domingo, dezembro 30, 2007

Fabito’s Way 2007 Mix

Aprimorando as minhas tradicionais listas de fim de ano (lembrando que esse ano já foi povoado de listas por aqui), resolvi fazer uma coletânea das minhas canções favoritas lançadas em 2007. Sempre gostei de fazer coletâneas, mas tornar o hábito público me dá um novo tipo de satisfação. Várias das canções que aparecem neste "cd" (tá na medida pra queimar em um disco, se é que alguém ainda faz isso) já ganharam linhas desse blog, mas a idéia era tornar a coisa um pouco menos abstrata reunindo as canções, de fato, para download. Segue, portanto, a trilha-sonora sugerida para os tops que começo a publicar a partir de amanhã. Logo abaixo, derramo-me sobre cada uma das canções com a redundância apaixonada que já lhes é familiar. E que 2008 seja um ano mais bacana pra todos nós!






















01 – Maritime – Guns of Navarone

02 – Josh Ritter – Right Moves
03 – Son Volt – The Picture
04 – The Weakerthans – Tournament of Hearts
05 – Against Me! – Thrash Unreal
06 – The New Pornographers – My Rights Versus Yours
07 – Ben Lee – Love Me Like The World Is Ending
08 – Driving Music – I Am Trying Not to Break Your Heart
09 – Josh Rouse & Paz Suay – Car Crash
10 – Bishop Allen – Rain
11 – Ryan Adams – Oh My God, Whatever, Etc.
12 – Feist – 1, 2, 3, 4
13 – Wilco – Hate it Here
14 – Velvet Revolver – The Last Fight
15 – Bruce Springsteen – Long Walk Home
16 – Arcade Fire – No Cars Go
17 – The National – Start a War
18 – Idlewild – You and I Are Both Away
19 – Jimmy Eat World – Here it Goes
20 – Of Montreal – A Sentence of Sorts in Kongsvinger

01 – Maritime – “Guns of Navarone”
do álbum Heresy and the Hotel Choir

Faixas de abertura são uma questão delicada, pois elas determinam a maneira como você vai se relacionar com toda a obra que vem em seqüência. Não à toa, raramente consigo abrir uma coletânea com uma canção que não abra seu disco de origem. Não é questão de respeitar uma intenção autoral, mas sim de não conseguir me desprender de um frescor característico que me parece intrínseco a todas as boas primeiras faixas. No caso de “Guns of Navarone”, é uma faixa que empurra o ouvinte com uma força realmente impressionante, não deixando muita margem para hesitação. É uma canção que gosto de ouvir pela manhã, e o fato de ela ser a minha mais ouvida no Last.fm diz muito sobre o quanto de fé meus dias depositam nela. Poucas coisas podem ser tão cafeínicas nas primeiras horas quanto uma boa seqüência de três ou quatro acordes, espalhada por guitarras sem curvas em 3 cravadíssimos minutos.

02 – Josh Ritter – “Right Moves”
do album The Historical Conquests of Josh Ritter

O Josh Ritter está, definitivamente, entre os compositores que buscam no passado as referências para se criar algo familiarmente novo. Há alguns posts atrás, escrevi aqui que “Right Moves” parecia uma composição perdida do Brian Wilson para o Travelling Wilburys; de fato, a canção tem tanto de Wilson quanto de Dylan, Petty ou Harrison. Seu arranjo também me lembra muito o primeiro disco dos TW, principalmente por ficar naquela mistura simpaticamente desengonçada de estruturas de composição tradicional com um desejo de renovação pop que marca o disco de estréia da superbanda. Embora Ritter não seja exatamente um grande letrista, o paralelismo entre a integração do homem com a natureza e do amor com a música não deixa de ter bons momentos (gosto, em especial, do verso “I heard the night birds picking up the song / You threw your hair back and sang along / And I realized that I might lose you, you might lose me / Drift apart in the night and never know why”). Ao fim, minha relação com música não está muito distante disso.

03 – Son Volt – “The Picture”
do álbum The Search

O Son Volt é a banda formada pela segunda metade criativa do fabuloso Uncle Tupelo: enquanto Jeff Tweedy foi dominar o mundo com o Wilco, Jay Farrar e sua banda seguem com seu alt-country mais tradicional, mas igualmente convincente. Em “The Picture” - o primeiro single e a melhor faixa do álbum The Search - a inflexão de Farrar por vezes evoca Michael Stipe, mas com impostação travada pelos dentes que mascam tabaco. A sensacional linha de metais que puxa a canção está, sem esforço, entre os melhores riffs do ano. O bom é que a banda tem plena consciência disso, e a traz de volta várias vezes durante a canção.

04 – The Weakerthans – “Tournament of Hearts”
do álbum Reunion Tour

Desde Fallow, album de estréia do quarteto canadense The Weakerthans, tenho John Samson como um dos mais habilidosos contadores de estória do nosso tempo. “Tournament of Hearts” acompanha um sujeito que não quer ir pra casa, e entorna suas angústias como pints de cerveja em um bar. O repertório de imagens de Samson é de sufocante expressividade: as flâmulas velhas que amarelam na parede; os integrantes de um time campeão do passado que, emoldurados em uma velha foto, desaprovam o comportamento do protagonista; o tira-gosto que pergunta o que ele ainda faz fora de casa. Tudo isso para lutar com a dificuldade que cerca todos os discos da banda: a falta de palavras novas que dêem conta de sentimentos que já não encontram expressão precisa em vernáculos empalidecidos pelo uso. É com essas imagens que Samson constrói mais um de seus inesquecíveis personagens, imortal em três minutos e meio de uma canção pop. Como bônus ainda temos a deliciosa brincadeira de “never ever”s do refrão; palavras que rolam pela boca como uma bala que nunca parece doce demais.

05 – Against Me! – “Thrash Unreal”
do álbum New Wave

A personagem de “Thrash Unreal” não está muito distante da angústia que toma “Tournament of Hearts”, e suas soluções são basicamente as mesmas: escapar das semanas bebendo e dançando a desesperança de uma vida diferente. Em um primeiro momento o coro de pa-pa-pa pode parecer golpe baixo, mas é só Tom Gabel atropelá-lo com a melodia do refrão para apagar a dúvida de que estamos diante de um dos mais vigorosos rockões do ano.

06 – The New Pornographers – “My Rights Versus Yours”
do álbum Challengers

Os New Pornographers não só fizeram uma das melhores canções do ano, como provavelmente fizeram a melhor letra. De certa forma, “My Rights Versus Yours” é uma resposta – embora essencialmente onírica, e por isso mesmo arriscada – às questões das duas canções anteriores: diante da angústia, resta sempre a oportunidade de se encontrar “a verdade em uma tarde livre”. A letra de “My Right Versus Yours” me faz lembrar o belíssimo passeio de carro ensolarado que toma o sonho dos garotos ao final de As Virgens Suicidas (embora seu lado mais otimista também esteja muito próximo de toda a segunda metade de Blissfully Yours), e muito da letra caminha em desequilíbrio parecido: são personagens em constante risco de perda (“The medicine, it still won't work / But there's dangerous levels of it here”), que seguem em frente tomados pela esperança de vivenciar, nem que seja por um breve instante, a essência do mundo (“Under your wheels, the hope of spring / Mirage of loss, a few more things / You left your sorrow dangling / It hangs in air like a school cheer”). Acho “miragem de perda” uma imagem de riqueza ímpar. É algo que eu gostaria de ter escrito.

07 – Ben Lee – “Love Me Like The World Is Ending”
do álbum Ripe

Quando passei da primeira para a segunda faixa dessa compilação, me espantei por ter conseguido enfileirar duas faixas com a palavra “lions” em suas letras. Mais espantoso (meio patológico, até), porém, é ver o desenho temático em que as canções foram se ajustando, e que só percebo agora, enquanto escrevo sobre cada uma delas. Com Ripe o Ben Lee sai de vez do conforto de singer/songwriter para indies, e entra no delicado terreno dos artistas com intenções francamente pop. O disco patina em diversos momentos, mas não o suficiente para apagar seu brilho. “Love Me Like The World Is Ending” é um complemento radiofônico a “My Rights Versus Yours”: enquanto a canção dos New Pornographers se entrega a um imaginário livre e dominante, Ben Lee busca conforto na promessa de uma frase vazia, de um lugar comum. A idéia de se extinguir para poder viver, porém, é a mesma, e Ben Lee não passa por ela sem deixar versos de comovente simplicidade (“And I know the sky is what makes the ocean blue”, ou “And they all say to pour it has to rain / So don’t complain if we get wet”).

08 – Driving Music – “I Am Trying Not to Break Your Heart”
de Demo 2007

Como o blog é meu, a coletânea é minha, e o ano foi meu, não pensei duas vezes em colocar uma das minhas canções aqui no meio também. De certa forma, o desejo é bastante próximo do último par de canções: navegar embora com a ironia que nos resta. Mas digo, sem rodeios, que colocaria meu filhote entre os mais adoráveis sem grande culpa: gosto muito, muito mesmo dessa canção. E não deixa de ser um conforto (e de, em retrospecto, fazer um sentido danado) perceber que minhas ansiedades são compartilhadas por algumas das canções que vêm encaixando as peças dos meus dias.

09 – Josh Rouse & Paz Suay – “Car Crash”
do ep She’s Spanish, I’m American

Após o belíssimo dueto em “The Man Who Doesn’t Know How To Smile” (de Subtítulo), o casal Josh Rouse e Paz Suay lançam o ótimo ep She’s Spanish, I’m American. A primeira faixa é “Car Crash”, uma das melhores e mais animadas canções já escritas por Rouse (chega a flertar com o funk, espalhando wah wahs pelos cantos). A letra da canção é quase uma transcrição de tudo que passa pela minha cabeça quando pego um táxi no Rio de Janeiro.

10 – Bishop Allen – “Rain”
do album The Broken String

A lógica de “Rain” é de niilismo diferente da de “My Rights Versus Yours” ou de “Love Me Like The World Is Ending”: para o Bishop Allen, as coisas só melhoram após ficarem realmente ruins por um dia. A melodia de “Rain”, porém, olha para o depois da chuva, para a cidade já limpa depois de a enxurrada tirar tudo do lugar. É um refrão incrivelmente sedutor, e a versão que você encontra nessa coletânea é exclusiva (‘cause I’m good like that!): enquanto a introdução de bateria é compartilhada com o fim da faixa anterior na masterização original, só aqui você pode ouvir o compasso inteirinho, sem ter que começar a dançar antes mesmo de entender o tempo da porcaria.

11 – Ryan Adams – “Oh My God, Whatever, Etc.”
do álbum Easy Tiger

Não me parece errado dizer que Easy Tiger se situa entre os discos menos inspirados de Ryan Adams: não há nada ali que faça jus aos dias de Heartbraker, Gold ou mesmo Jacksonville City Nights. Muito por Adams não fazer muita cerimônia em cair no piloto automático, desperdiçando momentos inspirados em canções que parecem se escreverem sozinhas e sem muita vontade. “Oh My God, Whatever, Etc” é uma das melhores do disco, talvez por lembrar mesmo a época de Heartbreaker. E se é uma pena que, na segunda estrofe, Ryan Adams não dê cabo à interessante primeira metade da canção (o homem que ouve pedaços da vida do vizinho pela parede), ainda temos uma melodia belíssima para levar na cabeça.

