sábado, abril 14, 2007

Por uma vida menos mediada

The tyranny of framing our attention with all the eyes their eyes no longer see. (The Weakerthans)

Meio dia atrás, quatro ou cinco pessoas me separavam da fisicalidade de meu passado. Dividia meu suor com desconhecidos, tentando chegar um pouco mais perto da imagem presente de ícones de minha formação. Aprendi o que é rock com o Guns’n’Roses. Quando tinha nove anos de idade descobri o Appetite for Destruction, dando o segundo passo em direção à vida que tenho hoje, em caminhada que começou com “Patience”, no post passado. Comprava toda e qualquer revista que trazia matérias sobre o Guns, abrindo a porta do jornalismo musical que, por caminhos maravilhosamente impensáveis, me desembocou na dosagem de ego semanal deste blog. Deixei de participar de uma noite de fondue que meus pais fizeram, quando era garoto, para ficar na sala vendo o tributo a Freddie Mercury. Eu adorava fondue. O Axl cantou “We will rock you” e fez uma ponta inesquecível em “Bohemian rhapsody”, e o Guns’n’Roses como eu conhecia subiu ao palco em uma performance memorável de “Knockin’ on heaven’s doors”. Foi, também, a primeira vez que me lembro de ter visto Gilby Clarke, integrante mais insignificante da história da banda (mas que seria razão principal para, no ano passado, eu ter começado a ver “Rock Star Supernova”, no People & Arts). Pouco tempo depois escrevi a única carta que já mandei à Mtv, praquele CepMtv, pedindo que eles passassem a tal apresentação. Recebi uma carta de desculpas da emissora, pois eles não tinham os direitos de exibição da performance dos meus sonhos. Embora aquele pedaço de show tenha se tornado clipe mais votado no “Top 10 Europa”, a MtvBrasil não podia exibir o clipe em sua programação normal, pois os direitos – como hoje percebo – estavam na mão da Rede Bandeirantes. A mesma Bandeirantes que passou o insuperável show de Paris, e um encontro mal situado na memória de Slash com Lenny Kravitz (segundo a narradora, amigos desde a época do colégio).

Meio dia atrás, porém, estava diante da coisa em si. Adeus anos de mediação e simulacros; à minha frente estava o homem que me fez, um dia, querer chegar perto de uma guitarra. Slash parece ter sido conservado pela memória de seus fãs; sua imagem atual é quase idêntica à que temos, todos, na memória. Na quarta fila do Citibank Hall, eu tinha a chance de olha-lo, literalmente, nos olhos. À minha volta, porém, dezenas de supostos fãs acidentavam o trajeto da visão com mãos em riste, empunhando máquinas fotográficas digitais e telefones celulares. Espremiam-se para chegar mais perto, mas buscavam território apenas para conseguir um melhor enquadramento. Tiravam, todos, fotos essencialmente iguais; mas pareciam acreditar que a autoria do registro valia mais que o momento perdido, a vida que os olhos deixaram de ver enquanto estavam fixos no LCD da câmera. Em devaneio de desejo, empunhava, eu, um taco de beisebol e, com gritos espartanos, quebrava os pulsos, um a um, de todos que insistiam mediar meu contato visual com o passado. Por longos anos, minha relação com essa memória foi conduzida por simulacros. E quando tenho a chance, muitas vezes impensável, de ter um encontro físico com minha trajetória de vida, duas dúzias de aparelhos eletrônicos insistem em tornar essa troca direta em contato novamente mediado.

Sou grande entusiasta tecnológico. Acho magnífico que, a partir de determinado momento, todos os show do Invisibles tenham sido registrados, anonimamente, de alguma forma. Acho a democratização do autor tão bacana que, ora bolas, tenho meu próprio blog. O porém só se torna necessário quando a possibilidade de registro permitida pela tecnologia passa a substituir a vida. O registro tem como função imortalizar um encontro real. Sempre será, porém, simulacro de algo que passou, que não voltará, e cuja essência não é (e tendo a acreditar que, a despeito de todas as impensáveis tecnologias que o futuro nos trará, nunca será) transferida ao simulacro. O incômodo da substituição do encontro pelo simulacro vem justamente do sentimento de que esse registro é legitimado pela autoria. Mais importante do que estar presente é ter as fotos que você mesmo pôde bater como prova de sua presença (se estiver perto, melhor ainda). E aí surgem fenômenos tresloucados como o enquadramento fotologueano de uma mão tirando uma foto de um show, em uma versão moderna da piada do “Mad about you” em que o personagem de Paul Reiser dirigia o making of do making of do “Titanic”. A falta de etiqueta faz o simulacro ser mais importante do que o mundo.

