sábado, setembro 29, 2007

Festival do Rio – Dias 5 e 6

DIA 5

O estado do mundo – Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz, Aiysha Abraham, Wang Bing, Pedro Costa e Chantal Akerman




Filmes coletivos são via de mão dupla. Por um lado, temos a linha que forçosamente os conecta, adequando os projetos individuais a um projeto de produção maior, externo. Por outro, temos a chance de ver pequenas amostras de trabalho de diferentes realizadores, aumentando a chance (e isso se torna especialmente importante em um festival) de que a sessão não seja um desastre completo. Quando um filme coletivo traz, porém, nomes como Apichatpong Weerasethakul, Pedro Costa, Wang Bing e Chantal Akerman, a chance de pequenas epifanias individuais cresce exponencialmente. São eles, confirmo após assistir o filme, que dão as cartas em “O estado do mundo”, jogando para o limbo os fracos episódios de Aiysha Abraham e do brasileiro Vicente Ferraz (ao lado de trabalhos tão interessantes, seu “Germano” chega a ser francamente constrangedor).

“Luminous People”, o filme de Apichatpong Weerasethakul, abre o coletivo com um misto de ânimo e desapontamento. Ânimo por usar a textura do vídeo digital de maneira bastante expressiva (e o digital é uma questão importante em “O estado do mundo”), gerando alguns belos momentos visuais. Desapontamento por Apichatpong rezar, aqui, uma cartilha de cinema experimental muito definida, pouco ousada. Se em seus longas o diretor tailandês promove um choque desconcertante entre o cinema narrativo e o francamente experimental, em “Luminous people” ele cai para a seara das vídeo-instalações (nicho em que Apichatpong, inclusive, trabalha com freqüência), o que não seria problema se o diretor não se limitasse ao protocolar. Trouxe-me à mente uma fala de Jeff Tweedy (o homem das palavras do Wilco) em entrevista à Pitchfork, em que dizia que a música experimental é, de fato, o estilo que menos se transformou ao longo do tempo. Experimenta-se sempre de maneiras semelhantes, gerando o paradoxo da música (ou do cinema) experimental enquanto gênero.

“Brutality Factory” de Wang Bing começa com o balançar de uma câmera que sobe as escadas. Pouco depois observamos um homem dormindo em uniformes militares. No contracampo, vemos que uma mulher é torturada por oficiais chineses. Essa primeira seqüência resume bastante bem o que interessa no curta de Wang Bing: o uso do extracampo. Com um processo constante de seleção e reenquadramento, Wang Bing usa o tema da tortura para falar sobre a tirania do enquadramento, nos lembrando que a possibilidade de mostrar alguma coisa é, sempre, também a possibilidade de esconder uma outra coisa. Exercício que já gerou belos longas metragens (em termos de extracampo, “O buraco”, de Tsai Ming-liang, vem à mente como obra-prima do cinema recente) e que sustenta a curta duração de “Brutality Factory” sem nunca parecer uma simples operação de questionamento de registro.

Não assisti ao supra-comentado “Juventude em marcha”, de Pedro Costa, exibido no Festival do Rio do ano passado. Do diretor, conheço “Ossos” e “Casa de lava”; filmes que me interessam até certo ponto, mas nunca chegam a me arrebatar. Ainda não tinha, portanto, presenciado a guinada do diretor português em direção ao vídeo digital, e seu episódio em “O estado do mundo” acabou me impressionando muito mais que os longas do parágrafo anterior. A beleza e inventividade que Costa arranca do vídeo digital – tanto nos enquadramentos quanto na maneira de iluminar as cenas – é realmente desconcertante, e o universo que ele explora em seu “Tarrafal” – os estrangeiros exilados e marginalizados na Europa – foge habilmente da arapuca dos grandes temas. “Tarrafal” é uma belíssima pequena peça de cinema, e faz com que minha curiosidade por “Juventude em marcha” só aumente. Mais que tudo, é exemplo de um diretor que parece só ter ganhado na transição da película para o vídeo digital. Como acontece com Jia Zhang-ke, a proposta de Pedro Costa parece mais particular quando vista através dos pixels, e aquilo que me parecia um cinema de planos médios meio standard (caso de “Ossos”) ganha uma expressividade única no novo formato.

O melhor, porém, foi guardado para o final. “Tombeé de nuit sur Shanghai”, da cineasta belga Chantal Akerman, é um verdadeiro monumento. Com uma abordagem absolutamente minimalista – uma câmera digital em um tripé apontada para partes da cidade – Chantal consegue repensar toda a história do cinema em meia-dúzia de planos. Filmando objetos triviais que foram reconfigurados pela tecnologia (o barco e os prédios cobertos por telões luminosos), Chantal explora as propriedades do digital à cor e à luz com resultados semelhantes às telas de Turner ou Monet. Além de interessar pela maneira de olhar, o filme de Chantal Akerman traz à superfície da imagem muitas das intenções primeiras do cinema: várias das imagens projetadas nos telões dos prédios do plano final, por exemplo, são imagens da natureza (pássaros voando, peixes nadando, etc). Se nos lembrarmos que o cinema foi criado, antes de qualquer coisa, como registro de estudo da natureza, uma imagem como a do barco-tela se torna absolutamente sintética: o barco, produto humano que traz em si a imitação de habilidades animais, se torna também tela, e reflete imagens ligadas muito intimamente à essência de sua criação. É com esse filme circular e infinito que Chantal Akerman faz com que o “O estado do mundo” deixe de ser apenas interessante e se torne absolutamente obrigatório.

Contos de terramar (Gedo Senki) – Goro Miyazaki



“Contos de terramar” conta a história de um parricida. Se pensarmos que estamos diante do primeiro longa metragem do filho de Hayao Miyazaki, um dos mais essenciais artistas de nosso tempo, a opção de se começar a partir do assassinato do pai é bastante animadora. Infelizmente, o parricídio é exatamente o que não se confirma nesse primeiro longa de Goro Miyazaki (e meu gosto por piadas fáceis me obriga a chamar o rapaz de Gozo Miyazaki).

