segunda-feira, outubro 23, 2006




Pato Fu - Toda cura para todo mal


Em um dos raros bons momentos do atabalhoado "Janela da alma" (2001), o mestre Walter Lima Jr. define, em poucas palavras, o que seria a beleza. Para ele, a idéia de beleza estaria atrelada à essência do mundo e dos objetos, e a beleza plena só seria atingida quando uma representação conseguisse chegar à síntese, ao irredutível do representado. Quando todos os adornos fossem retirados, teríamos o mundo em sua mais pura essência, e essa seria a definição de beleza para o artista depoente. Antes mesmo de conhecer Walter e poder conversar com ele sobre essa e outras belezas, lembro de ter essa declaração como um dos meus primeiros nortes de criação. O simples que não é simplório, mas sim que tenta despir o mundo de toda e qualquer maquiagem (uma beleza mais fácil, porém menos consistente) e achar uma beleza original intrínseca ao que é olhado, tornou-se uma referência artística para mim tão confiável quanto rara.

Confesso não ter ficado lá muito impressionado quando ouvi os primeiros discos do Pato Fu. Sem gerar maiores antipatias, a mistureba psicodélica que a banda buscava indiscriminadamente em suas primeiras canções - e que até hoje encontra ressonância em gostos estranhos que dizem ser esse o melhor período da carreira dos mineiros - me afastava. Porém, se a celebrada originalidade inicial do grupo me entediava, às vezes me pegava encantado com avulsas pérolas pop, como o caso da belíssima "Sobre o tempo", presente no segundo disco da banda (Gol de quem?, de 1995). Se, no início, canções do quilate de "Sobre o tempo" eram exceções, a cada disco o Pato Fu parecia se desvencilhar de seu projeto estético inicial para encontrar seu verdadeiro caminho. Embora as brincadeiras musicas da banda às vezes rendessem momentos do melhor humor (como a genial "Capetão 66.6 FM"), como regra sentia que faltava música aos discos do Pato Fu. Sobravam faixas, mas faltavam canções.

Essa sensação se atenuava um pouco mais a cada disco (a partir do excelente Televisão de cachorro, de 1998), e, com o tempo, comecei a perceber no trabalho da banda a busca pela beleza que tanto me impressionara no discurso de Walter Lima Jr. Em momentos memoráveis como "Canção para você viver mais", "Imperfeito" e "Um dia, um ladrão", a banda aos poucos abria mão de seus enfeites (que não deixavam de ser ruído) para buscar o sublime. Seja pela abordagem direta das palavras - que resiste bravamente às tentações das figuras de linguagem - ou pela simplicidade das melodias - que passam longe dos excessos de arranjo dos primeiros registros - o Pato Fu parecia conscientemente buscar a beleza irredutível, como que percebendo o talento bruto que tinha em trabalhar com menos elementos. Ao lançar o impressionante Mtv ao vivo - no museu de arte da Pampulha (2002), que além de boas releituras continha quatro excelentes novas canções, o Pato Fu parecia ter atingido a plena maturidade artística, assumindo conscientemente um novo projeto estético que poderia ser, até mesmo, lido como uma completa divergência de suas primeiras idéias (a troca do "mais" pelo "menos"). Era, portanto, de se esperar que o disco seguinte da banda fosse o melhor de sua trajetória.

Três anos depois é lançado Toda cura para todo mal (2005). A produção do disco já é um primeiro grande acerto: sai o excesso de agudo e esterilidade de Dudu Marote, e entra uma captação mais crua e ambiente feita pela própria banda. Se em palavras isso pode parecer dar indícios de um acabamento menos cuidadoso, minha inaptidão à escrita é quem me trai: sem o verniz "som livresco" de outrora, o Pato Fu consegue em seu sétimo disco de estúdio uma produção de profissionalismo sem paralelo no Brasil, valorizando as características da banda sem nunca pasteurizar sua sonoridade. Se antes a genialidade do baterista Xande Tamietti parecia amuada em estúdio, em TCPTM ela ganha uma espacialidade impressionante, rara no reinado de ProTools e SoundReplacer. Os arranjos, não necessariamente menos trabalhados que na primeira fase da banda, parecem mais focados do que nunca: samples; cravos; cordas; programações; tudo parece funcionar em nome das canções, gerando uma variedade sonora que nunca perde seu foco. Pela primeira vez, ao longo de todo um disco, o Pato Fu funciona somente para suas canções, sem em nenhum momento se deixar seduzir pelos atalhos que embolavam seus primeiros passos.

