quarta-feira, janeiro 30, 2008

Melhores de 2007

04 – Em Busca da Vida (Sanxia haoren) – Jia Zhang-ke



Desde meu primeiro encontro com Plataforma – segundo longa-metragem do chinês Jia Zhang-ke – fiquei absolutamente embasbacado com seu olhar. Não exatamente por uma originalidade estética acentuada, pois a câmera de Jia parecia somar ao pulsante ir e vir de corpos de Hou Hsiao-hsien um certo gosto pelo estaticismo de Tsai Ming-liang. O que mais me impressiona, ainda hoje, em Plataforma é sua capacidade de criar imagens que sempre se equilibram entre a melancolia e o movimento, o desencanto e o fascínio, a morte e a vida.

No filme de 2000, Jia Zhang-ke observava a vida de um grupo de jovens artistas em uma pequena cidade chinesa (mais exatamente Fenyang – local onde o próprio Jia nasceu), e acompanhava as mudanças de curso provocadas pela progressiva abertura cultural da virada da década de 1970 para 1980. Os integrantes de um grupo de teatro folclórico financiado pelo governo vão, aos poucos, descobrindo dados culturais aos quais, antes, não tinham acesso: a calça boca-de-sino, a música pop, a vida longe da cidadezinha onde nasceram, a relativa independência de um sistema social opressor. Plataforma trazia nos planos médios de Jia um distanciamento de impressionante e(a)fetividade: da mesma forma que muitos liam o filme como um manifesto contra a globalização, sempre vi como possibilidade mais apaixonada o encantado brilho nos olhos daqueles jovens que, aos poucos, tinham chance de, apesar das perdas, escolher outros significados para suas vidas. Além disso, o filme trazia um dos meus planos favoritos do cinema recente (que ainda me parece um plano-síntese para o cinema de Jia): observamos uma das dançarinas que abandonara o grupo pela segurança de um trabalho nos correios aproveitar um momento de solidão para, subvertendo o confinamento do trabalho, dançar para si mesmo.

Depois de Plataforma, Jia Zhang-ke realizou o belo Prazeres Desconhecidos, e as obras-primas O Mundo (que, assim como Prazeres Desconhecidos e o longa de estréia de Jia, está na programação da rede Telecine) e In Public - os dois últimos marcando a conversão, até hoje vigente, de Jia Zhang-ke para o vídeo digital. E aí chegamos em Em Busca da Vida – Still Life, como é conhecido internacionalmente – e vemos os signos que aproximavam Jia de Hou e Tsai se dissiparem em nome da cristalização do desejo que fazia de O Mundo um filme tão especial: se em Plataforma Jia Zhang-ke procurava as marcas do tempo nas pessoas, em seus filmes posteriores seu olhar se volta para o espaço. As pessoas continuam lá; mas nos aproximamos delas sempre por meio do espaço, de uma relação com a paisagem que as acolhe.

Nesse sentido, não me parece descabido interpretar esse leve desvio como um amadurecimento: se Plataforma ainda me toca como poucos filmes são capazes, tenho plena consciência de que o caminho consolidado por Jia Zhang-ke em Em Busca da Vida questiona estruturas que o cinema recente parecia não estar tão interessado (ao menos não com a profundidade que é alcançada aqui). Se Plataforma exaltava a doçura do desencanto, Em Busca da Vida joga com peões bem estabelecidos, e passa a pensar a partir deles. O mundo muda muito rápido, e em países como a China – países que apertam o passo para descontar o retardamento gerado por anos de isolamento voluntário – a velocidade do processo é absolutamente devastadora. A paisagem não tem tempo de fixar, os espaços se ampliam em direções nunca antes imaginadas (lembremos da construção do espaço virtual buscada pelas animações em Flash de O Mundo, concretizando o espaço onde circulam as mensagens de texto enviadas com telefones celulares), e o homem chinês se vê se equilibrando entre passado e presente, ruína e construção, e, aqui também, vida e morte. Pois se o cinema de Jia Zhang-ke sempre foi ambivalente, em Em Busca da Vida as vidas e mortes do mundo vão para o centro da narrativa: um prédio é implodido enquanto outro é construído, uma cidade inteira é inundada para a construção de uma represa, uma ponte ostenta o brilho de estrelas decaídas que refletem na água que afoga um lar. Ao homem cabe transitar por esse espaço de referências instáveis e fugidias. Cabe a ele se acostumar com uma paisagem em estado de transformação tão intenso que, assim como um prédio vai ao chão em segundos, um monumento de concreto pode revelar-se um foguete que parte rumo ao céu.