A adaptação de uma história em quadrinhos do pai (por sua vez realizada a partir da obra de Ursula K. Le Guin) traz um traço de honestidade naquilo que ficará cristalino ao longo de “Contos de terramar”: ao contrário de seu protagonista, Miyazaki filho é extremamente influenciado pelo trabalho de Miyazaki pai. Não seria problema algum se o diretor conseguisse criar algo novo a partir disso ou, no mínimo, realizar um filme tão interessante quanto os trabalhos de seu pai. “Contos do terramar” lembra obras-primas como “A viagem de Chihiro” ou “Porco Rosso” no que eles têm de mais evidente: o traço e a mitologia. Por conta disso, o filme acaba sendo uma mimese desconjuntada do estilo de Hayao Miyazaki, sem os toques de graça que fazem de seus filmes obras essenciais.

Se a sombra do pai é inevitável no traço e na ambientação, é aí que a opção por adaptar uma de suas história se torna imperdoável. Se nem mesmo os aprendizes do mestre da animação caíram nesse mesmo erro no belo “I can hear the ocean” (filme realizado por jovens animadores do estúdio Ghibli que demonstra um vigor enorme na simples mudança do eixo dramático para os relacionamentos de adolescentes), esse primeiro tropeço de Goro Miyazaki se tornou o filme menos interessante que vi no festival. Se não chega a ser propriamente uma decepção (que expectativas poderia eu ter?), é justo coloca-lo como uma curiosidade frustrada. Resta torcer para que ele realmente mate o pai em uma próxima vez.

DIA 6

Eu não quero dormir sozinho (Hei yan quan) – Tsai Ming-liang



Mesmo chegando com um ano de atraso (assim como “Síndromes e um século” e “Sempre bela”, o último filme de Tsai Ming-liang foi exibido na Mostra de São Paulo no ano passado), a chance de ver o último filme de um de meus realizadores favoritos já conferia uma excitação extra ao Festival desse ano. Embora algumas aproximações tenham sido feitas por críticos entre esse filme e seu trabalho anterior menos inspirado (“Goodbye Dragon Inn” , de 2003), recebi “Eu não quero dormir sozinho” com bastante animação.

Logo no início do filme, uma pequena mudança: após consolidar toda sua carreira em Taiwan, Tsai realiza sua primeira obra situada na Malásia, seu país natal. Esse pequeno deslocamento faz uma diferença enorme na composição visual do filme: saem a exuberância de tons de “O sabor da melancia” ou “A passarela se foi”, entra a sujeira e a paleta em tons de cinza da Malásia; troca-se as composições amplas, porém milimétricas, de seus melhores filmes pela desestabilização visual dos cortiços malaios.

Essas pequenas mudanças fazem com que o espectador suspeite, também, de uma mudança narrativa: ao colocar Lee Kang Sheng – ator presente em todos os filmes de Tsai – em dois papéis diferentes, o diretor dá falsas pistas ao espectador (seria esse o primeiro filme não-linear de Tsai Ming-liang? Estamos vendo uma estória, ou duas ou três que correm paralelas?). Esse acúmulo de pequenas mudanças leva a uma mudança mais essencial para a estratégia narrativa de Tsai Ming-liang: se em seus filmes passados o diretor confirmava, a cada plano, a interpretação do plano anterior, adicionando um detalhe à estória, em “Eu não quero dormir sozinho” as peças só encaixam nos últimos minutos. O resultado disso tudo é um filme mais árido, mais denso (e a ausência do extraordinário humor que entoa seus melhores filmes é bastante sentida), aparentemente mais difícil de se compreender. Por conta disso, passei a maior parte de “Eu não quero domir sozinho” oscilando entre a entrega total e o desinteresse. Até que chega o arrebatador plano final (um dos mais belos já filmados pelo cineasta) e tudo passa a fazer um sentido danado.

A estória é simples: Hsiao Kang está com Shiang Chyi (os mesmos personagens de tantos outros filmes de Tsai) na Malásia. Após uma tentativa de ganhar dinheiro fácil, o rapaz é agredido e largado na rua. Ele é acolhido por um grupo de malaios que carregava um velho colchão para o cortiço que dividem. Um deles passa a cuidar de Hsiao Kang, e desenvolve uma notável afetividade pelo chinês. Do outro lado da trama, Shiang Chyi trabalha como ajudante de restaurante. Divide seu tempo cuidando do filho doente (também interpretado por Lee Kang Sheng) da dona do restaurante, e divide seu espaço com essas mesmas pessoas (ela mora no sótão da casa, em cima do quarto do filho).

Mais uma vez, Tsai Ming-liang usará esses fiapos de trama para discorrer sobre o amor e a relação entre as pessoas. A água mais uma vez aparece como representação do afeto: enquanto o jovem malaio passa boa parte do seu tempo lavando Hsiao Kang (e seu colchão, suas roupas, seu apartamento), Shiang Chyi cobre o corpo do rapaz doente de cremes e talcos, em momentos que o afeto flerta constantemente com a violência. A mãe, como os personagens de “O sabor da melancia”, confunde sexo com carinho: obriga Shiang Chyi a masturbar o filho doente, pouco depois de se oferecer para Hsiao Kang num beco ao lado do restaurante.