Duas semanas atrás, fui ver a bela apresentação do Evens na AudioRebel. Como disse o vocalista da banda, show que começava no palco, mas terminava na última pessoa presente na casa, que compartilhava aquele frágil momento com Ian Mackaye e Amy Farina. A delicada atmosfera criada por banda e público, que conseguia fazer do calor e aperto da Rebel um ambiente agradável, era ferida pelo flash irritantemente constante de alguém que queria registrar o show inteiro em sua máquina digital. Após a primeira ou segunda música, Ian Mackaye perguntou diretamente à pessoa se não existia uma maneira de se fazer a gravação sem que o insistente flash ficasse ligado o tempo todo. Corte seco para fevereiro do ano passado, e o momento em que uma das garotas escolhidas por Bono para subir ao palco do U2 teve sua tentativa de registro com a câmera de seu telefone celular impedida pelo próprio vocalista. Você paga caro para ir ao show do U2, tem a sorte de ser puxada para o palco pela estrela principal da noite e, em vez de aproveitar seu momento, perde tempo sacando o celular para tirar sua própria foto. No dia seguinte, fotos diferentes daquele mesmo momento ilustravam reportagens em todo tipo de mídia sobre o show. O registro, portanto, seria feito. A garota escolhida pelo vocalista do U2 era tomada pela insana necessidade de ter o registro do seu ponto de vista, mesmo que isso fragmentasse a experiência real. Se Bono, artista que encoraja que as pessoas levantem seus celulares durante o show, achou que a moça tinha passado dos limites, é porque as intenções andam por caminhos errados.

O encontro que caracteriza todo show vem sendo sacrificado pelo seu registro. O simulacro, que sempre serviu para encurtar a distância entre mundos, é agora ferramenta que cria abismos entre pessoas que respiram um mesmo ar. Lembro de como sempre foi difícil enxergar os olhos de Slash nas fotografias. O cabelo no rosto, os óculos escuros e a cartola - cuja sombra fazia a função dos óculos quando os olhos estavam descobertos - impediam que a luz penetrasse nas concavidades de seu rosto. Ontem, quando conseguia olhar por entre os braços levantados – pilares de deselegante inconveniência – minhas lembranças ganhavam feições no presente. Feições fluidas que contrariam a própria noção de enquadramento. Afeto que não cabe em um LCD. Nesses instantes iluminados, ver o Velvet Revolver de tão perto foi um tributo à minha existência. Pude, enfim, olhar meu passado nos olhos, enxergar os detalhes que estão fora do alcance do filme (ou da imagem eletrônica). E, enquanto olhava o presente construído pelas pessoas ao meu lado, fiquei em paz com o pensamento de que aquela caminhada começada com “Patience” não tem sido tão ruim assim.

quinta-feira, abril 05, 2007

Entre dias

Quem acompanha o blog do Lúcio Ribeiro sabe que ele vive citando o mais novo hit do mais novo hype que fala que Smiths é apenas uma banda, e que Arctic Mokeys também é apenas uma banda. Embora eu não consiga imaginar que alguém no mundo pudesse pensar que os Arctic Monkeys fossem qualquer coisa além disso (pra falar a verdade, mal isso eles são), existem canções que não me parecem somente canções. No último domingo, fui requebrar as noites sem dormir em mais uma noite sem dormir na Sundae Tracks, festa do Melvin. Lá pelas muitas ele tocou a versão apressadinha do Ben Folds para “In Between Days”, clássico inquestionável do Cure. E, enquanto dançava a música pela milionésima vez, não conseguia afastar a impressão de que “In Between Days” não é apenas uma canção.