Se existe algo, porém, que se põe no caminho de Em Busca da Vida para se firmar como mais uma obra-prima do jovem diretor (pois, que se trata de um grande filme, não há dúvidas), é que não sinto nesse filme a ambigüidade do olhar que era determinante em Plataforma e O Mundo. Em seu estudo geográfico sobre a nova ordem do mundo, Jia Zhang-ke parece chegar a conclusão de que até mesmo a beleza tem um quê de opressora. E, embora isso não me pareça nada distante da forma como as coisas parecem caminhar, não deixa de ser um pouco triste ver o cinema de Jia percorrer as estradas que levam para as beiradas extremas do mundo. Triste porque, embora tenha girado seus olhos do passado para o presente, tudo que parece enxergar é uma paisagem que encerra os olhos. Triste porque ele parece estar plenamente ciente de que frear não é uma possibilidade.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Melhores de 2007

05 – Novo Mundo (Nuovomondo) – Emanuele Crialese


Sempre que passo para um próximo filme nessa lista, dou uma olhada em algumas críticas que lembrava dizerem coisas interessantes sobre a obra em questão. Não é questão de busca de inspiração ou referências (embora eu não veja problema algum nisso), mas sim de separar o consciente do inconsciente, e tentar garantir que o texto traga, ao menos, uma ou outra observação original (ou, na pior das hipóteses, uma tentativa de alcançar algo do tipo). No caso de Novo Mundo, fica um pouco mais difícil de encontrar algo novo a se dizer depois de ter lido a excelente crítica-romance que o Rodrigo de Oliveira escreveu para a Contracampo. Não pretendo, portanto, esgotar o filme plano a plano, por simplesmente acreditar que não o faria com o brio e a paixão que o Rodrigo o fez (embora Novo Mundo ganhe um louvado quinto lugar em minha lista, tenho certeza que ele subiria algumas posições – todas, provavelmente – na lista do Rodrigo).

Existem, porém, coisas absolutamente encantadoras em Novo Mundo suficientes para render centenas de texto. Se a tentativa de capturar a migração de italianos para a América ganha, nas mãos de Crialese, estatuto de inventário do cinema italiano (já que, no filme, Fellini, Pasolini, Visconti e todos os outros mestres italianos parecem de fato conviver em plena fantasia), o que mais me fascina no filme é o estreitíssimo limite entre um cinema realista e outro assumidamente fantástico que o filme se propõe como único caminho. Nada mais coerente: a migração é sempre movida pelo sonho, pela possibilidade, pelo desejo. Um relato estritamente realista estaria imediatamente excluindo o combustível de seu objeto. Crialese não só percebe isso como realiza, em Novo Mundo, uma fusão de dois mundos: pessoas movidas por sonhos tendem sonhar acordadas.

“ ‘Você não é delicado’, disse ela com sentimento. ‘Você é resistente – como todo artista. Mas quando se trata do mundo, e estou falando de lidar com o mundo, você não passa de um bebê. O mundo é maldoso de uma ponta a outra. Você vive nele, é verdade, mas não pertence a ele. Você leva uma vida encantada. Toda vez que você se defronta com uma experiência sórdida, você a converte em algo lindo’.” Se Henry Miller escreve esse sermão para si mesmo, em Plexus, é porque o eu de seus livros (que é sempre um eu passado) sonhava em ser escritor. Em Novo Mundo nenhum dos personagens sonha viver artista; eles sonham, somente, com uma vida melhor. Mas não seria a auto-realização (o ser artista) de Henry Miller também um sonho com uma vida melhor? Se pensarmos o trecho acima à luz do filme de Crialese, não restam dúvidas de que resistente não é o artista, mas sim o sonhador. Aquele que enfrenta toda sorte de provação pela chance de realizar o ideal que traçou para si. O talento da teimosia.

As personagens de Novo Mundo (ou a maior parte delas) sonham com a América. Para a família Mancuso é a fartura de possibilidades o grande atrativo: a América sonhada por eles é o lugar onde as frutas e legumes são do tamanho de pessoas, onde moedas chovem das copas das árvores e os rios são feitos de leite. Crialese assume a visão dos personagens como a do próprio filme, tornando concretos os sonhos que a realidade poderia vir a frustrar. Saem daí alguns dos planos mais deslumbrantes de Novo Mundo, construindo atos que parecem saídos diretamente das Cidades Invisíveis, de Calvino (referência espacial que, talvez, possa ser aplicada a todo cenário do filme): os garotos que carregam cenouras gigantes, a chuva de moedas que cai sobre a lente da câmera, as galinhas maiores que cavalos. A câmera de Crialese, porém não faz distinção entre o imaginário de seus personagens: assim como filma o sonho, filma o rompimento da partida sentido por um, a possibilidade de um casamento em terras jovens vislumbrada por outra, o inferno de um navio que insiste trazer para o chão os pés de personagens com cabeças de balão. A América que acolhe, mas também a que expulsa. O país que oferece uma chance de submissão. O caminhar rápido e ordenado da modernidade que indica que Metrópolis há muito já está em andamento.

O mais bonito nesse abraço ao sonho dado em Novo Mundo é que, embora sejam sonhos diferentes para cada um de seus personagens, são desejos que só podem ser concretizados. Não pela ingenuidade que conduz à goela do leviatã, mas sim porque o sonhador dedicado não aceita a frustração. Sua entrega ao sonho se revela uma capacidade transformadora, pois é capaz de fazer enxergar azeitonas gigantes mesmo se a razão lhes disser o contrário. O filme de Crialese acaba sendo a devida recompensa a esse novo homem, fazendo esse mundo de sonhos se tornar concreto na tela do cinema. A migração, a mudança é apenas o passo necessário para que o mundo antes imaginado agora apareça vivo e em movimento – mesmo que a realidade e o tato digam diferente. O novo mundo já estava lá, pronto, esperando apenas a decisão de cada um se deixar levar pela correnteza dos rios de leite. O rio que transforma toda e qualquer experiência – por mais sórdida que seja – em algo lindo.