Todos esses pequenos episódios são somados ao longo do filme, até que, na seqüência final, os elos se tornem claros: depois do acesso de ciúmes do protetor de Hsiao Kang ao vê-lo deitado com sua namorada em seu colchão, um plano cuidadosamente iluminado mostra o casal favorito de Tsai deitado no quarto de Shiang Chyi. Depois de alguns minutos, vemos uma terceira pessoa – até então escondida fora da área de sensitometria da película – se mover no fundo do quadro: é Rawang, o protetor de Hsiao Kang, que divide, agora, a cama com o casal. Por uma fresta no chão, vemos o jovem doente deitado no quarto de baixo. Com um corte de ambientes, agora vemos os olhos do jovem doente, que observa o que acontece no andar de cima. Estaria ele vendo a plenitude do afeto que nunca recebera? Em corte de diegese, Tsai mostra um trecho alagado do prédio em construção que Rawang e Hsiao Kang trabalham. Aos poucos algo surge no topo da imagem: um colchão que flutua sobre a água. Nele estão deitados Hsiao Kang, Shiang Chyi e Rawang. Flutuando ao lado deles, um abajur colorido que Hsiao Kang comprara para sua namorada. É com três corpos que flutuam sobre o afeto que Tsai Ming-liang encerra mais um belo filme, e mostra que seu cinema ainda está longe de se esgotar.

sexta-feira, setembro 28, 2007

Festival do Rio – Dias 3 e 4

DIA 3

Sempre bela (Belle Toujours) – Manoel de Oliveira



Um dos processos inevitáveis de se assistir filmes em seqüência (e um festival se torna terreno fertilíssimo para isso) é a busca de paralelos, de relações entre os filmes que se tornam mais evidentes pela proximidade em que são assistidos. Assim como outro veterano com filme na mostra – Claude Chabrol e seu “Moça dividida em dois”, abordado no post passado – o português Manoel de Oliveira também traz a moralidade para o centro de discussão de seu “Sempre Bela”. No caso de Oliveira, a fonte de inspiração tem endereço: “Sempre bela” é uma livre continuação de “A bela da tarde”, filme realizado por Luis Buñuel em 1967. O reencontro de Henri Husson (Michel Piccoli, em ambos os filmes) e Séverine Serizy (antes Catherine Deneuve, agora reencarnada por Bulle Orgier) é pretexto para que Oliveira depure ainda mais sua rigorosíssima mise-en-scène, e seus pequenos toques mágicos que fazem brotar exuberância de cenas incrivelmente simples.

Essa simplicidade, nunca simplista, é o que mais emociona em “Sempre bela”. Embora a promoção do reencontro de dois personagens célebres na história do cinema não deixe de ser um fetiche para o espectador (e Manoel de Oliveira é bastante econômico nessa relação, trazendo elementos do filme de Buñuel que sejam apenas suficientes em situar o espectador no universo de “Sempre bela”), é na habilidade de narrar do diretor que se escondem os grandes momentos do filme. Sim, pois quando se chega perto dos 100 anos de idade em plena atividade – como é caso de Oliveira – é a agudez desenvolvida pelo olhar que impressiona olhos ainda jovens como o meu (o plano do cão amarrado ao barco em “Um filme falado” talvez seja o mais claro exemplo disso). Trabalhando as particularidades narrativas de uma arte pouco mais velha que ele mesmo, Manoel de Oliveira cria pequenos momentos de deslumbramento onde outros diretores talvez vissem apenas mais um cenário, um diálogo, um gesto, um enquadramento.

Dois momentos chamam atenção particular nesse sentido: quando Husson e Séverine finalmente trocam suas primeiras palavras, o diretor desmonta a onisciência da captação de som e, num plano médio, acompanhamos visualmente o diálogo enquanto, na banda sonora, ele é absolutamente devorado pelos ruídos do ambiente. Essa estratégia já havia sido usada por Oliveira no primoroso “Vou pra casa” (com o mesmo Piccoli), mas reaparece aqui saudavelmente zombeteira, jogando com a relevância cinéfila das primeiras palavras trocadas por personagens eternos após 38 anos de separação. É quando, finalmente, Husson e Séverine conversam sobre o passado que Manoel constrói outro momento que parece chegar à tela já eternizado. Depois de uma longa e silenciosa refeição, presenciamos os dois personagens-lenda conversando em um ambiente iluminado apenas por velas que, ao longo da conversa, apagam-se, uma a uma. Os personagens se perdem no negro do primeiro plano e a cidade, ao fundo, enche o quadro pela janela. Com um recurso simples de fotografia prática, Manoel de Oliveira constrói um dos mais belos planos já feitos sobre a velhice e a passagem do tempo.

Essa economia extrema e absolutamente eficiente (o filme tem apenas 68 minutos!) conferem a “Sempre bela” uma fluidez impressionante. Manoel de Oliveira conduz o espectador por seus ambientes sem nunca esbarrar em um móvel, ou apertar a passada. O tempo das coisas é o tempo das coisas, parece nos dizer. Com mais esse belo filme, um dos mestres maiores do cinema me manteve contando nos dedos os dias para assistir “Cristóvão Colombo – O Enigma”, seu mais novo filme que estréia hoje no Festival.

DIA 4

A floresta dos lamentos (Mogari no Mori) – Naomi Kawase




Assim como a rotina do Festival traz novos filmes à lista de interesses, alguns são riscados – em alguns casos com certo pesar – da lista por motivos externos. Foi o caso de “Silenciosa luz”, filme de Carlos Reygadas que o cansaço me impediu de emendar em “A floresta dos lamentos”. Fiquemos, porém, no que foi visto; e, nesse caso, “A floresta dos lamentos” é experiência digna de várias notas. Despertando paixões como poucos filmes conseguem, esse último trabalho da japonesa Naomi Kawase pareceu polarizar as opiniões de todos que saíam da sala.

Em “Shara”, seu majestoso longa anterior, Naomi Kawase construiu uma das mais impressionantes seqüências de abertura do cinema contemporâneo: dois irmãos brincavam juntos, correndo pelas ruas da cidade, até que, em um “descuido” no enquadramento, um dos irmãos sai de quadro e desaparece, de fato, por todo o resto do filme. Esse irmão desaparecido não será mencionado após essa seqüência, mas sua ausência se tornará dado influente em tudo que nos é mostrado ao longo de “Shara”. Embora em “Floresta dos lamentos” não exista um prólogo como o do filme anterior, Naomi Kawase mais uma vez trabalhará a partir de ausências. Os personagens de “Floresta dos lamentos” estão reunidos em uma espécie de retiro de luto; um lugar onde as pessoas vão para aprender a lidar com perdas passadas – recentes ou não – e restabelecer um contato com o mundo vivo.