12 – Feist – “1, 2, 3, 4”
do álbum The Reminder

Eu tinha pensado em driblar a obviedade e colocar uma outra canção da Feist aqui. A questão é que “1, 2, 3, 4” é a melhor canção do ano, e tira-la desse cd seria como o Coutinho tirando “My Way” do final do Edifício Master só porque ia ficar um final bom demais.

13 – Wilco – “Hate it Here”
do álbum Sky Blue Sky

No dvd que acompanha a edição gringa de Sky Blue Sky, Jeff Tweedy diz que só queria escrever letras que sua mulher pudesse cantar sem temer pela sanidade do marido. De diversas maneiras, Sky Blue Sky é um longo pedido de desculpas, e em “Hate It Here” isso ganha uma transparência desconcertante: o homem que busca maneiras de passar o tempo enquanto espera pela sua amada, para só no final admitir que, na verdade, ele não sabe lidar com a realidade de que ela não mora mais ali.

14 – Velvet Revolver – “The Last Fight”
do álbum Libertad

Você sabe que o mundo segue correndo sobre os eixos certos quando bandas de rock ainda escrevem grandes baladas sobre os dias passados na cadeia.

15 – Bruce Springsteen – “Long Walk Home”
do álbum Magic

O Bruce Springsteen ainda canta sobre cidades mortas como ninguém, e “Long Walk Home” é o melhor exemplo a se encontrar no excelente Magic. Se a canção do Velvet Revolver fala da culpa do transgressor, o narrador de Springsteen parece sempre recém-saído da prisão: seu desejo de sorver o mundo é avassalador, mas é um desejo insaciável, pois esse mundo não é mais reconhecível. “Long Walk Home” tem ao menos duas grandes encapsulações desse sentimento: “The diner was shuttered and boarded /With a sign that just said ‘gone’ ” e o pai que diz ao filho “Your flag flyin' over the courthouse / Means certain things are set in stone / Who we are, what we'll do and what we won't”

16 – Arcade Fire – “No Cars Go”
do álbum Neon Bible

Funeral, o disco de estréia do Arcade Fire, continha um indiscutível hino: “Wake Up” era uma canção tão absolutamente grandiosa que extraiu elogios de meio mundo, e se tornou introdução para os shows da turnê Vertigo do U2. De certa forma, Neon Bible é um disco de anti-hinos, o que não deixa de ser uma resposta digna a toda a expectativa criada em torno da banda. Muito por isso, acho extremamente difícil isolar as canções do disco sem tirar sua força contextual. “No Cars Go” talvez seja a única exceção, o que faz bastante sentido: a versão de Neon Bible é uma regravação da canção, que já aparecia no ep de estréia da banda. A melodia esplendorosa faz contraste notável à simplicidade certeira da letra, gerando mais um belo momento de um dos grupos mais legais a surgir nos últimos anos.

17 – The National – “Start a War”
do álbum Boxer

“Start A War” talvez preceda o lamento conformado que Tweedy desfia em “Hate It Here”: o que temos aqui é o momento irreparável da separação, e o desespero de quem se vê empurrado à desagradável esquina da vontade contrariada. Se no brilhante Alligator Matt Berninger se firmava como uma das vozes mais profundas do pop atual, recitando as cinco linhas de “Start A War” ele soa como o canto da própria consciência. Poucas frases já traduziram tão bem o fim de um relacionamento quanto “Whatever went away I’ll get it over now / I’ll get money, I’ll get funny again”.

18 – Idlewild – “You and I Are Both Away”
do álbum Make a New World

Depois do fraco Warnings, promises, o Idlewild recupera parte do seu brilho em Make a New World com alguns pares de belas canções. “You and I Are Both Away” é da fração mais U2 da banda, de onde já surgiram coisas primorosas como “American English” e “Live in a Hiding Place”. Embora eles nunca tenham me impressionado pelas letras, às vezes pesco uma ou outra jóia de simplicidade, e “You and I Are Both Away” tem uma delas: “It's more than I am / To be more than I am”.

19 – Jimmy Eat World – “Here It Goes”
do álbum Chase This Light

Desde o fantástico Bleed American, o Jimmy Eat World vem se empurrando para o desconfortável limite entre quem não quer se levar a sério demais, e quem se leva a sério demais. Assim como Futures, Chase This Light se perde um pouco nesse buraco, sem nunca mostrar vontade de fato de sair dele. Mas em certas canções eles chutam a vergonha de lado e voltam a fazer música abertamente pop, com batidas de dance music, refrões pegajosérrimos e até um hey-hey-hey de frat party meio constrangedor. “Here It Goes” tem tudo isso, e por isso mesmo se sai como a melhor do disco. Quando levo meu discman (sim, eu ainda uso discman) comigo, sempre me flagro adequando o passo ao andamento da canção que me chega pelos headphones. “Here It Goes” ainda traz esse potencial de constrangimento: mais de uma vez já me percebi marchando pelas ruas da cidade, em uma ridícula dancinha involuntária.

20 – Of Montreal – “A Sentence of Sorts in Kongsvinger”
do álbum Hissing Fauna, are you the Destroyer?

De tudo que eu ouvi em 2007, o Of Montreal é a banda que eu gostaria de ter curtido mais. “A Sentence of...” abre Hissing Fauna como um Abba moderno, com programações divertidas e tiradas de humor na medida certa (quantas canções começam fazendo troça de bandas de metal norueguesas?). Além disso, construções melódicas bastante sofisticadas (em certo momento chegam a lembrar o que Brian Wilson tornava normal em Pet Sounds ou mesmo Smile) e uma ou outra imagem de inegável simpatia (“Our plane is sleeping on a cloud”) levam o baile da canção com uma vivacidade extremamente bem vinda. É pena que o resto de Hissing Fauna ainda não me pareça tão bom quanto seu começo. Fechar essa coletânea dessa maneira não deixa de ser um desejo de ano novo, esperando clicks e acenos amigáveis de canções tão sorridentes quanto essa.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

If everybody had an ocean

Em jornada prima próxima dos passeios de ônibus de “Vai e vem”, gratinava eu em um 110, sob o azul-croma de feriado que meu dia útil se negava a disfarçar. Lá na frente, esse mesmo calor revelava, ao translucidar com suor o uniforme do trocador, a ideologia da camiseta de baixo que não se intimidava frente o peso do trabalho: Every day is a good day for surfing.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Top 5 da semana

Em meio à confusão de natal+aniversário (já aceito parabéns nos comentários, embora espere ainda postar isso no dia 26)+passagem de ano, resolvi deixar cá uma última listinha, antecipando a listona que abre todo novo ano aqui, no Fabito's Way. Logo nos primeiros dias de 2008, portanto, começo a eleger meus melhores por cá – filmes primeiro, discos em seguida, como no ano passado. Depois de quatro necessários dias de descanso em Barra Mansa, encerrei meu 25 tentando matar a alergia crônica com os últimos copos de chope do barril do Natal, enquanto seguia quitando – pau-la-ti-na-men-te – minha dívida com o Rohmer. Foi uma belíssima maneira de enterrar o feriado, e não deixei de me enfurecer com essa vida ingrata de trabalhos fixos que não permitem realizar a vontade de ficar, por um dia ou dois mais, onde eu realmente gostaria de estar. Espero que no ano que vem eu consiga extrair os milhões que se escondem nessa carreira de roqueiro em potencial, para poder reclamar com um pouco menos de razão.

Filmes

01 - O Mundo (Shijie) – Jia Zhang-ke


Até hoje só tinha visto "O Mundo" em um rip baixado no eMule. Revendo o filme em um belo dvd área 1, é desnecessário dizer que minhas impressões foram ainda melhores. Jia Zhang-ke me ganhou por completo da primeira vez que vi "Plataforma", e seus filmes seguintes vêm mantendo um nível realmente assustador. O tal World Park, onde ele filma "O Mundo", me parece a locação perfeita para abrigar o misto de fascínio e repúdio que o atual estado de coisas na China põe em movimento dentro do diretor. É, de fato, um filme absolutamente embasbacante.

02 – Pauline na praia (Pauline à la plage) – Eric Rohmer


De Rohmer, até pouco tempo só conhecia "Conto de verão". Lembro ter visto o filme no cinema, com minha mãe e minha irmã. Elas ficaram extremamente irritadas com a canção do piratinha que alguém começa a cantar lá pela metade do filme, e saíram um pouco aborrecidas. Em mim, o filme deixou impressa a suavidade do desenrolar, a leveza climática, o desapego de Rohmer a tudo que o mundo tende a considerar grande em nome de coisas pequeníssimas. Dia desses me lembrei com carinho dessa sensação, e decidi mergulhar nos filmes do diretor. De fato, a locação de "Pauline na praia" me trouxe de volta – e com muita vivacidade – tudo aquilo que lembro de ter sentido em relação a "Conto de verão". A diferença é que, hoje, o tal apego miúdo de Rohmer me parece projeto de nobreza realmente insuperável. Seus filmes são um prazer só.

03 – Operação França (The French Connection) – William Friedkin


Outra dessas dívidas que ao pouco vou riscando do caderninho, o famosíssimo filme de Friedkin merece tudo que construiu ao longo dos anos. Inclusive "Os donos da noite", filme de James Gray que faz ao menos um par de homenagens a algumas das melhores seqüências do filme. É o tipo de situação em que pai e filho só têm a se orgulhar.

04 – O virgem de 40 anos (The 40 Year Old Virgin) – Judd Apatow


Finalmente vi o director's cut de uma das melhores comédias lançadas nos últimos anos. Mesmo com quase 20 minutos a mais, o ritmo de "O virgem de 40 anos" permanece absolutamente inabalável. Que venha a faixa comentada.

05 – Viver ou morrer (Dead or Alive: Hanzaisha) – Takashi Miike


É uma satisfação ver as filmografias (ou parte delas) de sujeitos tão interessantes quanto Takashi Miike e Johnny To sendo lançada em dvd no Brasil. Os incríveis dez minutos iniciais de "Viver ou morrer" parecem resumir todas as intenções do cinema de Miike, e o fato de o filme conseguir se sustentar depois dessa enxurrada diz muito sobre o talento de Miike como diretor. "Viver ou morrer" é um dos filmes mais extremos e descontrolados de um dos artistas mais extremos e descontrolados dos nossos tempos. Famoso por interesses temáticos peculiarmente desafiadores (só em "Viver ou morrer" temos cenas de bestialidade, escatologia, mutilação, muita droga, muito tiro – até de bazuca – e muito sangue), me impressiona como Miike acaba tendo ignorado seu impressionante talento visual. Vendo "Viver ou morrer", por muitas vezes me senti diante do mais direto herdeiro de Seijun Suzuki.