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Se o cinema em 2007 pareceu com preguiça de mostrar suas jóias mais valiosas – muitas delas chegando só no segundo semestre – 2008 já começa com um gás asfixiante. O primeiro grande filme do ano, A Espiã, de Paul Verhoeven, ganha crítica minha na Cinética. Se somarmos o filme de Verhoeven a Paranoid Park e Em Paris (que, enfim, estréia no Rio na próxima sexta-feira) já temos três fortíssimos candidatos para a lista do fim do ano que vem. Isso em ano em que ainda teremos os Coen, Wong Kar-wai, Brian de Palma, Tim Burton, Hou Hsiao-hsien (assim espero), Tarantino, Cronenberg, Todd Haynes...

sexta-feira, janeiro 25, 2008

Melhores de 2007

06 – Santiago – João Moreira Salles


Listas como esta sempre encontram jeito de ressaltar a inutilidade completa do recorte temporal (sem falar do próprio ato de se listar): assim como, no ano passado, incluí entre meus discos favoritos um que só havia ouvido já no ano seguinte, dessa vez trago cá um filme que, embora lançado comercialmente em 2007, eu assisti (e duas vezes) em 2006. A primeira foi em uma sessão para convidados no Instituto Moreira Salles, organizada pelo próprio João. A segunda foi na primeira sessão pública do filme no Brasil (acredito eu), no nosso CinePUC, com presença do João para debate após o filme. Em ambas as ocasiões, o diretor ainda se mostrava incerto sobre o lançamento comercial de Santiago (embora, lembremos, ele tivesse à mão uma distribuidora – sua VideoFilmes - e, ao menos, uma casa exibidora certa – o próprio IMS). Mais curioso, porém, era que a relutância vinha acompanhada de uma enigmática serenidade: não era angústia que João passava em relação a Santiago, mas sim a convicção de um filme que ele precisava fazer para si mesmo. Um filme que alcançava sua plenitude muito antes de ir a público, por dívidas e inquietações particulares que ele parecia vir acalmar.

Mas se Santiago talvez tenha surgido de uma certa auto-suficiência em relação ao público, por que esse bastar nunca empinava o nariz ao entrar na sala? De onde poderia vir tamanha serenidade? O olhar assumidamente pessoal que me traz a este texto vem de uma impressão extraída do próprio Santiago: não existe maneira honesta de lidar com a arte que não seja extremamente pessoal, parcial, afetiva (e talvez aí se explique minha quebra jornalística em tratar o realizador pelo primeiro nome – em intimidade que eu talvez só me permita ao chamar o Springsteen de Bruce). Por isso, talvez, a serenidade de João me pareça tão importante para minha relação com Santiago quanto qualquer coisa que se vê na tela – o que seria uma tela, afinal, que não uma fatia da vida? Para quê serve o cinema senão para registrar a passagem das pessoas pelo mundo, o caminhar sem sentido, o caótico ir e vir que vai buscar nesse mesmo cinema algo que lhe dê um acento de significado?

Ao lançamento de Santiago, a maior parte das críticas se detia sobre o quebra-cabeças metalingüístico que ele não deixa de propor: filmado em 1992, o perfil do mordomo da família Moreira Salles era o filme que João nunca havia conseguido terminar. Retomado 14 anos depois – com seu personagem principal já habitante do mundo dos mortos – Santiago se tornou uma “reflexão sobre o material bruto”, e o perfil do mordomo havia se tornado, também, uma linha-do-tempo de João Moreira Salles como documentarista. Ao longo da hora e vinte de projeção, observamos, com João, sua mudança de perspectiva em relação ao documentário, e à maneira de lidar com seus personagens e com as histórias que tem em mãos. Muito desse processo é extremamente doloroso: o João que ouvimos no extra-campo não traz em sua voz a serenidade que tanto marcara os primeiros parágrafos, mas sim uma rispidez muitas vezes agressiva, constrangedora (o documentarista que segue agindo como filho do patrão). Como no plano final de Pickpocket¸ de Robert Bresson, é inevitável pensar nos caminhos tortuosos que João Moreira Salles precisou percorrer para encontrar a si mesmo: depois de fazer filmes com uma estratégia bastante áspera e pouco generosa com o que filmava, o diretor descobre na possibilidade do cinema-direto – e no certo desejo de anulação do eu que move o documentário de observação – um caminho menos auto-centrado, embora não seja mais que uma outra certeza, para seu cinema. Depois de Nelson Freire e Entreatos – os dois filmes de sua fase mais encantada com os dispositivos do documentário – João percebe que, ao aprender a olhar para o outro, aprendera, finalmente, a olhar para si. E aquele diretor que parecia tão envolvido consigo mesmo ao filmar Santiago ganha, neste auto-retrato, traços de criança triste. Sob vários aspectos, Santiago é sim um expurgo público – com toda a vaidade e morbidez que isso pode trazer.