A ausência, porém, é confirmada nos diálogos: sabemos que Machiko está ali por ter perdido seu filho, e logo descobrimos que Shigeki tenta, há 33 anos, ficar em paz com a morte de Mako, sua esposa. O impacto de luto tão duradouro faz que Machiko se aproxime de Shigeki, para que ambos possam superar suas perdas juntos. A partir daí, “A floresta dos lamentos” sai do retiro e entra na floresta de fato; momento que também marca o mergulho do filme em um simbolismo bastante definido, mas sempre muito impressionante.

As chaves para o filme de Kawase são bastante visuais: a floresta como luto (e a vontade de Shigeki de se perder nessa floresta, de não mais sair dela), a pesada mala que Shigeki carrega sozinho, sem deixar que Machiko o ajude (assim como em “O sabor da melancia”, de Tsai Ming-liang, a “bagagem” aparece mais com o peso do termo em inglês do que com uma suposta “sabedoria” trazida pela palavra em português), a água como vida (Shigeki luta contra a enxurrada, não deixando que a vida o curso da vida o tire de seu luto) e a terra como mãe, como útero (a seqüência final do filme – em que Shigeki deita junto ao solo e diz se sentir bem ali – é a manifestação clara do desejo de retorno ao útero materno, ao ambiente de maior proteção).

A verdadeira batalha de Machiko e Shigeki contra o luto é, porém, entrecortada por belíssimas pausas para a interação com a vida. Em uma canção que tocam juntos ao piano, ou em uma brincadeira de esconde-esconde nos jardins do retiro (ou, mais tarde, em um campo de melancias), Machiko e Shigeki parecem ainda se maravilhar com a vida, e encontram, ali, os parceiros ideais na jornada pelo fim do luto (a presença do marido de Machiko, em uma cena em que culpa a mulher pela morte do filme, é especialmente esclarecedora em sua pontualidade).

É sobre a vida que sobrevive à morte que Kawase se interessa, e é aí que “A floresta dos lamentos” se aproxima muito de “Shara”. Após acompanharmos a exaustiva caminhada pela floresta de dois corpos ainda encharcados de vida, somos presenteados com uma seqüência tão impressionante quanto o sumiço do irmão em “Shara”: quando Shigeki deita-se à terra junto ao túmulo de sua esposa, o verde resplandecente de um jovem broto insiste tomar o primeiro plano, apesar do reenquadramento constante da câmera solta de Kawase. A floresta, o luto, talvez de fato insuperáveis; mas que também são fontes de uma vida nova. O túmulo que também é útero. A vida a partir da morte.

domingo, setembro 23, 2007

Festival do Rio – Dias 1 e 2

Estava tentando evitar a idéia de fazer uma cobertura filme a filme do festival por aqui. O problema é que saio de cada sessão cheio de idéias sobre o que vi, e tomado pela vontade de organizar essas idéias de maneira mais sólida e coerente. A única forma que conheço de fazer isso, porém, é escrevendo. Começo, então, esse diário de bordo (embora já traia, de cara, seu título, ao acumular dois dias em um só, e jogar o hoje para amanhã) com essa finalidade. Apenas impressões sobre filmes que acabei de ver e que gostaria de compartilhar com vocês.

DIA 1

Uma moça dividida em dois (La fille coupée en deux) – Claude Chabrol



Claude Chabrol está entre os diretores da nouvelle vague francesa que menos conheço. Assisti a alguns de seus filmes mais recentes, mas nada que me ajudasse a configurar uma idéia mais ampla de qual seria seu projeto estético, suas questões. Confesso, porém, que não havia me encantado com nenhum dos filmes que assisti. Seu lançamento anterior – o elogiado “A comédia do poder” – sustentara meu interesse em ondas bastante irregulares e, embora o considere um bom filme, sua morosidade não me era convite tentador para investidas futuras.

Mas a conveniência propiciada pelo Festival de poder emendar seu novo filme em “Síndromes e um século”, em um cinema que fica literalmente em frente à minha casa, acabou me seduzindo à sala, e me convencendo a começar o Festival por um filme que sequer constava em minha lista de intenções.

“Uma moça dividida em dois” começa com um cromatismo já impressionante: um passeio de carro onde toda a imagem é tingida de vermelho, enquanto, na banda sonora, ouvimos uma peça de música erudita. Logo que as cores tomam seus lugares tradicionais, o carro pára e continuamos ouvindo a música que nos acompanhou pelos créditos iniciais. Uma mão entra em quadro e, pacientemente, espera que a música acabe para que possa desligar o rádio. É com esse pequeno gesto – uma mão esperando uma música acabar, não querendo ferir a diegese criada por aquela música junto àquele passeio de carro – que Claude Chabrol, nos primeiros minutos de “Uma moça dividida em dois”, me ganha por completo. Alguns filmes correm horas sem conseguirem sequer sentar ao meu lado. Em um bom filme, como é o caso de “Uma moça dividida em dois”, um pequeno gesto de identificação (parar uma música antes de ela chegar ao fim me é experiência dolorosíssima) pode ser a chave que o leva ao espectador.

“Uma moça dividida em dois” divide Gabrielle (Ludivine Sagnier) entre o amor incondicional pelo escritor Charles Saint-Denis (François Berléand) e o galantismo do playboy Paul Gaudens (Benoît Magimel). Jovem jornalista com carreira em lenta (mas promissora) ascensão, Gabrielle é, ao mesmo tempo, cortejada pela sofisticação sedutora (embora um tanto cafajeste) de Charles, e a inconseqüência brincalhona (mas, como toda inconseqüência, desmedida e um pouco assustadora) de Paul. Charles tem uma carreira de extremo sucesso e um casamento que não demonstra intenções de abandonar. Paul vive das rendas da família – que é dona de um grande laboratório – e sente ódio mortal, embora pouco explicado, por Charles.