Canções

01 – "Long way home" – Norah Jones

Nas compras de Natal, me dei de presente o dvd "Norah Jones and the Handsome Band Live", de 2004. Assistindo à belíssima apresentação (filmada sem grande brilho de direção, a não ser pelos bonitos registros em passagem de som) fui surpreendido quando Norah Jones anunciou uma canção do Tom Waits, e logo tocou "Long way home" – uma de minhas faixas favoritas de Feels Like Home, seu melhor álbum. Amaldiçoei o fato de eu não comprar mais cds ou ler sobre tudo que ouço no Allmusic – locais onde posso ter esse tipo de informação de forma muito mais suave. A descoberta, porém, faz todo sentido: embora eu não conheça a versão de Waits (que, ao que parece, só foi lançada em 2006, no seu álbum triplo de sobras), toda a estrutura da canção sugere a interpretação do cantor. O trabalho de Norah Jones, porém, não é menos que extraordinário, e sua voz ganha um belo adorno (timidíssimo, me parece) ao vivo.

02 - "Take me anywhere" – Tegan & Sara

Ainda não fui de todo sugado por The Con – último disco de Tegan & Sara que já vem aparecendo em algumas listas de melhores do ano. The Reason, o anterior, tem canções agradabilíssimas, e "Take me anywhere" é a melhor delas. Além de artistas de talento, as duas canadenses são irmãs gêmeas e lésbicas. Sim, irmãs gêmeas e lésbicas. Se isso é pauta valiosa para qualquer publicação, não sou eu que vou fazer do Fabito's Way uma exceção.

03 – "Silly love songs" – Paul McCartney

Porque Paul McCartney sem vergonha de fazer músicas para discoteca é bom demais para se ignorar.

04 – "Beautiful girl" – INXS

Há muito tempo atrás, estava eu prestes a descer de um táxi quando uma familiar melodia de teclado começa a tocar no rádio. Deu vontade de ficar para ouvir o resto da canção, mas minha fobia de táxis foi mais forte. Meses depois, lá estava eu em minha aula de pilates quando o mesmo teclado encheu a sala. Foi só entrar a voz do Michael Hutchence para eu me lembrar do INXS – banda que nunca me dei ao trabalho de conhecer com um mínimo de cuidado. "Beautiful girl" é, com efeito, uma excelente canção. Logo depois o rádio veio se confirmar como relevante veículo de alegria, e foi vez de o Ben Lee entrar com "Catch my disease". Obrigado Antena 1.

05 - "Life On A Chain" - Pete Yorn

O Pete Yorn é mais famoso por suas covers - uma do Buzzcocks na trilha do segundo Shrek, outra do Ramones naquele álbum tributo de alguns anos atrás - do que por seu trabalho como compositor. Tremenda injustiça. Lá fora, a inclusão de "Strange Condition" na trilha de "Eu, eu mesmo e Irene" fez de musicforthemorningafter - seu primeiro álbum - um razoável sucesso. "Life On A Chain" é a canção que abre o disco, e o faz de maneira brilhante. Uma boa letra e um grande refrão seriam plenamente suficientes, mas ainda temos um solo de baixo surrupiado da cartilha de Peter Hook, que faz par a uma surpreendente intervenção de gaita. Seus discos não são regulares, mas musicforthemorningafter é o que chega mais perto. Ainda assim, Yorn conseguiu cravar um número considerável de faixas memoráveis em seus álbums seguintes. Basta uma audição de "Crystal Village" (de Day I Forgot) ou de "The Man" (de Nightcrawler) para ter certeza de que o talento de Yorn é vítima de grande subestimação.

quarta-feira, dezembro 19, 2007

Top 5 da semana

Vou tentar, a partir dessa semana, levar a cabo um top 5 duplo: uma lista de filmes, outra de canções. As idéias de o quê escrever para o blog não jorram como eu gostaria, e essas listas aleatórias deixam de ser inúteis ao me conformarem a uma mínima periodicidade, forçando as palavras ao convívio com o mundo. Parece-me um bom exercício.

Por fim (antes do começo), não sei qual a temperatura da descoberta, mas hoje cedo fiquei sabendo de duas grandessíssimas aquisições do Telecine Cult para 2008: “O mundo”, de Jia Zhang-ke, e “Three Times”, de Hou Hsiao-hsien, entram para a grade do canal em Janeiro. Mais do que duas belas estréias, a abertura do canal a dois dos nomes mais importantes do cinema mundial contemporâneo (somada ao lançamento de “Em busca da vida” nos cinemas do Rio, e da já anunciada aquisição de “A viagem do balão vermelho” para distribuição comercial) talvez sinalize a entrada definitiva dos dois realizadores no circuito brasileiro. “Three times” não é irretocável como “Millennium Mambo”, “Adeus ao Sul” ou “Café Lumière”; a culpa, porém, é de seu primeiro tempo (o do amor). A beleza que Hou Hsiao-hsien alcança na primeira de suas três estórias é tão estonteante que acaba dificultando a vida das partes seguintes (quem será capaz de fazer frente a um jogo de sinuca ao som de “Smoke gets in your eyes”? Quem?). Parece-me, porém, uma ótima iniciação à obra daquele que muitos consideram o mais importante realizador em atividade. De Jia Zhang-ke, basta dizer aos que viram “Em busca da vida” (filme que certamente entrará na minha lista de melhores do ano) que “O mundo” é ainda melhor. Além disso, também pesquei um “Close Up” na grade do canal. Resta torcer para que seja, de fato, o de Kiarostami, e não uma excentricidade de tradução.

Filmes

01 – Império dos sonhos (Inland Empire) – David Lynch


A minha sensação de que o fim de ano guardava as melhores estréias vem se confirmando.Mais do que uma obra-prima, “Império dos sonhos” é mais uma confirmação de um cineasta de espírito inquieto, disposto a desafiar até mesmo a sua própria (já consagrada) estética. É um desses filmes que pedem, de fato, uma nova relação até mesmo dos espectadores mais vacinados (e quantos fãs de Claire Denis não conseguiram passar por “O Intruso”?). No caso de Lynch, o movimento é extremamente saudável: seus seguidores mais cartesianos são tipo dos mais chatos em qualquer discussão sobre cinema. “Império dos sonhos” me parece radical o suficiente para faze-los engolir os risos (e as risadas desconexas de toda a encenação da família-coelho me parece um recado bastante direto a todos que sempre acreditaram estar rindo com David Lynch) e os manuais de instruções, acuando-os para o fundo da sala.

02 – Repulsa ao sexo (Repulsion) – Roman Polanski


O que mais me impressiona no cinema de Polanski é sua capacidade de ir borrando, progressivamente, o limite entre a paranóia e o desejo obsessivo. “Repulsa ao sexo” se entrega a essa ambição com a mesma voluntariedade que “O bebê de Rosemary”, e o resultado não é nada menos impactante. Além do mais, a carcaça do coelho morto é metáfora de literalidade tão desconcertante que faz frente ao choro sobre o leite derramado de “Não Amarás”.

03 – Irmãs diabólicas (Sisters) – Brian de Palma


Quanto mais rumo ao passado de Brian de Palma, maior a impressão de ser ele um desses raros casos (como Orson Welles, Tsai Ming-liang, Quentin Tarantino) de diretores que já nascem com o olhar absolutamente maduro. “Irmãs diabólicas”, um de seus primeiros longas (e não conheço nenhum dos anteriores), já é tomado por todas as questões que povoam a obra de De Palma: o duplo (que reaparece em “Síndrome de Caim”, “Vestida para matar”), a consciência extrema da mise-en-scène, o jogo com uma estética popular (o início de “Irmãs diabólicas” é quase idêntico em estrutura ao de “Um tiro na noite”), a referencialidade (e Hitchcock é apenas a ponta mais óbvia de um repertório extremamente vasto), a resignificação dos objetos pelas convenções (a bisnaga de confeiteiro que é empunhada como uma faca, nos primeiros minutos de “Irmãs diabólicas”, indicando o assassinato que virá a ocorrer pouco depois). É um filme em que a contribuição que me parece maior em toda a obra do diretor já está em pleno vigor: a câmera que nunca olha, sempre espia, espreita, vê o que não deve, gerando uma mise-en-scène no entorno da diegese (a mise-en-scène de quem olha). Essa obsessão marcará toda a obra de De Palma: da antológica seqüência do vestiário feminino de “Carrie” à câmera que sobe o telhado para testemunhar um assassinato em “Dália negra” (e que toma o centro da narrativa em filmes como “Um tiro na noite”, “Dublê de corpo” e, pelo que indica o pouco que li, “Redacted”).

04 – Noites de lua cheia (Les nuits de la pleine lune) – Eric Rohmer


Às vezes basta você colocar telas de Mondrian no quarto de uma das personagens (e deixar que a estrutura das telas transforme as linhas da janela de um quarto em uma composição apropriada), e colunas gregas na de outro para indicar como seus olhares sobre uma mesma relação podem ser dissonantes. Eric Rohmer tem uma habilidade invejável em conciliar o rigor com uma fruição inabalavelmente agradável; muito do que falei sobre Bergman na semana passada parece encontrar resposta direta nos filmes de Rohmer, e “Noites de lua cheia” é apenas mais um bom exemplo.

05 – Um amor jovem (The Hottest State) – Ethan Hawke


O filme de Ethan Hawke provavelmente não entraria nessa lista se sobrasse na conta. Mas, façamos justiça, é ele que inspira a minha primeira contribuição à revista Cinética – onde você pode ler minha a minha crítica sobre o filme. O convite para escrever na Cinética vem dar vazão às minhas impressões sobre cinema, e espero que seja apenas a primeira de uma série de contribuições. E sim, eu dei um jeito de enfiar o Wilco e a Feist no meu primeiro texto por lá também.

Canções

01 – "Ol’ 55" – Tom Waits

Eu sou absolutamente obcecado pelo Tom Waits. O problema é que às vezes eu me esqueço disso, e preciso que o Godard esfregue “Ruby’s arms” em meu nariz para me fazer perceber que eu deveria estar ouvindo toda a discografia do Tom Waits no repeat, dia após dia. “Ol’ 55” é a canção que abre o fabuloso Closing Time, e é a favorita dessa semana. Por nenhum motivo que não o de ser uma canção absolutamente irresistível.

02 – "Rain" – Bishop Allen

É uma grande ironia sofrer com três dias de chuva ininterrupta após passar a semana inteira cantando “Oh, let the rain fall down and wash this world away”. Nesses dias o Rio parece ser o único lugar capaz de desafiar o mantra de Travis Bickle, pois quanto mais chove, mais sujeira parece sair das entranhas da cidade. Dando fim à digressão, “Rain” poderia ser uma canção do Guster, mas só se nascida de uma parceria com o Gordon Gano, movida pelo ciúme doentio que “Careful” sente da frivolidade de “Amsterdam”.

03 – "Sinner Man" – Nina Simone

E quando eu achava, do alto de meu conforto, que “Novo Mundo” havia amarrado o imaginário visual sugerido pela canção, lá me vêm os créditos de “Império dos sonhos”, trazendo à canção uma intensidade que parecia ainda inexplorada.

04 – "The Silence Between Us" – Bob Mould

Bob Mould é um de meus compositors favoritos, e é sempre reconfortante ouvir uma nova criação sua e se sentir testemunha de forma tão plena. “The Silence Between Us” é uma canção belíssima, e vem confirmar seu District Line como um dos mais aguardados discos de 2008.