Se o filme que poderia ter sido é algo que essa reflexão sobre o material bruto propõe como questão (e o interesse e a rejeição pelo jogo metalingüístico acabam se revelando caminhos muito próximos), ela acaba fazendo fumaça àquilo que mais me interessa em Santiago: o filme que ele, 17 anos depois, de fato é. Pois se existe uma percepção que me parece realmente valiosa, é a de que a vida e a arte são linhas de um mesmo tear. Por isso, os momentos que mais me emocionam no filme (e me emocionam como filme algum de João, bons como alguns deles são, já havia feito) são justamente aqueles em que o diretor sai do armário de dispositivos em que buscara refúgio pela última década, e percebe que se a vida realmente não faz sentido, resta fazer poesia sobre ela. É aí que o filme passa a ser, de fato, sobre João: é quando ele se liberta das amarras do cinema, e vai, de peito aberto, buscar imagens e sons que contem sua vida. É quando ele não hesita em trazer Fred Astaire, em cena de A Roda da Fortuna (o filme favorito de Santiago), para se deixar versar sobre uma dança que começa em maravilhosa gratuidade, e com isso faz uma das mais belas metáforas da passagem da juventude para a vida adulta que o cinema jamais viu (a narração em off, gravada por Fernando Moreira Salles – irmão de João – conta sobre o momento em que João decidira sair da casa dos pais para enfrentar, sozinho, sua própria vida). Quando traz uma filmagem de sua família à piscina para, melancolicamente, nos convidar a observar, em silêncio, aquele mundo que não mais existe. Quando, em movimento inverso, anula as imagens para ouvir “O Barbeiro de Sevilha” no escuro. E depois busca em Yasujiro Ozu o sorriso da personagem de Era Uma Vez em Tóquio que concorda que a vida é realmente uma coisa decepcionante. É uma relação que se dá dentro do filme, mas que encontra maior assertividade na própria existência do filme – pois Santiago é, sobretudo, um produto de um tempo que passa.

Essas intervenções – que fogem do registro mantido pelo filme até ali – acabam re-significando tudo que vemos em Santiago. Pois qual seria a função das imagens – se é que existe uma – que não se apresentar ao mundo como significados que as pessoas podem trazer para suas vidas? O que seria o cinema que não um oceano de sensibilidades, de afetividades produzidas para despertarem outros afetos? Para que serve um filme senão para travar uma relação com a vida de quem o assiste? Aí, sim, encontra-se a reflexão de linguagem mais sofisticada em Santiago: as imagens filmadas 14 anos antes pertencem à memória. Resta ao cinema pensa-las enquanto tal – e, nesse sentido, a relação estabelecida com a narração em off é tão próxima dos cine-diários de Jonas Mekas quanto da auto-significação das primeiras pessoas de Wong Kar-wai. Uma vez que a ausência de sentido da vida é iluminada pela certeza, cabe buscar na arte alguma coisa que aproxime esse despropósito daquilo que nos comove.

Em 1992, João decidira fazer um documentário sobre o mordomo que, no passado, trabalhara para sua família. À época, negligenciara aquilo que mais era caro a Santiago: uma estranha coleção de anotações sobre a nobreza dos mais variados países e épocas. Santiago se acreditava um nobre desgarrado, e fantasiava sua própria vida recontando as vidas dessas pessoas, conservando-as em memória. E aí, numa dessas surpresas maravilhosas que o cinema tantas vezes nos guarda, percebemos a lógica de Santiago triunfar sobre todo o racionalismo de linguagem aparente de Santiago: os documentos que ele organizava para conservar as nobrezas de outros tempos acabam servindo como guia para que a nobreza de seu tempo – afinal, que outra coisa poderia ser a família Moreira Salles? – venha olhar para si e registrar sua passagem pelo mundo no filme de João. Não à toa, esse registro ganha seu nome. Se para aprender a olhar para si mesmo, João antes precisara prestar atenção no outro, não deixa de ser uma ironia que ele consiga dar tanta voz ao outro justamente no filme que ele acredita fazer sobre si mesmo. Ao fim e ao cabo, a poesia que conduz Santiago pertence muito mais a seu personagem-título do que ao próprio realizador. A João talvez tenha cabido apenas abrir as cortinas. E ao filmar sua vida, acabou fazendo um filme sobre o outro. Um filme sobre Santiago, mas também sobre todos os que buscam, no escuro da sala de cinema, uma imagem que venha conferir algum sentido às suas perdas.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Melhores de 2007

07 - Maria (Mary) - Abel Ferrara


Como filmar o invisível? Como fazer a fé, o milagre, a transcendência se manifestarem fisicamente e se tornarem imagem? Se começar textos com perguntas se tornou estratégia corriqueira para lideiros vagabundos, é difícil se posicionar de maneira diferente diante de Maria. Por nenhuma razão outra que não a posição do diretor diante daquilo que decide filmar, e do próprio ato de filmar: em Maria, a única aproximação que parece sincera a Abel Ferrara é pela dúvida. A dúvida diante da fé, da imagem, da representação, do mistério do mundo. Em Maria, cada plano é uma interrogação, uma pergunta, uma inquietação. Precisamos, portanto, pensar em Maria Madalena.