Se a trama traz à discussão uma certa ilusão de moralidade sabiamente problematizada por Chabrol, são os pequenos gestos – como o do início do filme – que fazem de “Moça” um belo filme. Gestos que denotam um controle exímio de mise-en-scène: não há, em todo o filme, um corte que não seja de absoluta expressividade; um movimento de câmera que não tenha um significado dramatúrgico bastante claro; duas seqüências que não sejam conectadas pelo ponto de corte que parece o mais preciso possível. É nessa carpintaria de mise-en-scène que Chabrol me conquista; carpintaria que, embora extremamente eficiente, nunca se perde em descabida exuberância.

Síndromes e um século (Sang Sattawat) – Apichatpong Weerasethakul



Embora tenha chegado ao Rio com um ano de atraso (o filme foi exibido na Mostra de SP do ano passado), “Síndromes e um século” era um dos títulos que mais ansiava poder ver nesse festival. Não é todo dia que temos a chance de ver, em película, um novo filme de um jovem realizador vindo de um canto do mundo sem grande tradição cinematográfica no ocidente (no caso de Apichatpong, a Tailândia) e que, com apenas 37 anos, já tenha realizado ao menos duas obras absolutamente determinantes para o cinema de sua época (“Eternamente sua” e “Mal dos trópicos” – os únicos filmes de Apichatpong que já tive chance de assistir).

O que tanto impressiona no cinema de Apichatpong (ou Joe, como é muitas vezes referido por ocidentais) é que, embora ele seja um cinema de enigmas (as viradas radicais de ambientação e roteiro em “Mal dos trópicos” e “Síndromes e um século” não me deixam mentir), a racionalidade pouco serve como ferramenta de solução. Seus filmes pedem um embarque do espectador, mas é um embarque essencialmente emocional; diria até sensorial. Filmes que entortam tempo, espaço, tradição, movimento, misticismo, narrativa; tudo isso para construir um universo maravilhoso e novo, que Apichatpong nos convida a experimentar por pouco menos de duas horas (mas que desejaremos durar para sempre).

Difícil encadear em texto, portanto, impressões de um filme que desconstrói a própria idéia de encadeamento. Após um plano de copas de árvores que posam frente ao céu (seria uma forma de Apichatpong conduzir o espectador da mata que toma a segunda parte de “Mal dos trópicos” para um novo ambiente, como o corpo encontrado nos primeiros planos de “Mal dos trópicos” parecia vir de “Eternamente sua”?), “Síndromes e um século” começa em um hospital rural. Uma médica entrevista um ex-soldado que quer trabalhar no hospital. Aos poucos descobrimos que, entre outras coisas, o candidato tem pavor de ver sangue. São desses extraordinários questionamentos de figura que nascem os personagens de “Síndromes e um século”: um médico que tem medo de sangue, um dentista que gostaria de ser cantor, um velho monge que maltrata galinhas e tem sonhos que se tornou uma delas, um florista que criou uma orquídea que brilha no escuro, um jovem monge que gostaria de ser dj e compreende sua santidade como a obrigação de vestir trajes açafrão, o paciente que joga tênis sozinho no corredor, a médica que esconde garrafas de bebida em próteses ocas. Personagens tão interessantes e pouco-explicáveis como a antológica cena do aparelho hospitalar que suga fumaça do ambiente, e aos poucos parece também ir sugando o espectador para um outro mundo.

Apichatpong parece, o tempo todo, querer nos dizer que a vida é bem mais complexa do que nossa simples razão pode compreender. Essa reconfiguração completa acontece tanto em termos narrativos (a história que, até a metade do filme, habitava um hospital campestre, migra-se para o ambiente urbano com a falta de consideração de um corte seco) como de linguagem (basta um pad grave de sintetizador tomar a banda sonora para que o iluminado hospital da cidade ganhe um ar de mistério, de suspense). Mais impressionante, porém, é que “Síndromes e um século” nos diz isso com um humor e uma leveza raríssimos no dito cinema “de arte” contemporâneo (talvez só encontrando paralelo em Tsai Ming-liang). Sim, pois parte do discurso de Apichatpong é que o mundo é maravilhoso em seu enigma, e que devemos receber esse enigma com um sorriso, e nos deixar levar. Nada mais apropriado que essa celebração termine como o faz: em uma extraordinária sessão coletiva de aeróbica em praça pública, onde um garotinho transita em meio aos adultos, e imita seus movimentos. Movimentos gratuitos, que, enquanto aeróbica, tem como único fim o próprio ato de se movimentar.

DIA 2

À prova de morte (Death Proof) – Quentin Tarantino



Embora eu costume evitar filmes já comprados para exibição comercial durante os festivais, “À prova de morte” me parecia inadiável. Apesar de o lançamento no Brasil tenha optado pelo desmembramento de “Grindhouse” em suas duas partes (a saber, essa de Tarantino e “Planeta Terror”, de Robert Rodriguez), a possibilidade de se assistir a um novo trabalho de Quentin Tarantino nunca deve ser deixada para depois. Felizmente, “À prova de morte” vem comprovar minhas fiéis expectativas: Tarantino é um dos diretores mais talentosos, originais e envolventes do cinema mundial, e seu último filme (que dava a impressão de ter nascido como um projeto menor) é tão bom quanto qualquer um de seus predecessores.

Desde “Cães de aluguel”, Tarantino vem filmando o cinema. A cada novo trabalho, o diretor adiciona uma nova camada de exploração do meio cinematográfico (enquanto linguagem, arte, comunicação, iconografia, mitologia moderna), e o díptico “Kill Bill” parecia levar esse projeto ao quase paroxismo. Se, em princípio, “À prova de morte” aparenta chover no molhado (o jogo de referências e auto-referências aparentemente esgotado pela exuberância de seu par de filmes anterior), em poucos segundos de projeção entendemos qual é o novo dado adicionado por Tarantino em seu último filme: a experiência cinematográfica do espectador.

