domingo, junho 25, 2006



Ruth Ruth - Laughing Gallery

Quando o Green Day fez o punk novamente popular na metade da década de 90, milhões de bandas com uma sonoridade razoavelmente próxima assinaram contrato com gravadoras grandes. Algumas delas, como Goldfinger e Eve 6, fizeram razoável sucesso. Outras, como Jawbreaker e Samiam, tiveram em seu período major apenas mais uma fase indistinta dentro de carreiras independentes sólidas. Mas para cada Green Day, dúzias de bandas tinham breve chance no mainstream, para terminar de desaparecer depois de um ou dois discos invisíveis. A maioria delas realmente não merecia atenção. O Ruth Ruth, porém, é o outro lado de várias moedas, e nos faz pensar em todas as bandas legais que deixamos de conhecer nesse vai-e-vem da indústria do disco. O trio nova iorquino, formado por Chris Kennedy (bx/v), Mike Lustig (g) e Christian Nakata (bat.), lança seu primeiro cd pela major American Recordings (Laughing Gallery, 1995), passa por um período independente que rende o belo ep The Little Death (lançado em 1996 por uma parceria da Deep Elm com a Epitaph, o que rendeu edição nacional a ser garimpada a preço de nada nos saldões da vida) e depois se torna um quarteto ao assinar com outra major, dessa vez a RCA, para lançar o estranho (mas não menos interessante) Are you my friend?, em 1998.

Até poucos minutos atrás, era essa a biografia que conhecia de uma das bandas mais subestimadas desse período. Fazendo o dever de casa, descobri que o Ruth Ruth segue na ativa e lançou um quarto disco - independente, gravado de forma caseira - em 2004. Fiz uma busca no SoulSeek, e entre Ruth Brown e Babe Ruth não encontrei uma música sequer do trio de NY, nem mesmo de seus discos mais antigos. O site da banda não é atualizado desde 2005, sua página no MySpace tem menos acessos do que a do Invisibles, e o All Music não traz sequer a capa de Right about now, o tal disco de 2004. Depois de várias tentativas, independentes ou industriais, em 10 anos de carreira, o Ruth Ruth permanece como se não tivesse existido. E Laughing Gallery, o disco mais completo da banda, segue como obra não ouvida.

Talvez parte (pequena, se tanto) do fracasso comercial de Laughing Gallery venha de um erro crasso cometido pela banda: o disco abre com sua pior canção. "Uninvited" não só é ruim como foi single, tendo seu clipe até mesmo exibido na MTV brasileira. O problema da má escolha da primeira faixa (maximizado para o primeiro single) é tanto de ordem estética quanto prática: além de ela não situar o ouvinte corretamente na fruição do disco, é fracasso certo nas compras que partem de audições em loja. "Uninvited" é uma má canção. Mas Laughing Gallery ainda é um belo disco de outras 11 canções. "Uptight", a segunda, mostra uma banda de uma originalidade sutil que se desenha com total solidez no restante do disco. Embora a canção tenha uma estrutura típica pro contexto (batida acelerada, power chords ramônicos e um verso todo estruturado em torno de um solitário mi maior), o refrão salta da caixa de presente com uma dinâmica impressionante. É aí que descobrimos o que faz do Ruth Ruth uma banda especial: por traz da simplicidade dos arranjos e da ironia debochada das letras, está uma banda com pretensões de arena. Ao mesmo tempo que se veste como Billy Joe Armstrong, esconde por baixo uma camiseta do Meat Loaf. É desse encontro de opostos à época antagônicos (lembrando que o fenômeno Green Day dos dias de hoje era impensável então, mesmo no auge do Dookie), dessa improvável colisão entre o teatral e o imundo, de canções que lembram tanto Queen quanto Ramones, que o Ruth Ruth ergue a cabeça acima do oceano.