05 – "1, 2, 3, 4" – Feist

No fundo, acredito já ter perdoado a Feist pelo perdidão no Tim Festival. Mas dia desses eu tava vendo Mtv (sim, eu nutro curiosidades que às vezes escapam a qualquer explicação) e passou uma vinheta com um trecho do clipe de “1,2,3,4”. Desde então venho me perguntando se custava muito ela ter vindo até o Congo fazer a meninada mais feliz.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Top 5 da semana

01 – Carmen de Godard (Prénom Carmen) – Jean-Luc Godard – Nunca tinha visto “Carmen”, e ver um Godard pela primeira vez me é sempre uma experiência mais física do que intelectual. Nesse sentido, as ondas (do mar, da luz, das cores, das músicas, dos corpos) de “Carmen” são um banquete. E acho melhor nem entrar na beleza quase indecente que ele arranca de “Ruby’s Arms”, do Tom Waits, pelo risco de passar a noite toda escrevendo e não conseguir ir trabalhar amanhã.

02 – Novo Mundo (Nuovomondo) – Emanuele Crialese – É uma tristeza ver o que uma cópia ruim (mesmo nova) pode fazer com a fotografia de Agnès Godard. O preto empastelado, a dessaturazação, o contraste todo cagado... tudo tenta jogar contra o filme. Ainda assim, “Novo Mundo” é, como esperava, uma maravilha só.

03 Videodrome – David Cronenberg – Embora todo filme de Cronenberg me pareça uma síntese de todo seu projeto estético, “Videodrome” me parece ser o momento em que isso se dá de forma mais acabada, completa (o abraço à ficção, o cinema como arte essencialmente sexual, o sujeito em risco de anulação, as texturas). Não é meu filme favorito de Cronenberg (tendo a gostar mais de coisas menos acabadas e completas), mas é provavelmente o que eu recomendaria para qualquer pessoa querendo compreender melhor a obra do diretor.

04 A música de Guion (Gion bayashi) – Kenji Mizoguchi – Não me parece um grande Mizoguchi (não como “Contos da lua vaga” ou “Os amantes crucificados”, por exemplo), talvez por ser menos exuberante (nos travellings, no jogo de luz e sombra, nos enquadramentos). Ainda assim, poder conhecer mais um pedaço da obra de um dos mais importantes realizadores do cinema japonês (o filme reprisa na sexta-feira, no CCBB-Rio) traz sempre uma nova nuance a uma personalidade cinematográfica aparentemente tão consolidada. Enfim, nada como ver os filmes.

05 Sonata de Outono (Hostsonaten) – Ingmar Bergman - Não consigo ter outro sentimento em relação a Bergman que não um de ambigüidade. Porque ao mesmo tempo em que ele fez filmes que gosto muito, como “Morangos Silvestres” e, sobretudo, “Persona”, alguns de seus trabalhos – mesmo trazendo questões interessantes – me parecem pai dessa auto-comiseração chata, desse apreço pelo sofrimento e pelo drama fácil que define um certo cinema de “arte” de nossos tempos. É meio injusto culpar o pai pelos filhos feios, mas entre os belos amarelos de “Sonata de Outono”, entre os rostos sempre impressionantes de Liv Ullmann e Ingrid Bergman, entre o belo olhar para a câmera de Halvar Bjork e as vogais desconcertantes (em língua cheia de consoantes) de Lena Nyman, essa coisa toda batia com uma intensidade bastante incômoda.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Sobre sábado

Por mais que eu seja pagante dos mais dedicados, nunca realmente cogitei ir ao show do Police. Em primeiro lugar porque, com exceção de uma meia-dúzia de canções, não acho a banda lá grande coisa. Em segundo, porque qualquer show que burle meu código de sobrevivência em primeiras filas cobrando mais caro pelo privilégio das áreas vips não vai ver meu dinheiro. E em terceiro – e mais importante – porque toda vez que ouço uma gravação de rock brasileiro feita dos anos 80 pra cá e me irrito com os timbres magros e com aquele sonzico de Fender ensopado de reverb, não consigo afastar a suspeita de que, de alguma forma, o Sting está por trás disso tudo.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Top 5 da semana

01 – “Guns of Navarone” – Maritime – 15 audições depois, ainda me parece uma canção incrível.

02 – “My Right Versus Yours” – The New Ponographers – Não conheço o New Pornographers a ponto de me considerar fã, mas Challengers – o último disco da banda – é uma beleza. “My Right Versus Yours”, faixa que abre o disco disposta a não se deixar ser superada, é de um refinamento melódico próximo ao que marcava as melhores coisas do Left Banke.

03 – “Right Moves” – Josh Ritter – The Historical Conquests of Josh Ritter é ainda melhor que o belo The Animal Years, e “Right Moves” é só um dos destaques possíveis de um disco que beira o impecável. A canção parece ser uma gravação perdida dos Travelling Wilburys para uma música inédita do Brian Wilson.

04 – “Thrash Unreal” – Against Me! – O AM! lançou o disco mais rock do ano, e “Thrash Unreal” foi a primeira faixa a realmente me impressionar. Depois ela cedeu espaço para “New Wave”, “Up the Cuts” ou “Borne on the FM Waves of the heart”, mas na última semana o refrão dela voltou a ocupar fração considerável da minha cabeça, e me acompanhou por vários cantos da cidade.

05 – “Saddest Quo” – The Pernice Brothers – Às vezes ouvir um disco do Pernice Brothers traz efeito semelhante ao de se comer três sobremesas em seqüência. Mas quando eles conseguem arredondar todas as pontas de uma canção, se tornam de fato irresistíveis. Acho a letra de “Saddest Quo” de uma pureza meio cafona, mas a melodia é tão boa que fica fácil de passar por cima.

quinta-feira, novembro 29, 2007

Guns of Navarone

Existem poucas sensações tão bem vindas (e, por isso e para isso, raras) quanto à dos momentos em que nos vemos caindo de amores por uma canção logo na primeira audição. O estranho contágio dos segundos e a percepção de estarmos diante de uma peça memorável enquanto ela se desenrola – em surpresa que se aperfeiçoa a cada acorde - me parece o mais próximo que temos de uma memória afetiva musical (memória que independe do objeto em si e se encontra no afeto, bruto e simples – embora o clímax do crítico de cozinha que lembra o sabor dos pratos de sua mãe em "Ratatouille" me venha, agora, à cabeça). Ontem, em um desses dias raros como todos têm direito de ser, me vi dobrado diante de “Guns of Navarone”, faixa de abertura de Heresy and the Hotel Choir, terceiro disco do fantástico Maritime. A cada compasso me via seduzido, sugado pela extraordinária canção, e desde então venho interrompendo meus playlists do Winamp para ouvi-la mais uma vez. Foi como ouvir “Last nite” (ou “A magazine called sunset”) pela primeira vez novamente. E, como momentos como esse me parecem só encontrar razão na partilha, abandono-os em poucas linhas com o link da canção na página da banda no MySpace.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Top 5 da semana

Tive uma mudança meio brutal no meu horário de trabalho, saindo do turno da tarde e entrando para o incômodo mundo onde celulares despertam às 5h20 da manhã. Ainda assim, me parece um preço bastante ameno pelas tardes livres que, nessa semana, gastei – quase todas – nos cinemas da cidade. Não sei se a freqüência é o determinante, mas esses últimos dois meses do ano me parecem vir para compensar a magreza do cardápio cinematográfico de 2007: não só vi filmes bem acima da média, como já começo a guardar espaço na agenda das semanas seguintes para estréias vindouras que me interessam (“Lady Chatterley”, de Pascale Ferran e, sobretudo, “Novo Mundo”, filme de Emanuele Crialese que há muito tenho curiosidade de assistir, e que já tem trailer e cartaz circulando nas salas do Rio). É por isso que passo batido por uma mais que tardia vista impressionadíssima de “Os reis do iê iê iê” (primeiro filme de Richard Lester com os Beatles que até essa semana esburacava meu repertório de vida) em dvd e faço um top 5 dos mais recheados, só com filmes em circuito. Aproveitem a bonança, pois ela tem sido mais rara do que todos nós gostaríamos.

01 - Hotel Chevalier - Wes Anderson


Como entusiasta do cinema de Wes Anderson, foi com alguma tristeza que me peguei entediado por boa parte de seu último longa, “Viagem a Darjeeling”. Nenhum questionamento ao talento do rapaz; estão ali a estranha frontalidade de suas composições, a exuberância de suas cores primárias, os tons acima da encenação, o primoroso gosto musical, a pontualidade do slow montion, o silêncio de seu humor. O incômodo é que a leve sensação de desconforto que já marcava o terço final de “A vida marinha com Steve Zissou” apareceu com uma recorrência meio assustadora em “Viagem a Darjeeling”, e fiquei cá na poltrona como se estivesse em uma festa para a qual não recebi convite. Anderson continua um apurado compositor visual (alguns momentos de “Darjeeling” tem a força visual das telas de Miguel Calderon que Anderson usou como elemento de cena no irretocável “Os excêntricos Tennenbaums”), mas seu centro dramatúrgico me parece extremamente cansado (e cansativo) nesse seu último filme. Embora apareçam alguns elementos de construção bastante inspirados (a ineficiência completa de toda e qualquer ritualística externa; a belíssima seqüência do funeral do menino indiano; a redistribuição, como bem observou minha Clarissa, dos papéis familiares ausentes entre os filhos), “Viagem a Darjeeling” me parece a confirmação de uma anunciada (por parte da crítica) perda de fôlego artístico que eu ainda não havia sentido.

Seria preocupante se, antes de “Viagem a Darjeeling”, não fôssemos contemplados com uma pequena obra-prima de 13 minutos chamada “Hotel Chevalier”. Apresentado como introdução à estória de “Viagem a Darjeeling”, o curta realizado por Wes Anderson com Natalie Portman e Jason Schwartzman traz todos os elementos fascinantes de seus longas, sem o esgotamento narrativo que fere “Darjeeling”. A enxurrada de amarelos, a mise-en-scène criada pelos próprios personagens (a canção que o personagem de Schwartzman põe pra rolar em seu iPod, conferindo ao momento real um clima cinematográfico, me parece um resumo de muitas das intenções cinematográficas de Anderson), os belíssimos planos em slow motion (sim, a cena de nudez de Natalie Portman merece um inevitável destaque), a composição sempre estranhamente bem equilibrada, os movimentos de câmera meio zombeteiros, o texto que enfeita o vazio... tudo que faz Wes Anderson aos meus olhos aparece condensado em “Hotel Chevalier”, com economia e vigor absolutamente arrebatadores.

02 – Jogo de cena – Eduardo Coutinho


Assim como acontece com Wes Anderson, há dois filmes o projeto cinematográfico do gênio Eduardo Coutinho vem esbarrando em suas próprias paredes. Sem querer desqualificar “Peões” e “O fim e o princípio”, desde a obra-prima “Edifício Master” a obra do mais importante documentarista brasileiro me parecia aguardar um sopro de renovação. “Jogo de cena” não é, porém, uma ruptura. É a busca da essência da caminhada que indicará os destinos possíveis.