Não é por acaso que Ferrara escolhe uma das mais controversas personagens bíblicas para guiar sua investigação do espírito das imagens. De prostituta a apóstola, de testemunha ocular da ressurreição de Jesus a mulher de Cristo, Maria Madalena talvez seja a figura religiosa a despertar maiores bifurcações interpretativas. No filme de Ferrara, a mulher-título é pura virtualidade: Maria Madalena é personagem interpretada por Marie Palese (Juliette Binoche) em This Is My Blood, filme dentro do filme em que o diretor Tony Childress (Matthew Modine) reencarna Jesus para recontar sua história. Ao término das filmagens, Marie abandona sua carreira de atriz e parte para Jerusalém em uma jornada pela iluminação espiritual. Em paralelo, conhecemos Ted Younger (Forest Whitaker), apresentador de um talk-show de investigação dos caminhos da crença religiosa que começa a fazer algum sucesso de público nos EUA.

O que faz as vidas de Younger, Childress e Marie se cruzarem é This Is My Blood: as imagens ainda não vistas do filme de Childress geram comoções de todas as direções. Younger vê o filme em uma sessão para a imprensa e convida Childress a participar de seu programa. O diretor aceita quando o apresentador concorda cobrir as manifestações esperadas para a estréia do filme. Nesse ambiente onde fé e comércio se misturam, Marie faz o caminho inverso: embora as intenções de Childress com o filme sejam constantemente postas em dúvida, é o convite para o papel que propicia sua iluminação. Os trajetos escolhidos pelas almas que o filme incorpora fogem de qualquer generalização, pois cada busca vem de uma carência, de uma dor que é só sua. Não existe resposta fácil em Maria, pois não existe resposta alguma; o que temos são três seres perdidos no vácuo que existe entre fé e representação, o caráter impronunciável da crença e a fisicalidade agressiva da imagem.

Se com Ordet Carl Th. Dreyer faz um monumento de fé ao transformar em imagem um milagre – jogando para o espectador cético o peso de sua descrença – em Maria, Ferrara parece se interessar justamente pela incapacidade da imagem em conter o sagrado. Ela é questão tão central no filme que seu registro só pode ser múltiplo: convivem programas de tv, filmes diegéticos e não-diegéticos; vídeo e película; câmera no ombro e carrinho; cortes ásperos e doces fusões. Em qual deles o sagrado estará mais propício a se apresentar? A sensação, porém, é sempre a mesma: se a iluminação está por vir, não é em um longo plano do silêncio impassível de Jesus à cruz, mas sim entre um fotograma e outro, no espaço que a ilusão de ótica preenche e torna possível o cinema. Esse interesse pela imagem faz de Maria mais um capítulo para um verdadeiro tratado sobre o tema escrito no ano cinematográfico carioca, onde também se inserem I'm not there, Sombras de Goya, a dupla de Grindhouse e Maria Antonieta.

Com o (des)andar dos acontecimentos, os três personagens principais se colocam em posições cada vez mais complexas: o oportunismo arrogante de Childress é questionado pela obstinação em projetar seu filme, solitariamente, apesar de uma ameaça de bomba ter evacuado o cinema; a peregrinação de Marie é abalada por uma bomba durante as comemorações do Pessach; a investigação fria de Younger demanda mergulho pessoal quando as vidas de sua mulher e filho são entregues à sorte do mundo em um hospital. O cruzamento de suas trajetórias é um mero esbarrão em uma jornada pessoal mais ampla, que o filme nunca mostra ter intenções de encerrar entre início e fim. Pois se as perguntas que Ferrara propõe em Maria não são respondidas, é porque isso é resposta mais eloqüente: a fé só existe se acompanhada da dúvida. Se o cinema é possível por conta de uma limitação física do olhar humano, a fé encontra lugar nas brechas do espírito, nos lugares onde as perguntas ecoam no vazio. Questionando a possibilidade de a representação física dar conta desses espaços – espaços esses que parecem extrapolar os 24 quadros em que o cinema divide cada segundo – Ferrara, pelo simples ato de realizar este filme, faz uma contundente declaração de fé na capacidade sagrada inerente a essa mesma imagem.

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Mais uma parágrafo meu publicado na Cinética. Dessa vez e na sessão Textículos, com um breve olhar sobre O Diário de uma Babá.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Enquanto o top 10 segue aguardando tempo livre

A Culpa é do Fidel!, filme bem sem sal da Julie Gavras, tem crítica minha na Cinética.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Melhores de 2007

Filmes

08 - Os Donos da Noite (We Own the Night) - James Gray



É um prazer imenso topar com um filme de um radicalismo tão sutil que é capaz de passar não-visto mesmo aos olhos mais atentos. Os Donos da Noite é um desses raros casos. É inevitável a sensação de estarmos vendo um filme que parece dissonante em relação à produção de seu tempo, mas que consegue ainda assim nunca parecer alheio ao cinema que o cerca. E aí percebemos que a guinada proposta por James Gray é, na verdade, de radical mudança de estrutura. Afinal, estamos diante de um filme de gênero (uma típica narrativa policial), mas não vemos em Os Donos da Noite as características mais marcantes que os dias recentes lhe conferiu: nada da referencialidade de De Palma ou Tarantino, da pesquisa de texturas de um Miami Vice ou de Zodíaco, tampouco do niilismo assumido por Takashi Miike ou Johnny To. O que temos é um apaixonado retorno a um cinema calcado na mais tradicional dramaturgia, onde mais importante do que se encantar com camadas e camadas de metalinguagem é se deixar conduzir pela narrativa.