Desde que passei a realmente me interessar por rock, tenho o costume inconsciente de memorizar a primeira vez em que ouvi determinadas músicas. Se penso em “Every night”, do Screeching Weasel, ela vem com o excesso de agudos do timbre da Sony-UX que meu amigo Léo à época me emprestou. Ouvi “Patience” na rádio 104.1 de Barra Mansa, quando era garoto, e logo vi que alguma coisa tinha acabado de mudar radicalmente em minha vida. “Today”, do Smashing Pumpkins, chegou até mim pelo péssimo sinal UHF da Mtv (assim como “Say it ain’t so” e “Basket Case”), enchendo minha vida de cores ruidosas que até então desconhecia. “Misunderstood”, do Wilco, foi pelo meu discman, ouvindo o Being there, à época emprestado (que permanece “emprestado” até hoje), em uma noite de verão no ônibus da Cidade do Aço, a caminho de Barra Mansa. “The way I feel inside”, canção do Zombies que o Invisibles tocou em todos os shows de despedida, foi assistindo “A vida marinha com Steve Zissou”, no Vivo Open Air de 2005. “Regret”, do New Order, tocava na propaganda de alguma trilha-sonora de novela (era a mesma que tinha “Luka”, ou minha memória mistura as trilhas?). “Smells like teen spirit” também veio em trechinho, em uma vinheta de bandas novas da Mtv que também tinha “Alive” e “Man in the Box”. “The outdoor type” foi numa cena do filme “Heavy”, onde a Liv Tyler contracenava com o Evan Dando tocando a música no violão. “Suspiscious minds” foi em “Um estranho chamado Elvis”, filme com Harvey Keitel de onde tiramos o diálogo da parte instrumental de “Hello”. Mas e “In Between Days”?

Quando estudava inglês, minha professora gostava de levar letras de músicas com pedaços faltando pra gente completar. Toni Braxton, Take That (com aquela música bichona do Cat Stevens) e a música do Aerosmith pra trilha do “Armagedom” eram o padrão que ela normalmente escolhia; até que um dia levou “Boys don’t cry”, que não me lembrava de já ter ouvido antes. Gostei tanto da canção que pedi o cd emprestado. Era uma versão safada do Staring at the sea, com capa diferente e o incompreensível título de The Cure in Brazil. Passei pelo resto do cd sem impressões marcantes, até que lá pro final do disco tocou “In Between Days”. Embora não conhecesse “Boys don’t cry”, “Inbetween Days” se revelou prontamente familiar com sua inconfundível frase de teclado. O ar logo ficou mais curto – como sempre fica quando me emociono repentinamente – e comecei a cantarolar a melodia daquela emoção há tanto perdida na memória. Não tinha a menor idéia de que aquela canção era do Cure, pois até o momento sequer me lembrava da canção em si. Desde então venho tentando rastrear a primeira vez em que ouvi a mais deslumbrante criação de Robert Smith, sempre ciente de que a busca está fadada à esterilidade. “In Between Days” é uma daquelas raras obras que parecem se confundir com a própria vida, sem que a gente consiga imaginar o mundo antes de ela existir. É madalena que não leva a tempo algum. É a canção pop perfeita, pois Robert Smith provou ser possível construir a estrutura de todo um imaginário coletivo em apenas dois acordes (os outros dois do refrão são apenas o acabamento). E, mais impressionante, sempre que a ouço novamente ela ainda me parece tão bela quanto da imemorável primeira vez. Se eu tivesse que escolher a minha canção favorita de todos os tempos, qualquer outra seria uma imperdoável injustiça.

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Na mesma Sundae Tracks, o DJ Rasta espremeu “Conversation” entre Lemonheads e Weezer quando eu ainda estava na pista. Não ouvia a canção desde o último show do Invisibles e, devo confessar, ela soou extremamente bem naquele momento. É muito incomum eu conseguir ouvir uma das minhas canções sem ficar constrangido, mas acho que nesse domingo tive a rara chance de receber “Conversation” como qualquer outra pessoa. Deixei que os arranjos me surpreendessem, que a letra aos poucos voltasse à memória, e por um momento quase desejei que o Invisibles ainda existisse para que nós pudéssemos toca-la mais uma vez. Mas só por um momento. Porque as canções que realmente desejo tocar hoje em dia são as que tenho feito recentemente, e que pretendo dividir com vocês assim que elas aprenderem a respirar com os próprios pulmões.