Embora muito se tenha dito sobre um suposto flerte com a ficção, regra do jogo (expressão utilizada por Coutinho como o recorte que permite a existência de cada um de seus filmes) continua a mesma: um filme que documenta encontros entre duas vozes (a de Coutinho e de seu entrevistado), buscando não no discurso, mas no próprio ato da fala, algo revelador. A mistura de atrizes (mais ou menos profissionais) com suas personagens (em “Jogo de cena”, todas mulheres) pouco altera a estrutura do filme: em Coutinho, todos atuam, e é esse olhar sobre si mesmo que interessa o diretor.

Muito me impressiona, portanto, o depoimento da atriz Andréa Beltrão, logo no início do filme. Mais do que um jogo do recontar, o que Coutinho busca é a verdade que cada boca adiciona seu discurso. A dificuldade da atriz em reviver certas nuances da personagem que inspira seu discurso me parece um dos momentos mais belos de todo o cinema de Coutinho: o momento da percepção do outro, da vinculação de cada história a seus protagonistas, da aproximação de retratista e retratado (no caso de “Jogo de cena”, sempre pelo viés da família, da filha que se torna mãe), da consciência de imagem e auto-imagem. Quando não se deixar escorregar nos excessos do dispositivo (a atriz que se revela por um “e foi assim que ela contou”, no final do depoimento, por exemplo), Coutinho faz um filme realmente belíssimo.

03 – Os donos da noite (We own the night) – James Gray


Não conheço nada da filmografia anterior de James Gray, mas me parece extremamente difícil driblar o deslumbramento (e por que faríamos isso?) diante de alguns preciosos momentos de seu “Os donos da noite”. Curioso que esse encanto não seja nunca buscado pela supra-estilização do gênero (aqui, o policial), mas sim por abordagens inventivas de sua essência mais tradicional. As fotografias de abertura, a canção do Blondie que embala o quase-coito e a impressionante pista de dança em plongé (é muito fácil filmar cenas em casas noturnas mal, e a força que vem de um único, breve plano de Gray me parece fruto de exímia precisão), o matagal que queima, a chuva que cega uma perseguição de carros etc. “Os donos da noite” parece combinar “O pagamento final”, “Os infiltrados” e “Zodíaco” e alcançar quase tudo o que há de melhor nesses três filmes.

04 – Antes só do que mal casado (The heartbreak kid) – Peter e Bobby Farrelly


Mais um filme dos irmãos Farrelly, mais um mergulho dedicado na projeção de preconceitos e expectativas que (re)moldam o mundo. “Antes só do que mal casado” não tem o fôlego dos melhores momentos da dupla (embora me pareça tão bom quanto “O amor em jogo”, o bom trabalho anterior dos irmãos), mas, por diversos momentos, o que parece uma atenuação se revela uma democratização da imperfeição, um deslocamento imperceptível que gera um ângulo absolutamente novo para as questões da dupla (e o reaparecimento de motivos clássicos da obra dos diretores reaparecem aqui justamente para se mostrarem esvaziados, pedindo uma nova abordagem). Também, como poderia eu não me dobrar diante de um filme que retrata o ápice da felicidade em um casal que corta a estrada ensolarada ouvindo “Rosalita”, e cantando a letra da canção alto o suficiente para abafar o barulho do motor? Eu posso ser mais fácil que uma manhã de domingo, mas a satisfação em ver uma cena como essa (que ainda serve de escada para uma das melhores piadas do filme) é prazer do qual não faço planos de me privar.

05 – Mutum – Sandra Kogut


“Mutum” poderia muito bem ser um grande filme se não tropeçasse na relutância da diretora em se entregar ao tempo de determinadas passagens (importantíssimas, porém). Ainda assim, o primeiro filme de ficção de Sandra Kogut (que havia realizado o bom “Um passaporte húngaro”) me parece muito mais interessado em se colocar diante do mundo de uma maneira autêntica do que um Karim Ainouz, por exemplo. Embora a montagem seja mãe dos problemas mais evidentes de “Mutum” e o do supra-comentado “O céu de Suely”, Sandra Kogut me parece se entregar mais na busca de uma estética, enquanto o filme de Karim Ainouz me parece reproduzir uma gestalt de “cinema de arte” contemporâneo, buscando atalhos para um sentimento que raramente está lá. Com todos seus tropeços, “Mutum” e a proximidade delicada de seu olhar sobre o universo que escolhe é não raro cativante (no meu mundo de associações desconexas, em momentos me lembrou “A floresta dos lamentos”, de Naomi Kawase). O trabalho impressionante dos atores e a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. escoram uma sensibilidade instigante, que tem tudo para se revelar mais intensamente na segurança dos trabalhos futuros.

sexta-feira, novembro 16, 2007

You used to be a stranger, now you are mine

Como blogs me parecem lar perfeito para platitudes taxativas, brado, aqui, do alto de minha cabeça, que o verso em negrito logo acima é, possivelmente, a melhor síntese já feita da relação do homem com o mundo. Existe ali uma apreensão da capacidade do olhar de fazer tudo se tornar seu, uma percepção do mundo como potência que aguarda ser iluminado pelo interesse de alguém disposto a se apaixonar que realmente me desconcerta. Bernard Sumner me parece um grande letrista às avessas: suas canções fazem pouco sentido enquanto unidade narrativa/poética, mas seu método parece ser o de um atirador de palavras. E embora muitas vezes ele gere versos que reverberam no óbvio de uma piscina vazia, por vezes saem um par de jóias (brincos, eu diria) que justificam o dadaísmo dietético de suas canções. Assim como o New Order sempre tropeçou em discos imperfeitos, Sumner talvez nunca tenha assinado uma grande letra. Ainda assim, existe algo na inflexão de sua voz que faz a aparente ingenuidade de certos versos se tornar concreta, viva, inquestionável. Nesses momentos, Sumner é o condutor do sublime. “Regret” é uma enormidade de canção.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Duas ou três coisas sobre Superbad


Salvo engano, desde a entrega total às salas do festival do Rio eu não pisava no cinema. Mantive as sessões caseiras e o cineclube em alta rotatividade, mas, se quando pensamos em cinema estamos falando de projeção em película, da solidão coletiva, da legenda que bate a cada fotograma, tirei, realmente, um tempo para dar folga ao hábito. Até que, nesse último fim de semana, fui com minha pequena assistir "Superbad - é hoje", de Greg Mottola, e me peguei pensando um par de coisas que me pareciam um bom ponto final para o silêncio-luto-pós-não-Feist que abateu esse blog.

Existem poucos momentos tão gratificantes quanto aquele em que percebemos a surpresa conquistada por um filme pelo qual nutríamos pouca ou nenhuma expectativa. Parte do arrebatamento vem da beleza da própria surpresa em si; por mais que tente, conscientemente, desarmar-me antes de cada projeção, a dedicação mais atenta ao cinema (sentimento que muitos chamam de cinefilia – palavra que sempre me deu calafrios por parecer vir acompanhada de um forte cheiro de café seco e um gorduroso excesso de vírgulas) traz consigo a dúvida de até onde seu gosto permanece seu. Falsa questão, claro. Mas, por mais que eu afaste toda defesa da pureza pela pureza, assistir a um filme que vai me ganhando aos poucos - misturando meu senso crítico com o gosto de espectador mais instintivo que às vezes se acanha diante das racionalizações – me vem sempre como um agradável exercício de afirmação de individualidade.

Mais apropriado impossível, portanto, que após tanto tempo longe dos cinemas eu me visse sorrindo com as belas imperfeições que aos poucos me aproximavam de “Superbad” de maneira pulsante, viva. Gratas surpresas tendem a reservar bons lugares na memória; ainda defendo praticamente sozinho a vontade que pareceu tomar Norah Ephron de rachar a cabeça no fundo da piscina de metalinguagem que afoga “A feiticeira”, e sinto que o silêncio crítico diante de “Superbad” pede, aqui, um par de parágrafos (escritos com tripas, há de se dizer).

O que mais me comove no filme de Greg Mottola é um interesse agudamente apaixonado pelo universo adolescente que evita o excesso de romantização nostálgico (penso na série “Anos Incríveis”, por exemplo) e o dedo em riste (sensação que – para ficar em um cineasta que admiro – vira e mexe mordisca o cinema de Larry Clark, por exemplo) que conecta boa parte das expressões adultas acerca do universo jovem. Os maiores méritos de “Superbad” parecem vir da idéia de que o que existe de mais interessante na adolescência é a sua existência enquanto tempo – esse incrível limbo entre a infância e a vida adulta que condena os jovens a um milhão de novas experiências por minuto. Se para Gus Van Sant algo é irremediavelmente sacrificado no processo, para Greg Mottola (e é preciso acrescentar os nomes dos roteiristas Seth Rogen e Evan Goldberg à lista) o que mais parece interessar é justamente o ato de descobrir (des-cobrir, de fato) que é a adolescência.

Em “Superbad” o registro desse tempo é apenas coerente com seu objeto. Se na série “American Pie” as piadas buscam graça em uma estrutura de gags circense, em “Superbad” elas são cuspidas com a falta de acabamento típico do universo dos personagens; são piadas de adolescentes, não piadas sobre adolescentes (não à toa, os únicos personagens que são aparentemente ridicularizados são os policiais – alvos mais que comuns quando se tem17 anos). Essa fé absoluta no universo que retrata ficou ainda mais clara por uma coincidência de projeção: após a saída de cena dos pré-adolescentes de vinte e tantos anos que figuravam o trailer de “Pode crer”, o rosto claramente jovem de Michael Cera (que interpreta Evan com precioso equilíbrio) ganha uma expressividade impressionante. Em vez de tentar fazer um panorama geracional, as piadas sobre MySpace, sites de pornografia e peitos recauchutados ganham, em “Superbad”, funções climáticas.

Climáticas, sim, pois é nos climas que o longa de Greg Mottola se revela, e nesse ponto “Superbad” acaba se aproximando de “Jovens, loucos e rebeldes”, ainda hoje meu filme favorito de Richard Linklater. Se a trama principal (dois garotos nada populares vêem na possibilidade de comprarem bebidas alcoólicas para uma festa de colégio a maneira mais rápida de se aproximarem das garotas que desejam) é rapidamente exterminada pela nossa falta de vontade de cumprir certas leis (uma criança de dois anos pode se embebedar sem esforço no Brasil), “Superbad” se safa pela força das sensações decorrentes do ato de descobrir que é a adolescência. Quando Evan percebe que está prestes a perder sua virgindade com a garota de seus sonhos, é inevitável que o espectador tenha a espinha esmagada pelo misto de ansiedade e curiosidade que congela as palmas encharcadas que tocam o desconhecido. É aí que “Superbad” se afasta do cinema besteirol ou da comédia física de onde ele aparentemente nasce (trata-se de um filme irmão, em produção, do magnífico “O virgem de 40 anos”), e se torna um filme doce, carinhoso e extremamente encantado com o universo que retrata.