Mas existe algo tão original na estória de Os Donos da Noite para carregar o espectador pelas duas horas de filme? Aparentemente não, mas no filme de James Gray é preciso estar atento para não ser desviado do caminho pelas aparências. A estória é conduzida Bobby (Joaquin Phoenix), homem da noite nova iorquina que administra a El Caribe, boate mantida por um patriarca russo com planos imperiais. Apesar de vir de uma família de policiais, Bobby leva uma vida feliz sem reservas morais tradicionais: é apaixonado por sua namorada latina (Eva Mendes), convive com toda sorte de marginal sem nunca sujar as mãos e, embora suas escolhas não agradem ao pai (Robert Duval) e ao irmão (Mark Wahlberg), é tido como filho pela família russa para quem trabalha, garantindo seu futuro com um misto de profissionalismo e afetividade que não encontra em casa. Bobby tem uma vida bacana e poucas vezes o cinema captou isso tão bem como na primeira seqüência filmada (pois o filme começa com uma montagem de fotos) de Os Donos da Noite: ao som de “Heart of Glass”, do Blondie, somos apresentados ao casal principal em cena de extrema intimidade que, antes de parecer vulgar ou gratuita, cria um elo entre dois personagens que somente uma cagada monumental seria capaz de romper. Preparemo-nos, portanto, para a cagada monumental.

Bobby é chamado pelo irmão e pelo pai para uma conversa: a polícia pretendia invadir o clube administrado por ele para capturar um peixe grande do tráfico local. Peixe russo, sobrinho de seu patrão. Eles pedem sua cooperação. Ele nega. O El Caribe é invadido pela polícia e, embora a operação não seja exatamente bem sucedida, Bobby é levado à cadeia junto com um par de marginais. Pouco depois vemos seu irmão à porta de casa, onde é surpreendido com um tiro no meio do rosto. O distanciamento que garantia a boa vida de Bobby é rompido: se ele não queria se envolver na prisão do sobrinho de seu “padrinho”, uma bala na cara do irmão é capaz de faze-lo reconsiderar. A questão familiar que se apresentara é revertida, e se torna ainda mais familiar. Shakespeare, enfim.

E se o início da cooperação de Bobby também poderia marcar uma tomada de posição reacionária, em Os Donos da Noite ela é o prenúncio do inferno: a invasão da boate, do paraíso tropical que seu nome prometia, marca o fim da inconseqüência, pois não é possível lidar com lixo sem sujar as mãos. Mas marca, principalmente, o fim da felicidade: não veremos mais, ao longo de toda projeção, uma cena tão pulsante quanto a que abre o filme. Não veremos mais um sorriso sequer. Veremos, porém, uma tragédia dirigida com precisão milimétrica, atores extraordinários em seus melhores momentos, e pelo menos mais três seqüências tão marcantes quanto a primeira: o momento em que Bobby se infiltra em uma operação do tráfico de drogas local; a perseguição de carros confinada à visão limitada pela chuva torrencial; e a extraordinária busca pelo matagal enfumaçado, onde toda contextualização cede espaço a um não-tempo e um não-lugar tão impressionantes quanto o paraíso perdido de Obsessão, de Luchino Visconti, ou a praia do final de A Doce Vida, de Federico Fellini. Momento sublime que o cinema de gênero não via com tanta força desde o plano final de O Pagamento Final, de Brian de Palma.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Melhores de 2007

09 – Possuídos (Bug) – William Friedkin



Sob várias óticas, Possuídos se colocou como o filme-questão internacional mais interessante de 2007 (pois não há dúvida que, entre os nossos, o trono fica para Tropa de Elite). Em primeiro lugar por trazer o nome de William Friedkin – tão oscarizado à época de Operação França e O Exorcista – de volta às pautas (questão muito bem problematizada por Paulo Santos Lima em texto publicado na Cinética). Em segundo, por ter sido apontado por boa parte da crítica como um filme-bifurcação: se, por um lado, Friedkin nos conduz por terreno estético bastante extremo (e extremo me parece o adjetivo mais acertado a acompanhar Possuídos), por outro ele usa esse radicalismo em prol de um discurso político que se colocaria como de extrema direita.

