sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Obrigado internet #02

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Melhores de 2007

01 – Império dos Sonhos (Inland Empire) – David Lynch



David Lynch é um sujeito silenciosamente ensurdecedor. Sua obra é de uma determinação tão impressionante que, na época da faculdade, encontrava detratores na maior parte dos professores (mesmo os melhores), mas, quando o escolhemos como homenageado no primeiro aniversário do CinePUC, era capaz de lotar a sala com a corja mais apaixonadamente chata de tipos que parasitam seu universo. A posição que Lynch cava para si é tão turbulenta pelos pontos onde ele injeta subversão: no fundo, David Lynch é um cineasta extremamente dedicado ao clássico (não à toa um dos olhares clássicos mais interessantes da escola de cinema da PUC – Walter Lima Jr. – era um dos poucos a se entusiasmar com seu talento). Em filmes como Veludo Azul, A Estrada Perdida ou Cidade dos Sonhos, o calor estranhamente afetuoso do olhar de Lynch parecia se manifestar na elegância de um movimento de grua, na coragem pulsante de um dolly, na tipificação extrema de seus personagens e locações. Apesar de sempre ter se colocado como um homem de artes plásticas (ou talvez por isso mesmo), Lynch sempre trabalha partindo do cinema – arte tecnológica, pictórica, visual, climática, musical, etc.

Aparentemente, Império dos Sonhos pode parecer uma ruptura com o que ele vinha fazendo até então. A aparência, porém, frustra apenas aqueles ligados em sua obra em um nível mais superficial (de superfície, de fato), que pensavam em Lynch como um criador de jogos de encaixe, de universos herméticos o suficiente para parecerem interessantes, mas não demais a ponto do estranhamento congelar o olhar. Pessoas que pensavam em David Lynch como o criador de Cidade dos Sonhos e Twin Peaks, mas esqueciam que, além disso, ele é também o artista por trás de The Amputee, The Grandmother e The Alphabet. Não é só por nascer de um conjunto de esquetes visuais que Império dos Sonhos nos faz lembrar tanto do Lynch dos filmes em curta-metragem, mas sim por seu último longa intensificar um projeto de pesquisa de texturas e de possibilidades narrativas que parece, visto em retrospecto, mas intenso em seus filmes mais curtos. Se muitos se relacionam com seus longas de maneira cartesiana, Império dos Sonhos aponta quase que exclusivamente para a possibilidade de imersão em novos universos que sempre marcou meu encanto diante da obra de David Lynch.

Mesmo para os mais ferrenhos cartesianos, Lynch ilumina reentrâncias suficientes nas 3 horas de projeção de Império dos Sonhos para todos terem onde cravar as unhas. Como em Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos, Lynch cria narrativas a partir da clássica noção do narrador inconfiável. Os mundos pensados pelo realizador são sempre intermediados pelo olhar; o estranhamento constante diante da sua obra costuma vir da não percepção de que esse olhar, porém, não é somente o nosso. Assim como a câmera e o espectador de cinema, as personagens de David Lynch projetam no mundo suas subjetividades. A diferença é que o diretor as torna friamente concretas, e registra esse mundo já transformado pelo olhar. A relação com seus filmes como jogos de encaixe é problemática justamente por isso: David Lynch constrói universos a partir de um nível de incompreensão que, embora variável, está sempre lá. A incompreensão é necessária em sua obra, pois olhar para o mundo (e ainda mais para o mundo visto pelo outro) é exercício de pontas soltas, já que o mundo não se estrutura cartesianamente. O som e a fúria, de Shakespeare e Faulkner, são evidências da vida desse mundo, de um giro autônomo que se aproximaria do religioso se Lynch não o atribuísse a alguém que olha. No fim das contas, é isso que parece conectar todas as peças de sua riquíssima obra: são registros de alguém olhando pro mundo.

Isso acaba marcando David Lynch como o diretor que mais pensou a posição do espectador de cinema desde, provavelmente, Hitchcock. Império dos Sonhos é um filme fascinante por se construir sempre pensando no olhar do espectador – esse olhar que se habitua a uma textura (o filme é todo rodado com uma PD-150 – câmera mini-DV que há quase uma década já deixou de ser padrão de mercado), a um encadeamento narrativo, a uma forma de enquadrar (quantas vezes vimos closes com tanto teto, filmados com a câmera tão próxima ao rosto?), às amarras de gêneros e convenções (pensemos no uso do som em toda a sua obra) e, até mesmo, ao que se esperar de um filme de David Lynch. Embora o filme mantenha uma coerência com seu projeto de cinema até então, ele também marca um relacionamento mais direto com o coração do que o interessa. Curiosamente, Império dos Sonhos, com suas três horas de duração e suas jornadas exaustivas em pós-produção, é um filme em busca da depuração.