O vocalista/baixista/compositor Chris Kennedy é, sem dúvida, o merecedor dos louros. Embora a guitarra nunca plenamente distorcida de Lustig e a pegada de Nakata (que está mais para Peter Cris do que para Marky Ramone) confiram personalidade à mistura, é a voz rouca e a entonação dramática de Kennedy que se tornam plenamente reconhecíveis no som da banda. Se em Laughing Gallery ainda não temos os experimentos com sonoridades e texturas que marcariam Are you my friend?, a forma como o vocalista incorpora e dramatiza os personagens de suas estórias já aparece pronta nesse primeiro registro (e atingiria níveis ainda mais impressionantes em The little death).

"All readydown", a terceira faixa do cd, reverencia Kiss com um belo riff de abertura e tem um dos melhores refrões. "Neurotica" e "Bald Marie" (que satiriza os amores incompreendidos cantados pelos mais rebeldes heróis adolescentes, sem que a ironia impeça a criação da bela passagem "I don’t want your reputation, I want you") poderiam vir do mesmo lugar das melhores de Insomniac, não fossem as mudanças de tons e a dinâmica crescente tão particular do Ruth Ruth. "Amnesia" é outro rockão clássico, com o refrão ("What can I do? I forget why I need you") cuidadosamente estruturado para gerar crises de bronquite no estádio de Wembley. Enquanto excelentes canções como "Pervert", "I killed Meg the prom queen" e "I grew up" reservam bons momentos de puro pop punk, a pérola pop "Mission Idiot" bagunça o 4x4 com complexidade de melodia das mais fáceis. E se olhar para trás é o que difere o Ruth Ruth das várias bandas que homogeneizavam o estilo, com um mínimo desvio ocular eles buscam em "Don’t shut me out" (possivelmente a melhor de todo o cd) a clássica levada Clash/Pretenders/Cure que bandas como Strokes e Libertines revitalizariam anos depois em canções como "Someday" e "Death on the stairs", respectivamente.

Curioso é perceber como, hoje, Laughing Gallery e toda a discografia do Ruth Ruth permanece íntegra. Enquanto o Green Day parece cada vez mais distante do Dookie, e mesmo Dear You (obra-prima lançada pelo Jawbreaker em 1995, sob contrato com a Geffen) já parece sofrer os efeitos do tempo, as canções do Ruth Ruth continuam frescas e originais apesar de todas as fases que o rock passou nesses últimos 10 anos. Talvez porque reinterpretar o passado sob os signos do presente garanta uma longevidade só alcançada pelas sínteses. Talvez porque o tempo seja um pouco mais generoso com aqueles que o mundo parece nunca ter visto.

segunda-feira, junho 12, 2006

Don’t think twice, it’s alright

Há não muito tempo atrás, era lugar comum que bandas de punk rock gravassem versões "atualizadas" de hits do passado. Não me eximo de culpa, afinal o Invisibles gravou "Always on my mind" (canção imortalizada na voz do rei, que não é o Robertão) em 1999. Ainda assim, as tais covers ficaram marcadas em minha memória como um dos piores vícios daquele período. Embora tenha conhecido várias canções legais por conta dos discos do Me First and the Gimme Gimmes (projeto que reúne integrantes de várias bandas do estilo para gravar covers), raramente as tais versões traziam contribuição relevante às originais, e os discos não sobreviviam como mais que itens de curiosidade.

Como sou roqueiro de passado musical dos mais curtos, conheci "Don’t think twice" (sem o "it’s alright" do título original) na voz de Mike Ness, líder do Social Distortion, que gravou uma versão para a canção de Bob Dylan em seu disco solo de estréia, o ótimo Cheating at solitaire (1999). Seja no Social D ou em carreira solo, Mike Ness assinou diversas covers ao longo de sua carreira (chegando a seu segundo disco solo, Under the influences (1999), todo composto de releituras), e a canção de Bob Dylan talvez tenha sido, entre todas elas, a escolha mais inusitada. Recentemente decidi tomar providências em relação às minhas mais graves falhas curriculares, e entre as medidas tomadas estava o desejo de explorar melhor a obra de Bob Dylan. Foi em um desses passos que topei, finalmente, com a versão original da canção, lançada em The freewheelin’ Bob Dylan (1963), segundo disco do homem.