“Superbad” talvez não seja sequer um grande filme (dificilmente entrará pra minha lista de melhores, ao fim do ano), mas acaba se mostrando uma das mais animadoras propostas de cinema dos últimos anos. Pois se o cinema de John Hughes não consegue mais dar conta do tempo (e a falta de fôlego que condena os filmes de Jorge Furtado me parece prova bastante clara que essa estrutura já expirou faz tempo), é preciso buscar uma nova maneira de se olhar para ele. Em “Superbad”, Greg Mottola me parece extremamente interessado em buscar quais maneiras essas poderiam ser. Essa busca, por si só, já é suficiente para me emocionar ao longo de toda a projeção.

quinta-feira, outubro 25, 2007

Prova irrefutável

De que toda mulher é escrota e todo homem é babaca.

quarta-feira, outubro 24, 2007

De Souza

Sempre tento desviar das epifanias pulguentas que marejam os olhos daqueles que romantizam cada vírgula do dia, na esperança que a brevidade do lume divino dê um brilhinho à ruminação do ir e vir quotidiano (ou, no mínimo, um post pro blog). Mas hoje, dia molhado de Rebouças fechado, confesso ter sentido o peso da hora perdida no metrô (em viagem que, de ônibus, normalmente não passaria de 20 minutos) flutuar sobre minha cabeça quando o garoto ao meu lado - uniforme azul marinho, cabelo bem penteado, não mais que 12 anos - gargalhou alto lendo uma revistinha do Cascão. Mantive os olhos no livro para não intimida-lo, e com o ouvido esquerdo o observei até chegar à minha estação.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Top 5 da semana

01- Millennium Mambo (Qianxi manbo) – Hou Hsiao-hsien – Há um tempo escrevi sobre como “Inbetween days” é a única música que eu poderia apontar com justeza como a melhor da história. Acho que se me pedissem para escolher o meu plano favorito da história do cinema, eu provavelmente elegeria o de abertura de "Millennium Mambo". Existe ali uma combinação muito rara de evidências de inspiração – as luzes da passarela, as jogadas de cabelo de Shu Qi, a narradora que comenta seu próprio passado, o slow motion, o bate-estaca de Lim Giong, a descida da escada – que me ganham como pouquíssimos momentos no cinema já me ganharam. Rever “Millennium Mambo”, meu filme favorito de Hou, é ponto alto de qualquer semana.

02- Flor de Equinócio (Higanbana) – Yasujiro Ozu – “Flor de Equinócio” é o primeiro filme em cores feito por Yasujiro Ozu, e conta a história de uma família que prepara o casamento de uma das filhas. Na fase final de sua carreira, Ozu fez uma vários filmes que abordavam essa mesma temática, com dramas sempre muito parecidos. Talvez “Flor de Equinócio” não seja o melhor deles – difícil competir com “Pai e filha”, “Também fomos felizes” ou “A rotina tem seu encanto” – mas possui as mais belas naturezas mortas já filmadas pelo diretor.

03- Down by Law – Jim Jarmusch – É interessante como o conto-de-fadas de Jarmusch só se realiza pro imigrante, e como os outros dois seguem, separados, na deambulação. Existe muito a se dizer sobre “Down by Law”, e entre as coisas que mais me agradam no cinema de Jarmusch está a inversão de quais seriam os tempos mortos de uma estória. Não é nada de novo – nem foi quando ele começou a filmar – mas é um olhar sobre o cinema que me interessa muito, e que Jarmusch faz muito bem.

04- “O prazer que ele demonstrava ao ouvir música, se bem que não fosse aquele êxtase encantado que pertencia apenas a ela, tornava-se precioso em contraste com a horrível insensibilidade dos outros, e Marianne era razoável o bastante para reconhecer que um homem com trinta e cinco anos podia ainda ter sentimentos profundos e admirar coisas lindas a ponto de se emocionar. Ela sentia-se perfeitamente disposta a fazer todo tipo de concessão que o senso de humanidade conferia à idade avançada do coronel” – trecho de “Razão e sensibilidade” (Reason and sensibility), de Jane Austen.

05- Branca de Neve - João César Monteiro – À expressividade de uma tela preta quando toda e qualquer imagem parece não mais capaz de dar conta.

domingo, outubro 21, 2007

Uma pequena revisão

1- Ontem acordei com "Here we go", do Shelter, na cabeça. Creepy.

2- No fotolog do Driving Music comecei a publicar uma série de fotos que eu e Clarissa temos produzido a partir das letras das canções da demo. Cada verso ganha uma transcriação visual livre, e a cada dia (ou quase) uma delas é publicada. A experiência tem sido bastante
estimulante, e acho que coisas bacanas podem sair dali. Fiquem de olho. Se quiserem, claro.

3- Se as listas de fim de ano servem para alguma coisa, é para sofrerem constantes revisões. Embora ainda esteja de acordo com os filmes que escolhi (e continue sem ter visto coisas essencias que poderiam acabar por ali), estou sempre (re)descobrindo discos que mereciam ter figurado entre os melhores de 2006. Seguem cinco razões pelas quais meu top 10 deveria ter sido, na verdade, um top 15.

Josh Rouse - Subtítulo

Há alguns meses recebi um email de meu amigo Jorgim me recomendando o disco Nashville, de um sujeito chamado Josh Rouse. "Ele canta sobre ruas, postes... todos os seus temas", dizia Jorgim. Nada longe da verdade. De lá pra cá, mergulhei na discografia de Rouse a ponto de
coloca-lo no topo de minha parada do Last.FM (passando Wilco, Feist, Bruce Springsteen, Ryan Adams e todos os meus outros favoritos). Embora Rouse, como Ben Lee, às vezes pareça meio retardado em sua entrega incondicional à pureza ("Life", que fecha Nashville, é um bom exemplo), ele é compositor mais consistente que qualquer um dos Bens, e seus discos são agradáveis como poucos nos dias de hoje. Nashville continua sua obra-prima, mas Subtítulo talvez seja seu segundo melhor disco. Se o email de Jorgim houvesse despertado meu interesse poucos meses antes, canções como "The man who doesn't know how to smile", "Summertime", "His majesty rides" e "Givin' it up" não só garantiriam um lugar de Rouse entre os melhores do ano; o colocariam, de fato, bem perto do trono.

Amy Winehouse - Back to black

Às vezes o hype faz algum sentido. Ninguém aguenta mais essa cafonice de reabilitação, de dente caindo e de dar idéia pra Pitty pôr laquê no cabelo e gravar disco de jazz; o que importa é que, ao contrário de Frank (que acho fraco, fraco), Black to Black tem músicas boas pra caramba, e que o timbre de Amy Winehouse deu uma necessária arejada na música pop atual. Mas quando alguém lança disco em dezembro, a culpa da ausência deixa de ser de quem faz a lista e passa para quem não se programou para conseguir lugar nela em tempo.

Maritime - We, the vehicles

Gosto muito de Glass Floor, primeiro disco da banda formada por Davey von Bohlen após o fim do Promise Ring (banda que, a meu ver, só se tornou merecedora da adoração que sempre lhe perseguiu com o belíssimo, e subestimado, disco final, Wood/Water). Quando ouvi We, the vehicles achei que algo se perdera na mudança de rumo de quase-Belle & Sebastian para quase-Coldplay. Deixei o disco de lado por um bom tempo e, quando voltei a ele, a aproximação com Coldplay me pareceu completamente amalucada, e percebi, ali, um disco até melhor que Glass Floor. We, the vehicles é menos afetado, tem cara mais própria e, o que importa, traz canções melhores. Como eles prometem um disco novo ainda para 2007, sigo com chance de me redimir. Isso, claro, se não achar que ele mais parece ser o disco novo do Coldplay.

I'm from Barcelona - Let me introduce my friends

Cheguei a mencionar o disco do I'm from Barcelona quando escrevi sobre o Belle & Sebastian. Faltou, porém, tempo para o disco assentar. Let me introduce my friends é divertidíssimo de se ouvir e começa com uma sequência de fôlego impressionante ("Oversleeping", "Collection of Stamps", "We're from Barcelona" e "Treehouse"). Além disso tem muito, muito glockenspil, tecladinhos, cornetas e tudo de mais bacana que o rock às vezes deixa de lado. Como na minha cabeça existe a categoria "banda de galerão" (que inclui o próprio Belle & Sebastian, Broken Social Scene, Arcade Fire, Lambchop, Polyphonice Spree, etc), é justo dizer que o I'm from Barcelona é quem melhor se saiu nesse nicho. Não só por compor ótimas canções, mas, principalmente, por conseguir manter 29 pessoas em uma banda, e fazer isso parecer apenas parcialmente ridiculo.

Josh Ritter - The Animal Years

Se Ben Kweller me fez prestar maior atenção em outros Bens, é hora de Josh Rouse atrair olhos para sua classe. Josh Ritter não está muito distante dessa leva de singer/songwriters que tanto me agrada; parece, porém, gostar mais de Wilco e Bob Dylan que qualquer um deles, e, com isso, foge dos momentos meio constrangedores que pontuam as carreiras de seus colegas. Se ele nunca erra totalmente o alvo (e o último disco do Ben Lee é um bom manual de como se atirar no próprio pé e condenar boas canções errando a mira em um verso), as letras de Ritter caminham em terreno seguro demais para grandes tacadas. Ainda assim, The Animal Years é um dos melhores discos de country/folk lançado nos últimos anos, e canções como "Wolves", "Girl in the war" e "Lillian, Egypt" colocam Ritter entre os compositores atuais que merecem acompanhamento dos mais entusiasmados.

terça-feira, outubro 16, 2007

Top 5 da semana + 1 convite

01 - Don't miss you at all - Norah Jones (canção) - Não sei se escolhi essa canção essa semana por a neve do primeiro verso me lembrar de "Christmas song", do Nat King Cole (música que dá o balanço a belos planos do "2046"), mas toda vez que ouço os dois primeiros discos da Norah Jones entendo perfeitamente porque o Wong Kar-wai cismou de tê-la como atriz no seu primeiro projeto norte-americano. Nesses dois discos, ao menos, Norah Jones chega, canção após canção, à beleza sem atalhos, à beleza aparentemente não racionalizada... coisa que só consegui encontrar paralelo na enxurrada de epifanias que são os cine-diários do Jonas Mekas. É uma beleza tão simples, tão bruta, que dá um pouco de vontade de chorar e sair por aí carregando essa tristeza boa que algumas coisas bonitas criam na gente.

02 - E la nave va - Federico Fellini - Pra mim não existe coisa mais bonita no cinema do Fellini do que o balé mesmo, a coreografia dos corpos (mortos, como bem diria Deleuze), o olhar pra câmera, o desfile. É um dado que conecta vários dos meus filmes favoritos (penso aqui em filmes que vão de "Carrie, a estranha" a "Beau travail") e que em "La nave va" me parece especialmente inspirado.

03 - Prazeres Desconhecidos (Ren xiao yao) - Jia Zhang-ke - Um pouco do que disse sobre o Fellini se aplica, mais discretamente (mas com o mesmo vigor), também ao cinema do Jia Zhang-ke. As cenas com o personagem que fica cantando ópera na rua, em "Unknown Pleasures", seria um bom exemplo.