Os elementos, porém, continuam todos lá. Segue o trabalho impressionante com a iconografia norte-americana, as erupções extraordinárias das cenas musicais (tenho pra mim que Lynch faria história se decidisse explorar mais dedicadamente o gênero), o raciocínio sobre o núcleo familiar (a família de coelhos é só uma nova encarnação de um interesse que já estava presente mesmo em Eraserhead), o corpo que se põe em movimento (o memorável começar da dança nos créditos finais), o jogo de sugestões no invisível que só parecem acentuados pela massa de pretos do vídeo digital. Império dos Sonhos não me parece, portanto, uma ruptura com um projeto anterior, mas sim um passo adiante. Se Lynch vinha nos conduzindo, filme após filme, pelo corredor de sua imaginação, Império dos Sonhos parece deixar claro que o fim desse corredor ainda não está tão próximo quanto se podia pensar. E esse corredor continua se mostrando, a cada novo filme, um dos caminhos mais interessantes que o cinema tem para nos oferecer.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Obrigado internet #01

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Melhores de 2007

02 – Maria Antonieta (Marie Antoinette) – Sofia Coppola


Em 1999, Sofia Coppola surpreendera a mim e a meio mundo com seu belíssimo longa de estréia, As Virgens Suicidas. Senhor de seu próprio encanto, o filme de 1999 era ornamentado pelo inegável talento visual da diretora, mas seu olhar duramente sensível ainda não deixava vislumbrar o que estaria por vir. Encontros e Desencontros, o longa seguinte, era a obra-prima que nem os fãs mais ardorosos do filme de estréia de Sofia pareciam acreditar ser possível. O impressionante balé de corpos, luzes e afetos do segundo filme de Sofia Coppola se revelaria não só um trabalho de vigorosa autenticidade (com todo seu encanto, As Virgens Suicidas poderia, sim, ser um primeiro inspirado trabalho de uma artista propícia a toda sorte de cacoetes e modernices inconvenientes), mas também um desses momentos especiais onde as peças parecem se encaixar em suave harmonia. Encontros e Desencontros é o filme que eu gostaria de ter feito (e eu nem tenho tanta vontade assim de fazer um filme), embora tenha plena consciência de que a aspereza hormonal masculina (por mais que eu seja mulherzinha) me manteria sempre distante demais daquela sensibilidade.

Então Sofia vem com Maria Antonieta, e mais uma vez nos surpreende. Afinal, quem poderia prever que uma diretora aparentemente tão envolvida com a superfície visual/sensória/cosmética do que filma estaria disposta a mergulhar em um projeto com a relevância política de Maria Antonieta? Curioso que, em filme onde as posições tomadas são tantas e tão bem demarcadas, ainda tivesse gente que visse apenas uma nova estorinha de uma garota aprisionada na solidão da pompa do seu tempo (o que o filme também é, mas não só). Porque além de ser mais um precioso retrato sobre a (não?) inserção das jovens mulheres no mundo (e, honestamente, quantas vezes já vimos esse universo ser observado com tanta propriedade quanto nos filmes de Sofia?), Maria Antonieta é uma constatação da necessidade de todo filme se relacionar diretamente com seu tempo. Em seus palácios habitados por canções pop, reis que falam (sem falso sotaque) sobre peitos e bundas, pares de All Star, e uma encantadora displicência em tons de rosa, Sofia dá a sacudida que os filmes históricos tanto precisavam: se a História é fonte reveladora da maneira como nos relacionamos com o mundo hoje, é essa relação que interessa, que precisa estar impressa na película. Que venham os anacronismos, os choques visuais e morais, afinal, é isso que vem alimentando a História desde que ela se tornara maiúscula.

Mas Maria Antonieta não é só um manifesto político. Temos Kirsten Dunst no papel de sua vida; temos a olhada para a câmera mais despudorada desde os créditos inicias de Mal dos Trópicos; temos uma trabalho de música absolutamente notável (como já era de se esperar, tratando-se de Sofia); uma construção de cena preciosa, e um rigor visual que nunca tolhe a sensualidade magnética da câmera de Lance Acord. Temos, também, algumas das seqüências mais fortes do cinema em 2007: a separação de Maria Antonieta de seu cão; o som da multidão enfurecida no extra-campo da sala de jantar real; a jovem rainha que oferece, na varanda, sua cabeça ao povo; o grafismo pop do “clipe” de “I Want Candy”; os momentos de Maria com a filha no Petit Trianon; a impressionante secura da cena final.

Enquanto o cinema contemporâneo joga o nome de Rossellini para todo que é lado, buscando no realizador italiano novos artifícios de aparência, Sofia Coppola talvez tenha feito, com seu Maria Antonieta, o filme mais rosselliniano que o cinema viu em anos. Se seu universo visual é outro, a urgência política de seu filme parece ir buscar coragem em Rossellini para promover transformações em uma maneira de o cinema olhar uma certa fatia do mundo que parecia, há muito, plenamente cristalizada. Dizer que Maria Antonieta é o Paisá de nossa época seria exagero? Talvez. Mas é um filme de uma urgência ímpar, que o cinema parecia há muito estar aguardando. E isso, definitivamente, não é algo que se vê todo dia.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Comic relief ou Reflexos de um complexo