Entre pencas de momentos brilhantes de Dylan a desvendar, me peguei apaixonado justamente por "Don’t think twice, it’s alright", a sétima faixa do disco. Parte do fascínio vinha da impressão de - embora já tivesse ouvido a versão de Ness inúmeras vezes - estar conhecendo a canção com ouvidos inaugurais. Apesar de a melodia central ser a mesma, as duas versões (e já vi dados de que existem várias outras, incluindo uma gravada por Johnny Cash - que, aliás, também já foi reinterpretado pelo Social Distortion, com cover de "Ring of Fire") parecem vir de direções absolutamente opostas, gerando canções e sentimentos inteiramente diferentes.

As distorções, porém, não são meramente estilísticas. É óbvio que a roupagem country two-step de Mike Ness pouco tem a ver com o dedilhado singelo marcado à gaita por Bob Dylan, mas até aí estamos no terreno das releituras. O que torna a comparação das duas versões tão intrigante é a colisão de duas personas tão marcadamente opostas quanto Dylan e Ness; a sofisticação dos acordes diminutos substituída pela brutalidade dos maiores.

Mike Ness é certamente um dos mais expressivos intérpretes do rock. Poucas vezes uma voz conseguiu incorporar valores de forma tão vívida: cada rasgada de garganta vem embebida de sua imagem de marginal sentimental seduzido por um universo de drogas, pin ups, jogos de azar e toda uma iconografia vintage. A cada nova canção ouvimos Mike Ness rosnar sobre sua vida desgraçada e sua romântica intenção de se reerguer (que, caso consumada, provavelmente arruinaria com sua carreira). Até mesmo seus momentos de maior espiritualidade são pontuados por ressentimento, e é exatamente nesse ponto que sua versão para "Don’t think twice" se torna uma outra canção.

Enquanto a original é uma doce carta de despedida, a versão de Mike Ness bate o telefone (ou a porta) após o desabafo. A diferença está além da entonação: fora o "it’s alright" que lima do título, Mike Ness muda um sujeito essencial, e enquanto Bob Dylan lamenta com "you could have done better, but I don’t mind" (algo como "você poderia ter se saído melhor, mas tudo bem"), Mike Ness esnoba com "I could have done better, but I don’t mind" (mais próximo de "eu poderia ter arranjado alguém melhor, mas tudo bem"). Se Dylan pede para ser convencido em "still I wish there was somethin' you would do or say to try and make me change my mind and stay", Ness reafirma seu território adicionando um "I wish there was something you could do or say to make me want to change my mind and stay".

Se a canção de Bob Dylan era a triste constatação de que as coisas não saíram como o planejado, Mike Ness se envaidece de sua auto-comiseração loser que até tem seu charme (e chega a ser extremamente sedutora em certos momentos da vida), mas não resiste como mais que icônica. Embora seu arranjo seja interessante, Ness faz a canção servir à sua personagem, enquanto Dylan faz com que a canção sirva somente a si própria, apesar da vida. E com isso se torna eterna. Porque talvez não exista ouvido que se preocupe com rosnados se, ao seu lado, soa o canto de um homem feito que, resignado, lamenta os rumos que seus sonhos decidiram tomar.

quarta-feira, junho 07, 2006

I see you, you see the grizzly man

1 Quando vi pela primeira vez o simpático clipe de "Forever Lost", a inegável fofura (musical e visual) do Magic Numbers não me convenceu a buscar outras canções da banda. Alguns meses se passaram até que eu topasse novamente com eles, em mais uma de minhas caminhadas televisivas. Dessa vez, porém, a banda cantava ao vivo, no programa Top of the Pops, uma singela canção chamada "I see you, you see me". Guardei no topo da memória a vontade de conhecer melhor o trabalho da banda, e poucos dias depois o disco de estréia do Magic Numbers já me acompanhava em meu carro.

The Magic Numbers, o disco, passa longe de ser obra-prima. Embora os irmãos Stodart e Gannon (a banda é composta por dois casais de irmãos, todos rechonchudos, tornando a comparação com The Mamas & The Papas ainda mais óbvia) crivem músicas de inegável talento, o disco por diversas vezes parece se arrastar para além do necessário (13 músicas em pouco mais de uma hora de música). Porém, em seus momentos mais inspirados, o Magic Numbers consegue revitalizar elementos do passado com uma espontaneidade comovente.