"Anormal", a faixa de abertura, é uma das mais belas criaturas pop dos últimos anos. Nunca antes a banda havia emprestado, com tamanha perfeição, a doçura inerente às suas baladas a uma canção tão pra cima. A melodia é base para uma bela letra sobre a descoberta do amor e tudo o que vem a reboque. "Uh, Uh, Uh, Lá, Lá, Lá, Ié, Ié", o primeiro single, é a mais interessante releitura feita do Jackson 5 desde o surgimento dos irmãos Hanson. "Sorte e azar" dá as mãos a "Agridoce" (e seu eficiente dedilhado de guitarra) como as baladas mais singelas do álbum - mais uma vez, aqui, rendendo algumas de suas melhores letras. "Amendoin" parece pegar o bonde posto em movimento por "Made in Japan" alguns discos antes, mas os belos arranjos de teclado evidenciam a evolução do Pato Fu na meia década que separa as duas gravações. "Vida diet" é Cardigans como o Cardigans já não é mais há anos, e a simpaticíssima "No aeroporto" vai buscar seus arranjos de cordas no trabalho de Danny Elfman para os filmes do Tim Burton. Até mesmo em seus momentos menos notáveis (como "Tudo" e "O que é isso"), TCPTM sustenta o interesse com uma coesão nunca antes vista no trabalho do Pato Fu. É "Simplicidade", porém, que parece ser a chave para a compreensão de toda a mudança: embora cumpra a função dos respiros de psicodelia que sempre entrecortavam as canções dos discos anteriores, a quinta faixa de TCPTM acaba sendo um dos momentos mais bonitos do disco (e, sem dúvida, um dos momentos mais especiais que já presenciei em qualquer show). O caipira-vocoder que entoa a simpática letra da canção parece ser a síntese da música do Pato Fu: a beleza que precisa ser buscada com esmero e paciência, e que reside justamente no irredutível, na simplicidade, naquilo que tomamos como garantido. O disco fecha com "Boa noite Brasil", que soma Super Furry Animals aos momentos mais delicados do Smoking Popes e rende uma belo final.

TCPTM não é apenas o melhor disco do Pato Fu; é o melhor disco lançado por uma banda de rock no Brasil em muitos, muitos anos. É o trabalho de artistas com um projeto consciente e sólido, que, após terem atingido sua maturidade, têm como único desafio uma lapidação cada vez maior de suas qualidades - sem que isso seja, porém, atalho para fórmulas sem vigor. John, principal compositor da banda, parece cada vez mais tomado por essa busca do belo irredutível, por encontrar a representação que se torna a única possível, pois se iguala à essência do que se propõe a representar. Ao atenuar o experimentalismo (que, em grande parte, era causa das eternas comparações aos Mutantes) e deixar de lado seus cacoetes menos interessantes (como as canções de Rubinho Troll, sempre os piores momentos de sua discografia), o Pato Fu parece não se preocupar com mais nada além de fazer boa música. E parece falar de si mesmo por meio da personagem de "No aeroporto", que confunde seus discos com uma carta de amor.

sexta-feira, outubro 13, 2006

E o VMB vai para... mim!

Confesso que não vi o VMB. Não costumo sequer assistir ao Oscar, portanto não me sinto motivado o suficiente para aturar piadas sem sal contadas por convidados e residentes sob a pressão do figurino (que já não dão nenhum show de carisma em condições ideais), sobre clipes ruins de bandas que normalmente não gosto. Antes de dormir, porém, costumo dedicar minhas últimas piscadas à TV, e acabei acompanhando um trecho da festa pós-festa. Embora o VJ que curte Radiohead pra caralho tenha tentado dar uma animada mantendo os convidados do "Pânico na TV" o tempo todo no vídeo, meu sono chegou rápido. Enquanto buscava o controle remoto perdido sob o travesseiro, o VJ que curte Radiohead pra caralho entrevistava a banda Banzé (ou BNZ!, como eles parecem preferir), que com o clipe de "Doce ilusão" faturara o prêmio de melhor vídeo independente.

Não tenho maiores lembranças da canção vencedora, mas me recordo de, na única vez que vi "Doce ilusão" na MTV, ter passado 90% da duração do vídeo pensando estar diante de um raro caso de um videoclipe brasileiro que refletia uma compreensão maior do formato por parte do diretor (o estreante Paulinho Caruso). Os outros 10%, porém, seriam um exemplo perfeito de como os profissionais brasileiros falham em compreender o que existe de mais essencial no videoclipe enquanto expressão artística/veículo comercial. O clipe de "Doce ilusão" é uma curiosa combinação de síntese e paradoxo, expondo ao mesmo tempo o grande potencial e as maiores armadilhas de um nicho ainda tão subaproveitado da produção audiovisual no Brasil.