Explorando o dvd de Encurralado (Duel), é curioso ouvir o Spielberg falar que os críticos franceses viam no filme uma alegoria para a luta de classes, e ouvir o Richard Matheson dizer que chamou o protagonista de Mann para abrir a possibilidade de um discurso sobre a condição do homem no mundo, enquanto eu, do lado de cá, podia jurar que era um filme sobre um cara que sabe que tem o pau pequeno.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Melhores de 2007

03 – Medos Privados em Lugares Públicos (Coeurs) – Alain Resnais


Se organizar listas já é um grande exercício de rememoração, escrever com alguma dedicação sobre cada um dos filmes – como me proponho aqui – às vezes estica os fios da memória até extrair vibrações que vão surgindo com o andar dos textos. Medos Privados em Lugares Públicos é filme que vi apenas uma vez, à época da estréia nos cinemas, em Julho de 2007. Não tive chance de rever o filme desde então – padrão que se repetiu com a grande maioria dos lembrados nessa lista. Escrever, portanto, se torna um exercício tão árduo quanto surpreendente, já que as imagens dos filmes retornam centrifugadas pelo tempo que nos separa, e o que sobra são apenas impressões avulsas de obras feitas com intenção de coesão, de uma unidade que já não está mais presente. Estes textos, portanto, são textos sobre o que ficou, o que sobreviveu ao esquecimento e ao excesso de exposição que toda dedicação traz consigo. Pensando que tento manter minha média (nem sempre cumprida) de ver um filme, entre novos e revisões, por dia, é de se imaginar que a relação com cada um deles seja sempre impura, contaminada por contatos enviesados, por obras que se aproximam na mera coincidência de meus dias.

Medos Privados em Lugares Públicos talvez seja, entre meus favoritos, o que se sustenta de maneira mais rarefeita na memória – justamente o filme de um cineasta que revolucionou o cinema tratando da lembrança e do esquecimento. Não deixa de ser surpreendente que quase 50 anos depois de renovar bastiões com seus Hiroshima, Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad, Resnais tome preciosa posição na inutilidade dessa lista com um filme tão bonito quanto seus clássicos. Os dispostos a procurarem, nesse novo filme, uma mimetização do estilo que Resnais inventara na virada da década de 1950 para 1960 devem se preparar para uma enorme decepção: existe, em Medos, uma intenção de ressignificar afetivamente o popular, o pouco erudito, o belo que flerta com o cafona (o que falar do extraordinário bar onde se desenvolve a maior parte de um dos encontros de Medos?) capaz de desmontar muitos dos espectadores mais cultivados – especialmente aqueles que se encastelam na comodidade da alta cultura.

Afinal, estamos, aparentemente, diante de um típico “filme do Estação”: Medos Privados em Lugares Público não deixa de ser um melodrama sobre a solidão de personagens mundanos, com os toques de comédia de costumes que tanto agradam as velhinhas (que, apontemos, aqui não é questão de idade) falantes das salas “de arte” do circuito carioca. Assim como Resnais já demonstrava o interesse proeminente pela cultura popular em Amores Parisienses (filme todo construído a partir do imaginário das canções populares francesas – dirigido, sim, pelo mesmo homem que, no passado, adaptara Robbe-Grillet), aqui ele vai buscar no centro de um novo cinema popular francês a base para suas indagações – sem com isso deixar de olhar afetuosamente para o gênero e para seus tipos e cacoetes mais claros. Alain Resnais é o tipo de artista atento ao mundo, para quem tudo - do holocausto às teses científicas - pode virar inspiração.

Mas esse interesse nunca fica na superfície, pois o talento do diretor inevitavelmente se sobrepõe às amarras das convenções. E é justamente isso que sobrevive, depois de tantos meses, do contato com o filme: Resnais filma como muito poucos chegaram a filmar. A inventividade dos enquadramentos e movimentos de câmera, o rigor impecável das composições, o trabalho notável com os atores. Sobram, de Medos, essas pequenas grandes evidências de seu incomensurável talento: a divisória de vidro que separa um dos casais em seu ambiente de trabalho (sem dúvida uma das melhores metáforas que um cenário já criou no cinema – barreira física mas, ainda sim, transparente, transponível ao olhar); o retrato que encara a câmera com um efeito narrativo que nunca conseguimos decodificar para além do efeito; o velho tarado que grita obscenidades dispostas a invadir o quadro; a neve que invade a sala de jantar em um maravilhoso salto de diegese; a janela dividida ao meio; os apartamentos em plongé; as fitas de vídeo que vêm e vão, carregadas de afeto. E, claro, as transições em neve – efeito de uma beleza tão assustadoramente simples que o cinema só consegue alcançar em um ou outro raro momento de iluminação de um artista em preciosa forma. O gelo da solidão que separa os personagens do filme – o intransponível limite do outro – mas que aqui aparece de forma festiva, em flutuante leveza que, como transição entre duas seqüências distintas obrigadas a conviver em um mesmo mundo, permite que os solitários possam, enfim, dar as mãos.

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Enquanto o blog segue em passos negligentes (que prometo tentar corrigir, dando cabo de nossos 10 filmes até o fim da semana), a produção para a Cinética segue frenética: estão no ar críticas da grata surpresa que é Desejo e Reparação e da grata confirmação de Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet como mais um grande filme de Tim Burton.