Se, de certa forma, todos os seus trabalhos anteriores já tinham essa preocupação, nunca ela chegou tão à superfície (e nunca foi tão complexa) quanto em “À prova de morte”. Superfície de fato: uma das preocupações de Tarantino em seu último filme é com a relação do espectador com a celulóide, a película que carrega as imagens que são projetadas na tela do cinema. Uma primeira questão de “À prova de morte” é a influência cultural do artefato visual que é a película cinematográfica. Os primeiros rolos do filme são propositadamente sujos, riscados, com fotogramas faltando (e o urro da platéia masculina com a interrupção brusca da lap dance de Butterfly foi uma das mais impressionantes manifestações de interatividade com um filme que já vi), com grosseiras orientações de troca de rolos, e incluem até mesmo um acidente de projeção (a inclusão de um rolo preto e branco no meio do filme, como que enviado para exibição por uma distribuidora pouco cuidadosa). Muito mais que um jogo com o espectador, Tarantino traça um quase tratado sobre a percepção do espectador em relação ao papel afetivo da materialidade do cinema (como a inevitável estranheza pela ausência de batimento da legenda em projeções digitais, por exemplo), e como o meio material influencia na fruição artística dos filmes.

A segunda, e mais profunda, camada de análise do espectador em “À prova de morte” está na maneira de se filmar. Tarantino filma toda e qualquer coisa com envergadura de fetiche. Os pés das atrizes, os carros, as canções, o uniforme de cheerleader, os diálogos, as bundas, os amarelos, o sangue, as cenas de ação; tudo que vai à tela em “À prova de morte” é filmado como iconografia já consolidada. Impressionante, portanto, essa capacidade de Tarantino de conferir às imagens um estatuto que, a princípio, só o tempo e a memória afetiva pareciam capazes de conferir. O mais assustador de “À prova de morte” (mais que em qualquer outro de seus filmes) é a percepção de que a história da iconografia contemporânea está sendo escrita às suas vistas, e de que tudo que vemos na tela será tomado como referência de nossa época com o passar do tempo (as várias referências a “Kill Bill” são prova irrefutável de que Tarantino é, realmente, tomado por essa crença). Pretensão maior que o mundo, mas que é executada de forma leve e natural, como se fazedores de imagem produzissem imaginário como os pedreiros empilham tijolos.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Nasce um fantasma


Passei o último meio ano tentando fazer uma idéia ganhar vida. Aos poucos ela começa a dar os primeiros passos – já equilibrados o suficiente para permitirem um aperto de mãos e um sorriso de satisfação por conhece-los – e chega a hora de solta-las no mundo. Apresento-vos, portanto, o Driving Music.

Quando demos fim ao Invisibles, abracei o encerramento com a possibilidade de começar algo novo, solto de todas as amarras que faziam de minha antiga banda uma experiência menos prazerosa. Decidi gravar minhas primeiras novas canções sozinho, em casa, utilizando tudo aquilo que a tecnologia, e certa falta de respeito pelos direitos de propriedade alheios, me proporcionavam. Desenhei as bases de bateria no Reason Sound Factory e gravei todo o resto em casa, no meu PC. Essas cinco primeiras canções se tornaram a demo de estréia do Driving Music, que – como não poderia deixar de ser – disponibilizo para download gratuito em todos os sites do gênero que consegui achar.

Essas canções já estão prontas há um tempo – um par de meses, diria – mas, como os anos de cabeçadas no Invisibles bem me ensinaram, decidi mantê-las em casa até que a varanda parecesse arrumada. Chega, hoje, o dia de elas, enfim, debutarem.

O corte do cordão umbilical é marcado pela inauguração de Driving-music.com. Site – como todo o resto relacionado à banda – feito em casa, montado a partir do belo design feito pela minha Clarissa (que, como de praxe, é também autora das fotos). No site você encontra links para tudo que existe na rede relacionado ao Driving Music (este blog, inclusive), e as cinco canções para download.

Com toda a sinceridade do mundo, espero que gostem das canções. Escrevi-as com esse propósito, e, por isso, o fracasso seria de cortar o coração. Ainda assim, acredito que nunca estive tão preparado para a rejeição; se sentirem vontade de manifesta-la, não será menos bem-vinda. Sempre almejei chegar naquele estágio em que simplesmente se produz o que se sente, fazendo com que as reações a essa produção não sejam exatamente insignificantes (nunca fui a favor do autismo artístico), mas sejam localizadas no tempo com a certeza de quem abraçou seu passado da forma mais honesta e voluntária possível. Acredito que ainda não tenha alcançado essa plenitude mas, ao mesmo tempo, certamente nunca estive tão perto dela. Parece bom o suficiente para mim.

Então, cá está. Ofereço-lhes meu coração. Não aceitar é imperdoável desfeita.

* * *

Começa hoje, para mim, o Festival do Rio. Como nos últimos anos, o trabalho me tira das sessões diurnas e me faz abandonar filmes que gostaria de ver, em privilégio de outros que considero essenciais. A lista a seguir traz a minha possível programação, deixando margens para ocasionais adições e mudanças. O critério, portanto, foi conciliar o máximo das coisas que quero ver com os horários em que posso vê-las. Além disso, alguns filmes que estariam nessa lista (os novos de Rivette e Lumet, por exemplo) ainda não têm horário no site do festival.

Ainda não sei como vai ficar a rotina do blog durante o festival, já que a maior parte do meu tempo livre será transferida para as salas de cinema. Tenho o desejo de escrever coisas, embora uma cobertura de todos os filmes abaixo me pareça inviável. Veremos. Aceito sugestões, recomendações e companhia para as sessões.