Centrado na relação que se estabelece entre uma mulher solitária (Agnes, a personagem que deveria marcar a carreira de Ashley Judd) que se esconde do violento ex-marido (Harry Connick Jr) num suado quarto de hotel em Oklahoma, e um veterano de guerra de voz mansa e olhos perturbados (Peter, em atuação antológica de Michael Shannon), o filme de Friedkin traz o estado de um mundo com relações políticas em franca ebulição para dentro de casa. A ameaça representada pelo ex-marido logo é substituída – em um exercício de impressionante interiorização do pôr-em-cena – pela paranóia do ex-soldado: ele acredita carregar um chip de monitoração implantado em seu corpo pelo governo, e se vê perseguido por microscópicos insetos (que, a despeito de feridas bem visíveis, a câmera de Friedkin nunca consegue enxergar) que castigam sua pele e acordam seu sono.

Se o filme pode ser lido como uma ironia às teorias conspiratórias que tomam qualquer sociedade em crise, Friedkin lança mão de elementos perturbadores suficientes para nublar as interpretações fáceis. Pois como em qualquer kammerspiel¸ os personagens de Possuídos logo ganham tintas alegóricas: quando uma mãe (figura tradicionalmente associada à pátria em narrativas políticas) que perdeu o filho passa a temer a violência do marido conservador (o homem como gestor fracassado, como responsável pela ordem que não consegue estabelecer), e imediatamente abraça a primeira oportunidade de entrega à loucura que lhe aparece, é difícil não estabelecer paralelos com o terror doméstico instaurado pelos rumos agressivamente conservadores da política americana recente. A paranóia não é, de fato, questionada, mas sim questionada em sua implantação: é preciso criar um terreno bastante fértil para que ela se manifeste. Antes de questionar as teorias conspiratórias, Friedkin pensa o tipo de ambiente que as faz possíveis. Se Possuídos é fruto de um artista de inclinação destra, o filme funciona mais como um alerta à direita efetiva do que como um discurso propriamente conservador.

O que mais impressiona, porém, são as formas de representação que William Friedkin escolhe para sensações tão abstratas. A ameaça da paranóia é feita física por meio de um extraordinário plano aéreo, pelo olho de um helicóptero que se aproxima do hotel sem nunca ser justificado diegeticamente (a ameaça que vem de fora). Uma vez que a loucura encontre condições para se desenvolver (momento preciosamente marcado com o arrancar das telhas do hotel pelo vento gerado pelas hélices do helicóptero – o olho que se torna imagem), Friedkin empurra seus atores em uma vertiginosa ladeira emocional, colocando o espectador em um delicado limite entre acompanhar a trama e assistir a exercícios de entrega extrema na interpretação.

Sim, pois se a primeira metade de Possuídos constrói o ambiente propício à loucura, sua segunda metade aposta em uma doação que por vezes beira à abstração: o quarto perde suas feições, suas paredes são cobertas do prateado de papéis-adesivos que atraem mosquitos, e o calor do tungstênio é substituído pelo azul brilhante das lâmpadas repelentes. Saem Agnes e Peter, entram Ashley Judd e Michael Shannon, de fato, no foco de atenção. Tudo isso em nome de uma construção climática que, por vezes, se aproxima das intenções de Claire Denis em Desejo e Obsessão. Em situação de tamanha incerteza, o lar pode se tornar cenário de ficção científica, e o cinema de gênero pode romper telhados em direção aos extremos do corpo. Para aqueles dispostos a rodar ladeira abaixo com o filme, Friedkin fez uma das experiências cinematográficas mais intensas de 2007.

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Sombras de Goya, o mais novo filme de Milos Forman, ganhou crítica minha na Cinética. Não deixem de conferir o filme e o texto.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Melhores de 2007

Então cá estou eu novamente, catando miúdos de memória para juntar minha muito anunciada lista de melhores do ano. Mais uma vez, a lista é feita tendo como base os lançamentos comerciais em salas do Rio de Janeiro (não valem festivais, pré-estréias, mostras, etc). Mais uma outra vez, não vi alguns filmes que andam aparecendo em várias listas de gente confiável por aí (Os Anjos Exterminadores e Fora de Jogo, por exemplo). Mais uma outríssima vez, consegui perder um lançamento de um diretor que gosto muito (Cartas de Iwo-Jima, de Clint Eastwood, embora seu A Conquista da Honra não apareça por aqui por não me parecer, de fato, bom o suficiente). Esse ano, porém, consegui um feito inédito: fechei o ano sem ver o filme mais comentado do país (Tropa de Elite, de José Padilha). Nenhuma antipatia pelo diretor do excelente Ônibus 174; apenas um certo fastio em relação a todo o disse-me-disse que me fez adiar, constantemente, a ida ao cinema. Preferi deixar pra ver com a cabeça em um lugar mais justo. Ficam de fora um ou outro filme de bons diretores que mostraram fôlego reduzido (O Sobrevivente, Viagem a Darjeeling) e, por questões numéricas, outros que marcaram algumas das sessões mais agradáveis do ano: Superbad – É hoje; Planeta Terror; Zodíaco; Estamos Bem Mesmo Sem Você; Antes Só do que Mal Casado; Mutum; Lady Chatterley; Direito de Família; Ratatouille; Os Simpsons – O filme; Sombras de Goya; Borat – todos filmes que acabariam entrando em uma lista proporcionalmente maior. Dito isso, começo pelo décimo. A idéia é tentar trazer um novo filme a cada dia, mas sabemos que eu não serei homem de manter essa periodicidade. Fiquem, portanto, com a fração de homem que eu conseguir ser. E que venham, em seqüência, os discos.