É o caso de "I see you, you see me", sem dúvida a mais bela fatia do disco de estréia dos irmãos. Para além de ser uma belíssima canção, "I see you, you see me" chama atenção exatamente por desenterrar uma forma defunta e torna-la novamente pertinente: trata-se do mais clássico dueto. Não me lembro qual foi a última vez que ouvi um dueto que se aproximasse com tanta propriedade do formato mais tradicional, sem com isso soar datado de nascença. Irmão e irmã Stodart dividem os vocais em uma canção doce porém forte, simples porém profunda, e retiram brilho justamente do encontro (e da alternância) das vozes. Resgatando um formato que por muitas vezes pareceu condenado, o Magic Numbers consegue a proeza de compor uma canção que, logo nas primeiras audições, parece estar por aí há tempo o suficiente para não nos lembrarmos de como era a vida sem ela.


2 Assim como não tenho tido tempo de atualizar o blog, passei as últimas semanas sem praticamente pisar em uma sala de cinema. Ainda não vi "X-Men III", tampouco filmes que tinha curiosidade de ver, como os novos de Win Wenders e Terrence Malick. Até hoje sigo em débito com a grande maioria dos indicados ao Oscar, desde o bafafá dos cowboys gays de Ang Lee, até o filme preto e branco do ano. Recentemente tentei me reaproximar das salas vendo "A lula e a baleia" (de Noah Baumbach) que, embora fraco e inofensivo, me proporcionou novamente o prazer de estar sentado em uma sala de cinema. Ainda assim, faltava combinar o prazer do estar com o de ver, encontro raro que se deu no sábado, quando fui assistir a "O homem urso" (Grizzly Man, 2005), último filme do alemão Werner Herzog lançado no Brasil.

Conheço pouquíssimos filmes de Herzog, diretor famoso por (além de sua excentricidade) filmes como "O enigma de Kaspar Hauser", "Aguirre: cólera dos deuses" e o remake de "Nosferatu" (obra-prima de F.W. Murnau) e por uma sólida carreira como documentarista. "O homem urso" deu bolo no último festival do Rio, teve sessões conturbadas no último É Tudo Verdade, e chega, finalmente, às telas do circuito carioca. A premissa já é sensacional: Herzog tem à sua disposição 100 horas de material gravado pessoalmente por Timothy Treadwell, ambientalista que durante 13 anos passou seus verões em uma planície do Alaska, convivendo com os ursos pardos. Treadwell desenvolve uma série de técnicas de aproximação dos ursos, e seus constantes avisos do perigo de sua aproximação se fecham em ironia quando descobrimos que, em seu décimo terceiro verão por lá (no caso, o de 2001), Treadwell e sua namorada acabaram sendo devorados por um dos ursos que ele tanto defendia.

Embora a personalidade de Treadwell já seja atrativa o suficiente para que qualquer um se interesse pelo filme, Herzog a contorna com traços de gênio ao inverter a vida do ambientalista: enquanto Timothy Treadwell usava a si mesmo para falar sobre a natureza, Herzog usa a natureza para descobrir a pessoa para além do ambientalista. Aos poucos descobrimos que a aparente insanidade de Treadwell é, na verdade, uma fachada exagerada para uma pessoa que, como todos nós, apenas buscava um sentido para sua vida. E que, não diferente de todos que se entregam sem relutância à sua paixão, acabou sendo devorado por ela.

"O homem urso" é, seguramente, o segundo filme que vi esse ano que imediatamente guardou sua cadeira no top 10 que faço a cada virada (o primeiro sendo "2046 - Os segredos do amor", do gênio Wong Kar Wai). É um filme sobre uma persona criada na solidão, persona essa que acaba se tornando mais forte que seu criador. Herzog é apenas mais um dos artistas contemporâneos que percebe - de forma muito lúcida - que o pequeno, o particular, o ignorado, é, geralmente, mais comovente do que o macro.