21/09 - Sexta - Síndromes e um século (Apichatpong Weerasethakul) - Estação Ipanema 2 - 22hs

22/09 - Sábado - O Expresso Tarjeeling (Wes Anderson) - Downtown 1 - 16:30 hs

23/09 - Domingo - Belle Toujours (Manoel de Oliveira) - Estação Botafogo 1 - 14hs
23/09 - Domingo - A prova de morte (Quentin Tarantino) - Roxy 2 - 19 hs

24/09 - Segunda - Floresta dos lamentos (Naomi Kawase) - Laura Alvim 1 - 19:50 hs
24/09 - Segunda - Silenciosa Luz (Carlos Reygadas) - Laura Alvim 1 - 21:40 hs

25/09 - Terça - O estado do mundo (Chantal Akerman, Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz, Ayisha Abraham, Bing Wang, Pedro Costa) - Espaço de Cinema 1 - 19hs

26/09 - Quarta - Eu não quero dormir sozinho (Tsai Ming-liang) - Estação Botafogo 1 - 21:45hs

27/09 - Quinta - As testemunhas (André Techiné) - Estação Ipanema - 19:45 hs

28/09 - Sexta - Cristóvão Colombo (Manoel de Oliveira) - Estação Botafogo 1 - 20hs
28/09 - Sexta - Nascido e criado (Pablo Trapero) - São Luiz - 21:30 hs

29/09 - Sábado - Uma velha amante (Catherine Breillat) - Barra Point 2 - 16:15 hs
29/09 - Sábado - Mulher na praia (Hong Sang-soo) - Barra Point 1 - 18:45 hs

30/09 - Domingo - Go Go Tales (Abel Ferrara) - Barra Point - 14:30 hs
30/09 - Domingo - Império dos sonhos (David Lynch) - Ipanema 2 - 22hs

01/10 - Segunda - 4 meses, 3 semanas, 2 dias (Cristian Mungiu) - Palácio 1 - 21:15 hs

03/10 - Quarta - O casamento de Tuya (Wang Quan’an) - Estação Ipanema 2 - 20:30 hs
03/10 - Quarta - Lady Chatterley - (Pascale Ferran) - Estação Ipanema 2 - 22:30 hs

04/10 - Quinta - I'm not there (Todd Haynes) - Estação Ipanema 2 - 22:15 hs

terça-feira, setembro 11, 2007

Top 5 da semana (passada)

01 -
"NOVAS DIVAS
KATIA B * CIBELLE
FEIST * CAT POWER
AND DIRTY DELTA BLUES
MARINA DA GLORIA
SEXTA 22:30 26-OUY-07" - Texto do ingresso pro Tim Festival que repousa em minha gaveta.

02 - "Hey, every other hour I pass that house where you told me that you had to go, I wonder if the landlord has fixed the crack that I stared at, instead of staring back at you" - trecho de "Civil Twilight", do Weakerthans

03 -
"Não tenho muito tempo. Tenho medo de ser um só. Tenho medo de ser só um... alguém pra se lembrar" - trecho de "Canção pra você viver mais", do Pato Fu, ainda hoje coisa das mais bonitas de se ouvir ao vivo.

04 -
"Acho que eles devem ter mexido no final, porque no dvd o filme termina sem final. Ele termina como se a estória pudesse continuar. E no cinema brasileiro não tem isso, né? Quando o filme termina, ele termina mesmo." - Restauração livre da epifania do motorista de taxi pós-show do Pato Fu sobre "Tropa de Elite".

05 -
"Let's take a map across your pillow and breathe the sky in through your window. I'll stay in the riddle and watch your books cave in" - Trecho de "A Magazine Called Sunset", uma das melhores canções do Wilco.

domingo, setembro 09, 2007

O mesmo ar



Deixando uma margem para possíveis exceções apagadas pela seletividade da memória, nunca gostei de discos ao vivo. A maior parte deles sempre pareceu morrer em um limbo entre a eternidade das gravações em estúdio e a instantaneidade insubstituível das apresentações ao vivo. O estúdio é ambiente naturalmente assombrado pela idéia de permanência; o dever de transformar aquele momento no mais representativo possível, pois ele será, de fato, a representação daquela obra. Já o palco não; é o espaço do momento, da partilha. As gravações de shows sempre me pareceram um híbrido fraco das duas pontas; o equívoco de se transformar em definitivo algo que encontra beleza justamente na efemeridade. Em vídeo, esses registros ganham outras camadas. O simulacro permanece simulacro, mas se torna mais rico à medida que incorpora novos elementos (a imagem, a presença, claro, mas também a decupagem, o enquadramento, a montagem). Ainda assim, são raros os vídeos de shows que se tornam extraordinários para além do registro. U2 Go Home: Live from Slane Castle é agradabilíssimo, mas muito mais por registrar um evento extremamente feliz (do setlist à locação) do que por ser um registro criativo desse evento. O dvd de Jeff Tweedy que apareceu em um dos meus tops semanais é o flagrante de um artista extremamente interessante em plena atividade, mas não existe nada em sua maneira de lidar com esse material que torne o registro, em si, também extraordinário. Um vídeo pirata do Face to Face que copiei da falecida Spider permanece, ainda hoje, como um dos melhores shows que já vi – embora tenha sido filmado com uma câmera VHS, frontal, que às vezes ainda arriscava com texturas e efeitos duvidosos, feitos na própria câmera. Já filmes como Don't Look Back (de D.A. Pennebaker) ou Gimme Shelter (dos irmãos Maysles) são obras-primas em seus registros, mas parecem transitar com maior conforto nas filmografias de seus realizadores do que entre as obras musicais de seus protagonistas (Gimme Shelter ou Cocksucker Blues, de Robert Frank, foram, vale lembrar, prontamente enxotados pelos Stones de sua história).