Caruso parte do bom princípio de que um clipe se sustenta em uma boa idéia visual. Recorre ao já manjado, mas ainda razoavelmente eficiente, plano-sequência aparente (escondendo dois ou três cortes no céu ou em rampas de edição) para brincar com a realização do próprio vídeo: em vez de a câmera enquadrar a banda, a produção se torna tão sofisticada que é a banda que tem de correr atrás da câmera (para a frente dela, na verdade). Além do bom-humor na metalinguagem (o clipe parece debochar de todos os recursos de que dispõe, construindo a narrativa de forma que ela aproveite tudo que a produção tem à mão - em vez de produzir os recursos para possibilitar a narrativa idealizada), a brincadeira com a construção da mise-én-scène gera situações insólitas (como os amplificadores sendo empurrados por contra-regras, e a bateria, que ora é puxada em um carrinho, ora e desmontada e remontada para acompanhar o movimento da câmera) e uma boa discussão sobre a própria relação banda x diretor na produção de uma obra que deve representar ambos artisticamente (no caso, a banda que precisa "se enquadrar", não só para corresponder a uma idéia do diretor, mas também para entrar no quadro, de fato). Uma idéia original, que rende boas situações visuais (todo o desenvolvimento narrativo parte de contradições geradas por essa única idéia-base) e que instiga o espectador sem descumprir sua função de peça de promoção.

O problema, porém, são os outros 10%: antes de começar a canção, o diretor sente a necessidade de introduzir com um prólogo satírico, explicando que o clipe deveria ser gravado às pressas por conta de um atraso de produção. Esse prólogo - cuja encenação remete ao constrangedor "Só por uma noite", de Johnny Araújo/Charlie Brown Jr.- não só arruína a estranheza em potencial da situação (tudo aquilo que interessava pelo inusitado se torna apenas manifestação do já anunciado), como reflete a patológica necessidade que o videoclipe brasileiro tem de buscar historinhas, de "fazer sentido". Em vez de aproveitar um campo que é pura potência estética, cria-se uma amarra que faz com que os clipes tenham que ser "entendidos" pelo espectador, o que acaba destruindo a fruição. Não acredito que videoclipes não possam ter estórias (o extraordinário "Coffee and tv" do Blur não me deixaria tomar essa posição); o que incomoda é quando as estórias são criadas para justificar opções estéticas originais. O clipe de "Big me" seria legal se antes fossemos avisados de que se trata de uma sátira dos comerciais da Mentos? E "Sabotage"? Não seria a historinha de "Coffee and tv" apenas uma desculpa para que caixinhas de leite circulem por aí? O que nasce primeiro, o sentimento visual ou o roteiro em "1979"?

A necessidade de se fazer entender - justa e necessária em qualquer obra - parece, na maioria dos videoclipes brasileiros, tomar sempre um mesmo caminho. O excesso de didatismo, e muitas vezes uma falta de consciência de mise-én-scène ("Quem já perdeu um sonho aqui", do Hateen; "Memórias", da Pitty; todos os clipes do Charlie Brown Jr.; a maioria dos clipes do CPM-22; etc) condenam o videoclipe brasileiro a um eterno amadorismo, pois pior do que não fazer bem é simplesmente não conhecer o meio pelo qual você busca se expressar. É claro que temos exceções, como o cromatismo quase sempre instigante de Oscar Rodrigues Alves, a originalidade do rapaz do Gram, as referências não raro interessantes de Andrucha Waddington, e um par de bons clipes de bandas como Pato Fu, Bidê ou Balde e Los Hermanos (que para cada "Todo carnaval tem seu fim" comete três "Cara estranho"). Via de regra, porém, estamos entregues a bandas mal enquadradas ("Além de mim", do NX-Zero), idéias que travam as rodas na esperteza ("Você", do Dead Fish), roteiros de novela indie ("Um minuto para o fim do mundo", do CPM-22), clichês de representação ("A minha alma", do Rappa) ou referências mal compreendidas (como "Consumado", de Arnaldo Antunes, que desperdiça uma boa idéia visual ao tentar emular o universo felliniano sem entender a estética do Fellini). Os clipes do "Fantástico" não são tão passado assim.