Filmes

10 – Jogo de Cena – Eduardo Coutinho


Muito se falou de Jogo de Cena como uma virada de estratégia supostamente necessária à carreira de Eduardo Coutinho. Embora ache a necessidade discutível (mesmo não advogando a Peões ou O fim e o princípio um lugar paralelo ao de Edifício Máster – filme onde muitas das estratégias do diretor eram levadas ao paroxismo), colocar Jogo de Cena como filme de exceção me parece, sim, se deixar levar pelo jogo (de espelhos? De fumaça? De máscaras?) que o filme permite existir. Não significa, portanto, que a aparente mudança traga uma nova postura, de fato, de Coutinho em sua consistentíssima obra. Toda a resituação proposta pelo realizador distrai o espectador naquilo que é apenas uma mudança de dispositivo: se Coutinho vem ouvindo personagens filme após filme, é exatamente isso que ele seguirá fazendo em Jogo de Cena. O que muda são as personagens, a maneira de elas falarem, e o recorte em que estão circunscritas. Mas não seria essa mudança a única constância na filmografia recente de Eduardo Coutinho?

Jogo de Cena começa em caminho que todo filme de Coutinho eventualmente pisará: as regras do jogo. Aqui, um anúncio de jornal convida mulheres interessadas em contar suas histórias de vida. Logo em seu segundo depoimento, as cadeiras de teatro que fazem fundo de cenário se justificam com um corte: a imagem salta do rosto que a conta para continuar no da atriz Andréa Beltrão. A história, porém, permanece. Ao fim do depoimento, ela fala da experiência de recontar aquela história, de suas dificuldades e impressões ao recriar a personagem que a inspira. Mas algo sai dos eixos. Sai dos eixos porque, contrastando com a tranqüilidade da mãe que conta a perda do filho, Andréa Beltrão não consegue passar pela história sem se render às lágrimas. Lágrimas da atriz ou da personagem? Ela diz serem delas, mas aos poucos tudo que se diz em Jogo de Cena passa a ganhar uma mesma dimensão. Em cortes de rostos desconhecidos para atrizes populares, o jogo (de encaixe?) proposto por Coutinho logo se descola da adivinhação e se aproxima da auto-exposição completa. Pois uma vez que atrizes e personagens não são mais passíveis de distinção, o que sobra é a matéria-prima básica de onde Coutinho sempre moldou seus filmes: a palavra.

Nesse sentido, Jogo de Cena talvez só faça expor mais abertamente aquilo que sempre foi o centro dos documentários de Eduardo Coutinho, e o jogo de adivinhação deixa de fazer sentido, pois vai contra uma questão essencial para o diretor: não existem mentiras em sua obra, pois ela não se interessa por verdades. A verdade, para Coutinho, não é questão factual: é fruto de comprometimento. As atrizes de Jogo de Cena logo se revelam idênticas a quaisquer personagens de sua obra passada: são pessoas lidando com a expectativa de uma câmera. Alguns desses momentos podem parecer mais simpáticos (acho toda a presença de Andréa Beltrão de uma doçura comovente), enquanto outros talvez despertem certa desconfiança (as maneiras como Marília Pêra e Fernanda Torres parecem se esforçar para dar a Coutinho tudo que elas acreditam que ele espera receber me faz franzir vários cenhos). Ainda assim, a construção de Jogo de Cena é tão escancarada que tudo se torna uma questão para filme: se uma atriz se oferece de maneira mais ou menos óbvia, isso acrescenta uma nova camada de relação entre as expectativas daquelas mulheres (é isso que, mais ou menos essencialmente, todas elas são) e a câmera que as capta em representação. No cinema de Coutinho toda e qualquer fala é, sempre, uma representação.

Por isso não há diferença entre a dificuldade de Fernanda Torres em entrar no papel e o desejo da médica que retorna para um novo depoimento, por ter acreditado que sua fala anterior havia ficado pesada demais. Por isso a história que se repete com dois rostos diferentes (mais igualmente anônimos) não gera interrogações de veracidade, mas sim interesse por duas interpretações distintamente verdadeiras. E se somos tomados por estranhamento ao ouvir Coutinho fazer uma mesma pergunta duas vezes, aprendemos que a pureza (adjetivo que, usado de forma leviana, tantas vezes reduziu seu cinema) da estrutura documental do diretor é uma questão que deve, sempre, ser repensada pelo espectador.

Em Jogo de Cena, Eduardo Coutinho expõe as regras do jogo não só de seu filme, mas da própria relação com quem consome (e, mais do que nunca, completa) seu trabalho. Pois em uma obra onde as expectativas sobre sua própria feitura sempre foram centro de interesse (o que são os documentários de Coutinho que não registros dos encontros que o próprio filme proporciona?), é natural que, em algum momento, o espectador fosse o convidado de honra. Somos nós os convidados a jogar com sua cena.