Não seria descabido dizer que o Guster é a melhor banda pop em atividade. Enquanto nomes como Teenage Fanclub ou mesmo Belle & Sebastian deixam impressos em cada acorde seus esforços em alcançar o pop perfeito (muitas vezes – façamos justiça – alcançado), o Guster consegue, por vias muito menos referenciais, realiza-lo sem nunca lascar o acabamento. Em álbuns como Lost And Gone Forever e, principalmente, a obra-prima Keep It Together, o Guster alcança a perfeição inúmeras vezes, mas sempre parecendo chegar lá quase que por acidente. Não sei se o segredo está na formação pouco ortodoxa da banda (até Keep It Together o Guster nunca havia gravado uma faixa com bateria tradicional – substituída sempre pelo kit de percussão de Brian Rosenworcel) ou na falta de referências diretas das composições de Ryan Miller e Adam Gardner (sim, até pensamos em Big Star ou Violent Femmes, mas nunca com a intensidade que as influências afloram no Teenage Fanclub ou no Belle & Sebastian – para ficar nas bandas já citadas), mas o que parece fazer do Guster uma banda extraordinária é justamente sua capacidade de universalidade. Suas canções não são destinadas a nenhum público especial; estão aí para quem quiser ouvi-las. E quando uma banda consegue aperfeiçoar sua proposta no cume absoluto que é Keep It Together (sem dúvida um dos melhores discos da última década), só resta registrar esse momento especial de todas as maneiras imagináveis.

Guster On Ice é o primeiro registro ao vivo da banda. Gravados em Portland, Maine, os primeiros shows (duas noites consecutivas) em que o trio se torna oficialmente um quarteto (com a entrada de Joe Pisapia – até então presente como músico de apoio) foram lançados em um cd, que trazia como suposto bônus um registro em dvd dessas mesmas noites. E, embora eu até hoje não tenha tido interesse em ouvir o cd, o vídeo dirigido pelo talentoso fotógrafo Danny Clinch reina, soberano, sobre todos os outros dvds de música que já se hospedaram em meu player.

O que faz de Guster On Ice especial é uma idéia anterior à realização do vídeo em si. O registro proposto por Clinch se destaca de toda a pasteurização corrente, gerada por anos de padrão Mtv, justamente por perceber o que faz de um show uma experiência especial: a possibilidade do encontro. É claro que estamos todos lá para ver a banda, mas a percepção de Clinch é a de que, independente disso, um show é algo muito maior que uma banda no palco. On Ice começa com um passeio de carro. Ao lado de um fã, deslizamos pelas ruas nevadas de Portland enquanto ouvimos “Careful” – uma das melhores canções da banda – no rádio. Corte para o Guster tocando a mesma canção, no que parece ser uma performance rápida em uma loja de discos (ou seria a apresentação que ouvimos no estúdio de rádio?). E, entre relatos locais do dia em que Elvis tocou no mesmo teatro que abrigará o show e o aquecimento vocal da banda no backstage, o dia se torna noite, e a fila de fãs à porta do teatro começa a aumentar. Uma rádio local entrevista fãs que declaram seu amor pelo Guster, enquanto um outro saca o violão e, ali na fila, puxa a introdução de “Fa fa”. Corte para a banda iniciando o show em raccord da mesma música tocada pelo fã do lado de fora.

Esse prólogo parece condensar tudo que guiará o interesse de Danny Clinch pela próxima hora e meia: o momento (pré e pós incluídos) em que todas aquelas pessoas – banda, platéia, roadies, câmeras – respiram um mesmo ar e vivenciam um encontro. Não à toa, Clinch não hesita em cortar da banda para um casal que se beija na platéia, para pessoas que cantam e outras que não sabem as letras, para os cartazes levados pelos fãs e a réplica de Adam Gardner pedindo para que os cartazes sejam abaixados, para que as pessoas que estiverem atrás também possam ver o show. A multiplicidade de experiências que marca Guster On Ice – assumindo que, para banda e platéia, o show é apenas uma parte de várias noites individuais, construídas por cada uma daquelas pessoas – é visualmente realçada pela variedade de texturas de captação (que vão de micro câmeras de vídeo a variadas bitolas de película). E, se Clinch realmente acredita no show como parte, e não integralidadade, daquela noite, nada mais justo que acompanhemos a banda no backstage, nas ensolaradas caminhadas pelas ruas da cidade, na passagem de som (e o corte do ensaio de “So long” para sua execução no show é especialmente ilustrativo), na repetição das músicas (“Careful”, que abriu o vídeo, reaparece em sua versão noturna pouco antes do final) no whisky com gelo (para aliviar as mãos do percussionista) após o show. Curiosa também a capacidade do vídeo de gerar perguntas no espectador: como a banda soa tão cheia com tão poucos instrumentos? De onde sai o som do baixo em “I Spy”? O som de bateria de “Careful” é, na verdade, percussão?

Musicalmente, On Ice acaba gerando um paradoxo interessante: embora valorize o instante qualquer em sua noite, escolhe aquilo que poderíamos chamar do instante pregnante da carreira da banda (e, como Clinch é fotógrafo fixo de ofício, o paralelo com Cartier-Bresson se torna inevitável). A profusão de canções de Keep It Together entre os hits incontestáveis de Lost And Gone Forever (basta lembrar das versões gloriosas de “I Spy” ou “Happier”) fixa a banda em seu melhor momento, que só seria confirmado pelo anticlimático álbum seguinte (o correto, mas pouco inspirado Gangin’ Up On The Sun). E, se o híbrido que questionei no primeiro parágrafo retorna para fechar o texto, é porque Danny Clinch compreende o meio que está carregando sua obra como poucos outros diretores já o fizeram. Em vez de contraria-lo, usa-o a seu favor. O registro de shows é sim o parodoxo do eterno e do instante, e ignorar esse instante apenas gera um eterno incompleto. Em Guster On Ice, Danny Clinch compreende o lado orgânico dos shows que os agressivos braços esticados com celulares e máquinas digitais insistem ofuscar. E, com esse pequeno deslocamento, assina uma obra-prima justamente ao assumir a instabilidade do terreno; ao se jogar na areia movediça onde todos seus outros pares parecem morrer tentando sair.

sábado, setembro 01, 2007

Top 5 da semana

01
- Começo de verão (Bakushû) - Yasujiro Ozu
02 - Aconteceu naquela noite (It happened one night) - Frank Capra
03 - Sem teto nem lei (Sans toit ni loi) - Agnès Varda
04 - Possuídos (Bug) - William Friedkin
05 - As leis da família (Derecho de familia) - Daniel Burman