04 - Bruce Springsteen - Magic (álbum) - Só ouvi uma vez e me pareceu muito bom. Lançamento de disco novo do Bruce é sempre algo a se comemorar.

05 - Espionagem na rede (demonlover) - Olivier Assayas

* * *

Todo mês ensaio colocar, aqui, uma nota sobre o CinePUC, mas sempre acabo me perdendo nas datas. Há quase três anos organizo as sessões semanais do CinePUC junto com o Juliano, passando filmes de nem sempre fácil acesso e, mais importante, conversando sobre eles após as sessões. Sempre que possível, convidamos alguém interessante para participar do debate conosco, ampliando um pouco o escopo das conversas.

A sessão que acontece hoje, às 20h, na sala k102 da PUC-Rio é bastante especial. Exibiremos o belíssimo "Recordações da Casa Amarela", na segunda sessão do mês dedicado ao realizador português João César Monteiro. São raríssimas as chances de ver a obra de Monteiro no Brasil (e estamos exibindo cópias em dvd restauradas pela Cinemateca Portuguesa, com legendas - muitas vezes necessárias - em português), e hoje teremos a presença especialíssima do professor Hernani Heffner como convidado no debate. Hernani é das poucas pessoas que sinto vontade de ouvir por horas a fio, falando sobre o que lhe ocorrer. Ouvi-lo falar sobre um filme que adora, porém, se torna ainda mais especial. Lembro das memoráveis aulas que Hernani deu sobre alguns de seus filmes favoritos - "A viagem de Chihiro", "Eu nasci, mas...", "Viagem à Itália", "O grande momento" - e de como, a cada palavra do mestre, sentia aqueles filmes se acomodando, também, entre os meus favoritos. Poder conversar com ele sobre uma obra-prima como "Recordações da Casa Amarela" tem tudo para ser momento histórico. Quem tiver o bom senso de comparacer, verá. As sessões são sempre gratuitas. Será um prazer tê-los por lá.

sábado, outubro 13, 2007

Festival do Rio – Dia 14 e repescagem

DIA 14

I’m not there – Todd Haynes




Existe uma armadilha inerente a processos de reconstituição biográfica: como ordenar uma vida essencialmente caótica sem assassinar as ambigüidades? Qual estória deve ser tornada história? O que fazer quando o biografado, como qualquer pessoa, se mostra por demais contraditório para ser um personagem crível na dramaturgia mais tradicional? Não seria esse ato de criação de personagem – a partir da realidade ou buscando a realidade – o problema primeiro da ficção? O que fazer quando percebemos que a ficção parece, por motivos óbvios e absolutamente naturais, simplesmente não ser capaz de dar conta? É possível confinar a biografia de alguém a amarras narrativas sem, com isso, mutilar tudo aquilo que torna a vida daquela pessoa digna de maior interesse? Não seria todo processo biográfico necessariamente redutor? Por outro lado, não estaríamos, todos e o tempo todo, reduzindo o outro para tentar compreende-lo?

Diversos realizadores já se embrenharam na selva da vida alheia para tentar extrair dali algum sentido. Boa parte deles – “Johnny & June”, de James Mangold, vem imediatamente à cabeça – opta por ignorar os agentes complicadores para construir, a partir dessa simplificação, uma trajetória de pícaro, uma narrativa do herói clássico. Somente os heróis seriam dignos da história, então a solução é fazer de todo biografado um herói. “I’m not there”, último filme de Todd Haynes, é uma suposta biografia de Bob Dylan. Suposta porque, logo nos créditos iniciais, Haynes demarca seu terreno: baseado nas muitas vidas de Bob Dylan, diz a legenda. Ao longo de “I’m not there”, uma imagem (nunca mostrada) não me saía da cabeça: Todd Haynes faz um filme sobre uma pedra atirada em uma vidraça. Bob Dylan seria a pedra, e o filme de Haynes não seria tanto sobre a pedra, mas sobre os cacos do vidro partido.

Das muitas vidas de Bob Dylan, nenhuma delas ganha seu nome. Faz-se um filme sobre alguém que inventou seu próprio nome, seu próprio passado. “I’m not there” é, antes de qualquer coisa, um filme feito a partir de um dos mais influentes criadores de ficção do século XX (da história, diria). Em vez de absorver a realidade pela ficção – como é comum nas biografias – Haynes usa a ficção para absorver outras ficções, pois seu biografado fez de sua vida um espaço-tempo para a criação ficcional (processo semelhante, embora mais radical, ao adotado por Milos Forman em “O mundo de Andy”). Em “I’m not there”, Bob Dylan está tão presente quanto ausente: se o próprio título do filme sugere a ausência, as estórias filmadas por Haynes conferem a Dylan uma deística onipresença; quem não está em lugar algum, está, naturalmente, em todo lugar. O maravilhoso está na impossibilidade de sua apreensão, embora sua presença seja sempre sentida e reconhecida. A pedra já varou a vidraça; restam, agora, os cacos.

O primeiro plano de “I’m not there” já diz muito de sua intenção enquanto registro: em câmera subjetiva, caminhamos pelo backstage e subimos ao palco onde uma banda (e toda uma platéia) nos espera. Embora a câmera tome o ponto de vista de um dos personagens, enxergamos pelo preto e branco granulado que imediatamente remete a “Don’t look back”, documentário sobre Bob Dylan realizado em 1967 por D.A. Pennebaker. Como se aproximar de Bob Dylan sem a granulação, sem o preto e branco? Como pensar seu olhar sobre o mundo sem passar pelo olhar que o mundo tem sobre ele? Como alcançar o artista driblando os filtros auto-impostos pela sua própria imagem ao longo dos anos? Como fazer uma biografia a partir de imagens que constituirão uma nova imagem? Como criar fantasmas a partir de fantasmas? Se “I’m not there” é um filme sobre as muitas vidas de Bob Dylan, é também um filme sobre as impossibilidades (e, logo, sobre as possibilidades) da imagem cinematográfica em si. A preocupação que já aflorava em “À prova de morte”, “Planeta Terror” e na imagem-fantasma de “A floresta dos lamentos” toma também o filme de Todd Haynes: o cinema trabalha, sobretudo, com um imaginário imagético criado a partir de impressões físicas (inevitável lembrar de toda a teoria de percepção cinematográfica de Arnheim), e é preciso trabalhar a partir dessas questões. Se seu filme nasce a partir da impossibilidade de um certo registro, é preciso descobrir qual registro pode ser feito. É preciso – como Carl Dreyer ou John Ford – aprender a filmar a onipresença.

“I’m not there” se preocupa, principalmente, com os efeitos da pedrada chamada Bob Dylan. Temos ali alguns personagens mais próximos do Dylan que conhecemos – Jack Rollins (Christian Bale) e Jude Quinn (Cate Blanchett) revivem momentos famosos da vida do artista, enquanto Robbie (Heath Ledger) é um ator que interpreta Jack Rollins no cinema. A essa encruzilhada de camadas narrativas (o ator que interpreta um ator que interpreta um personagem que interpreta Bob Dylan), é somado um dos mais belos processos de decomposição artística já feitos pelo cinema: paralelamente às narrativas dos que representam Bob Dylan, correm as estórias de Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) – um garoto negro de talento musical nato, que canta o sofrimento da Depressão enquanto vai visitar seu ídolo, o Woody Guthrie que conhecemos, no hospital (como fez Dylan) – Arthur Rimbaud (Ben Whishaw) - poeta marginal que tem seu projeto artístico questionado em uma espécie de interrogatório policial - e Billy The Kid (Richard Gere), uma espécie de yojimbo, de estranho sem nome, personagem de western (referência ao filme de Peckinpah com trilha composta por Dylan) que troca de nome à medida que muda de cidade. Esses três personagens não só sintetizam valores que a narrativa atribui a Bob Dylan, mas o fatiam filosoficamente. A multiplicidade do artista é mais que respeitada; é encarada enquanto tal, e nisso torna-se o centro de interesse de Todd Haynes.

Tenho para mim que o primeiro passo de todo artista consiste em aprender a ser um bom ladrão. Como no essencial “Pickpocket”, de Robert Bresson, existe nesse primeiro estágio um misto de coragem e encantamento nos olhos do ladrão que observa seu objeto de desejo não para possuí-lo, somente, mas para dominar o trajeto até ele. O artista olha para as obras que admira com a intenção de decifra-la, de reproduzi-la, de conquista-la, de torna-la sua. Com a intenção de aprender os caminhos que o levam ao arrebatamento. Compõe músicas roubando frases de seus cantores favoritos, escreve um romance colando parágrafos de outros autores, faz um filme mimetizando seqüências inteiras na esperança de apreender o indizível, a ausente onipresença que percebia nas obras que sempre lhe encantaram. Em dado momento de “I’m not there”, uma senhora aconselha o jovem Woody Guthrie a abandonar o universo de suas referências para cantar sobre as questões do seu próprio tempo. É o momento em que o jovem ladrão percebe que os mesmos caminhos não necessariamente levam aos mesmos lugares, e compreende o roubo como um primeiro passo no exercício de abstração que é alcançar a mágica a partir do nada, a partir de um lugar que é só seu. Todd Haynes, portanto, não filma o Dylan linear, físico, o corpo que apodrece ao longo do tempo (e o fato de “I’m not there” começar com a morte do cantor é evidência clara disso). Filma o artista, não o corpo. Filma Dylan decomposto em idéias, idéias de tempo algum que seguem transformando o próprio tempo. Pois quem não canta sobre tempo algum, acaba cantando sobre todo o tempo.

REPESCAGEM

Não toque no machado (Ne touchez pas la hache) - Jacques Rivette



Dos filmes que ficaram para a repescagem, o único que realmente me pareceu essencial (dado o cansaço pelas duas semanas de festival pós-trabalho) foi “Não toque no machado”, filme de Jacques Rivette que só chegou nos últimos dias, e acabou tendo apenas uma sessão oficial (à tarde – para mim, inacessível) programada. Assim como falei de Chabrol, conheço pouco da filmografia de Rivette; gosto muito, porém, do que vi. Nenhuma surpresa, portanto, que sua adaptação do texto de Honoré de Balzac viesse fechar o festival em alta nota.

“Não toque no machado” conta a estória de Armand de Montriveau (Guillaume Depardieu), um general francês que comanda uma missão de restauração do Rei Ferdinando VII ao trono. Esse pano de fundo histórico, porém, esconde uma batalha pessoal de Armand: reencontrar Thérèse (Jeanne Balibar), novo nome adotado por Antoinette de Navarreins, uma antiga amante que, logo descobrimos, tornara-se freira em um convento espanhol. O mal-sucedido reencontro – que acontece, mas é logo interrompido pela própria freira – é uma primeira evidência do jogo de dominação que o longo flashback do filme revelará ter guiado o relacionamento de Armand e Antoinette.

