadoras propostas de cinema dos últimos anos. Pois se o cinema de John Hughes não consegue mais dar conta do tempo (e a falta de fôlego que condena os filmes de Jorge Furtado me parece prova bastante clara que essa estrutura já expirou faz tempo), é preciso buscar uma nova maneira de se olhar para ele. Em “Superbad”, Greg Mottola me parece extremamente interessado em buscar quais maneiras essas poderiam ser. Essa busca, por si só, já é suficiente para me emocionar ao longo de toda a projeção.