O que parece interessar Rivette, porém, é como os protagonistas lidam com as constantes inversões da personalidade dominante do relacionamento. Em um primeiro encontro, Antoinette se aproxima de Armand, e demanda que ele lhe faça visitas noturnas diárias. O interesse dela, porém, é desviado por sua posição social (ela é esposa de um duque), e aquilo que começa como uma clara manifestação de desejo se torna, logo, terreno para um jogo de personalidade e posições sociais. Uma vez que Armand decide recuperar sua dignidade e não mais cortejar Antoinette, é vez de ela se sentir perdida sem a retribuição de seu interesse e de, então, tentar desesperadamente reconquistar o interesse de Armand.

Observando amantes que se matam está a elegantíssima câmera de Rivette, que nos conduz pelo contrastado ambiente de exuberância (com luzes altas demais para não denotarem a construção cênica) e baixeza dos jogos sociais interpretados por dois atores impressionantes (com duplo sentido). É com esse interesse distante e com alguma ironia (as cartelas; toque de gênio que fazem de “Não toque o machado” muito mais que um simples melodrama de época – coisa que, para não sair do festival, pode ser dita de “Uma velha amante”) que Rivette realiza mais um belo filme, e sobe para as primeiras posições de minha lista de cineastas a estudar mais cuidadosamente.

sábado, outubro 06, 2007

Festival do Rio – Dias 11 e 13

Pulei a terça-feira para comemorar os 10 anos de vida ao lado de minha Clarissa. Poder celebrar esse dia com ela foi viver o melhor filme que o festival nunca poderia passar. Agora, basta de intimidade.

DIA 11

Paranoid Park - Gus Van Sant




É padrão bastante recorrente no mundo do rock que bandas que sentem ter dominado um determinado gênero (e, normalmente, tenham sido bem sucedidas nele) alcem vôos tortuosos em discos movidos pela dissonância, pela necessidade de provar versatilidade e amadurecimento musical (ambas coisas bastante discutíveis, mas parto, aqui, do que me parece o ponto de vista desses artistas nesses momentos específicos). Podemos pegar os exemplos mais diversos; de Face to Face a Radiohead, de Yellowcard a Get Up Kids, de Cardigans a Saves the Day - é extremamente comum vermos compositores bem sucedidos (em especial, na música pop) abandonarem a base evidente de suas carreiras por essa auto-afirmação artística (por vezes sinal de liberdade; por outras, evidência de que a “maturidade” é conceito tão definido e previsível quanto o seu oposto). Mais comum ainda é que esses discos mais “autorais” provoquem uma cisão bastante clara com os antigos fãs, e que os mesmos artistas que haviam promovido essa mudança sintam a necessidade (e não discuto motivações) de retornar àquilo que os fez populares. Em alguns casos, esse suposto retorno vem com sabor de ressaca, e parece apenas mimetizar trejeitos do passado com a esperança de recuperar algo perdido no processo. O acesso de liberdade se torna, portanto, raiz de uma irremediável perda. Um velho em roupas de jovem. A morte da inocência. Em outros casos (e são esses que mais me interessam), o retorno se completa melhor etimologicamente, e vem temperado pelo aprendizado proporcionado pela guinada anterior. A vida como círculo, não como linha reta. Um tempo canino, diria. Uma vez que não exista mais o que provar a si mesmo, a liberdade de escrever boas canções retorna com uma força impressionante. Saem daí, comumente, os melhores trabalhos das carreiras desses artistas.

Em torta analogia, esse me parece o caso de Gus Van Sant. Após mergulhar de olhos bem abertos na frieza encantada do cinema de dispositivo da trilogia “Gerry”, “Elefante” e “Os últimos dias”, o que haveria ainda a ser provado? Uma vez que a exploração dos cruzamentos possíveis entre tempo e espaço tenha sido praticamente esgotada pelo diretor, como continuar? Que disco fazer? Gus Van Sant fez “Paranoid Park”; posivelmente, sua obra-prima.

Havia cortado “Paranoid Park” de minha lista de intenções ao saber que o filme seria exibido no festival em cópia digital. Conhecendo as condições de projeção do circuito digital carioca, preferi aguardar para ver o sempre estupendo trabalho fotográfico de Chris Doyle (provavelmente o melhor fotógrafo em atividade no mundo, só encontrando paralelo em outros gênios da luz como Roger Deakins e Lee Ping Bing) em condições mais apropriadas, quando o filme fosse lançado (pelo que sei, já está comprado para exibição) com cópias em 35 mm. Até que um acidente com a cópia digital impediu sua exibição, e a distribuidora enviou para o Rio uma bela cópia em película (e, reza a lenda, a circulação comercial, sim, será feita somente em digital). Essa mudança de planos obrigou-me a, com muito gosto, alterar meu roteiro e abrir um espaço para, a tempo, pegar a última exibição de “Paranoid Park” no festival. Ah, as linhas tortas!

Muitos dos dispositivos que marcavam a trilogia anterior (os longos planos de caminhada, a manipulação do tempo narrativo, o estado flutuante da mise-en-scène) estão presentes em “Paranoid Park”. A grande diferença, porém, é que se em “Elefante” – por exemplo – a dramaturgia nascia a partir dos dispositivos, em “Paranoid Park” são eles que estão a serviço da dramaturgia. Depois de tanto explorar as esquinas dissonantes da composição, nada mais reconfortante do que simplesmente sentar e escrever canções pop novamente, certo? Em termos, sim. “Paranoid Park” é tão interessante estética e dramaturgicamente quanto os filmes imediatamente anteriores de Van Sant, com a diferença de que sua fruição imediata me parece muito mais suave (ainda encontro pedaços de “Elefante” entalados em minha garganta sempre que sinto sabor semelhante em outras obras). O último filme de Gus Van Sant é tão próximo de “Os últimos dias” quanto de “Drugstore Cowboys”, e ao mesmo tempo parece trazer a seu cinema elementos absolutamente novos. Filme síntese como poucos o são.

Paranoid Park é o nome de um mítico skate parque em Nova York, uma espécie de Moby Dick para jovens skatistas. Construído e habitado por tipos tidos como marginais, Paranoid Park é o misto perfeito de sonho e pesadelo de garotos de classe média. Uma espécie de ritual de iniciação, mas também a evidência da entrada em um mundo menos seguro, menos previsível. “Ninguém nunca está preparado para o Paranoid Park”, diz um dos garotos do filme. Tomado pela curiosidade que o medo aguça, Alex dribla todas as suas relações (família, namorada, amigos e, posteriormente, a lei) em nome de uma primeira noite no Paranoid Park. Não vemos Alex andando de skate; sabemos que seu interesse no parque é mais mítico do que prático. É preciso estar ali. Tornar-se um deles. Passar da infância para a vida adulta. Passagem importante mas que, como os acidentados retornos das bandas do primeiro parágrafo, sempre ocasionam a perda de alguma coisa. Alex é aceito pelos locais do Paranoid Park, mas, no processo (e, definitivamente, é assim que o filme encara o acontecimento), mata uma pessoa (muito propriamente representada no filme por um segurança – figura bastante clara de autoridade, de limites).

Alex passa a ser procurado em sua escola (signo também bastante claro das amarras da infância) por um detetive que investiga o crime. Para compreender seu trauma, segue o conselho de uma amiga e escreve sobre o que aconteceu. Não conta seu segredo a ninguém; apenas escreve sobre ele. Não basta viver, é preciso contar, reinterpretar, reorganizar. É o texto de Alex que nos guia. Não seria ele, também, o filme que Gus Van Sant vem fazendo desde sempre? Não estaria o cinema de Gus Van Sant ancorado na necessidade de dar conta dessa transição da infância para a vida adulta? Não seria Gus Van Sant (e, ora, todos nós) irremediavelmente marcado pelo rompimento dos dogmas da infância (se aproximando muito, curiosamente, do universo de J.D. Salinger), e seu cinema não mais que a tentativa de extrair algum sentido desse choque pela ficcionalização? Com “Paranoid Park”, o diretor parece dar mais um passo nesse sentido. Poucos artistas olharam para o universo jovem com a generosidade e o interesse de Gus Van Sant. A tentativa de perceber o que se perde na adolescência (e seu cinema também fala muito sobre o que se ganha) pode estar fadada ao fracasso, mas Van Sant – como as expressivas correções de diafragma que Doyle explora maravilhosamente no filme – nos lembra que é preciso sempre reajustar o olho para olha-la melhor. Em algum momento, talvez enxerguemos, de fato, alguma coisa nova, e tudo passe a fazer um pouco mais de sentido.

DIA 13

Go Go Tales - Abel Ferrara



Todo ano me percebo inabalado por uma obra que parece ter tocado grande parte da crítica que mais me interessa. Ano passado foi a exibição de “O hospedeiro” no Festival do Rio (o filme foi exibido comercialmente este ano, e certamente acabará em várias listas dos melhores de 2007), de Bong Joon-ho, que me chegou de maneira diferente. Onde muitos viam um sopro de vida no cinema de gênero eu percebia uma certa falta de fé; nos momentos em que muitos riam de uma sátira política supostamente bem elaborada, sentia um nariz em pé, um deboche meio feio e ineficiente. Este ano, “Go Go Tales” acabou sendo a minha ilha de desapontamento.

O último filme de Abel Ferrara se parece, em alguns sentidos, com “A última noite”, filme de Robert Altman que reevoquei ao falar de “Cristóvão Colombo – O Enigma”. Enquanto os travellings de “A última noite” nos conduziam por um fascinante balé dos mortos, em “Go Go Tales” esses mesmos travellings nos revelam carnes bastante vivas. Se no filme de Altman a Prairie Home Companion encarnava a resignação diante da morte, no filme de Ferrara a boate Paradise insiste não deixar que fechem o caixão. O fatídico dia que a câmera decide mostrar traz uma sucessão de infortúnios: Ray Ruby (o dono do clube, interpretado pelo sempre interessante Willem Dafoe) não tem dinheiro para pagar suas dançarinas, seu sócio está decidido a retirar seu dinheiro do clube, a proprietária do imóvel diz não mais aceitar o atraso no aluguel. É nesse mesmo dia, porém, que Ruby ganha 18 milhões em uma trapaça na loteria, comprando um número absurdo de bilhetes. O bilhete premiado, porém, desapareceu.

“Go Go Tales” circula nessa alegoria do empresário de show business como o apostador que compra o maior número de bilhetes possível, trapaceia para ganhar na loteria e, como vemos ao final, continua não tendo dinheiro suficiente para tirar o pé da lama. De certa forma, Ray Ruby é representação viva do empresário, do produtor, da stripper que consegue produzir seu roteiro dançando para um figurão, da indústria do disco que trabalha com margem de 90% de fracasso, esperando que os 10% de sucesso cubram seus gastos.

O problema é que, depois de dadas as cartas, o filme vai ficando meio aborrecido, o desenrolar das situações nunca foge do previsível, e a curiosidade em relação àquele universo logo se transforma em tédio. Tirando alguns bons personagens – cozinheiro de hot dogs orgânicos – e um par de seqüências mais interessantes, o filme de Ferrara me fez pensar em todas as outras coisas que deixei de ver para estar naquela sessão. Sentir frieza de um filme que parece tratar sobre a pulsação da carne me parece, no mínimo, bem estranho. Sensação nunca bem-vinda, mas ainda mais angustiante quando o número de coisas a se ver é muito maior do que o tempo que temos para dividir entre elas.