sábado, agosto 25, 2007
Postado por Fábio Andrade às 1:59 PM
Elogio à ficção – impressões tardias sobre o episódio final de Gilmore Girls
“In love with love and lousy poetry” (The Weakerthans)
De maneira generalista e nada abalizada, sempre dividi o amor entre estar apaixonado pelo outro, ou pelo amor em si. Driblando barreiras difusas demais para decantarem a vida em cores primárias, alternamos o “ideal” entre projeções sobre sorrisos que brilham somente para os olhos de nossa memória, e tentativas de nos perdermos não no outro, mas no espaço que o separa de nós. A celebração do limite; do individual; do desejo de se tornar o outro que não se deixa frustrar na consciência de sua impossibilidade.
Costurando o amor pelo outro ao amor pelo amor está o desejo de definir o outro pela percepção de códigos e indícios que pareçam mais interessantes aos nossos olhos apaixonados. Que tipo de música ela gosta; qual a cor do telefone que ela usa para falar contigo; qual filme lhe é especial; que trecho de seu livro favorito a emociona mais. Estará ela também apaixonada por você, ou apenas flutuando com a intransitividade do amor? E, nessa excitação, passamos a construir o outro não como outro, mas como uma soma (que nunca confere) dos indícios que nos parecem mais encantadores. Amar alguém por meio do amor pelo amor é processo de construção de personagem dos mais elaborados, onde somamos nossas impressões sobre o outro com aquilo que gostaríamos que esse outro fosse. E, com o passar do tempo, aprendemos a conviver com o outro “real” - aquele que parece uma mistura da autonomia indomável do não-ser-eu com o mosaico de projeções e absorções do processo de criação do seu outro. Uma figura de estranha beleza, onde a boca perfeita deixa escapar um trecho de “Be my baby”, a curva da escápula se revela um telefone creme, os olhos pedem que salve Ferris e a palma da mão traz citações de um livro que você ainda não leu.
“What would love be without wishful thinking?” (Wilco)
Chega sempre o dia em que a projeção se inverte, e nos vemos caindo de amor por coisas até então desconhecidas. Em vez do amor que confirma, o amor que transforma. Gostar do outro nos momentos em que ele te desafia, te apresenta algo de novo. Parte da palpitação primeira de cada relacionamento está em descobrir os favoritos da pessoa amada. Amar o que seu amado ama. Amar o outro enquanto outro. Plenitude, talvez. Nos dez anos quase completos com minha Clarissa, são essas pequenas transformações que guardo com maior cuidado. A alegria incompreensível de se perceber a mudança do paladar. E, entre discos do Pato Fu e versos de Mário Quintana, os moradores de Stars Hollow lentamente abriram uma avenida (sem sinal de trânsito) no meu ócio, firmando um compromisso de periodicidade que poucas vezes antes aceitara (penso em “Seinfeld”, “Twin Peaks” e meu recente interesse por “24 horas” – provavelmente as únicas séries que conseguiram tomar, a força e com méritos, tantas horas de meus dias).
“Gilmore Girls” é mais um nome em minha lista de injustiçados pelos cânones. Ao lado de outros vira-latas como “A feiticeira” (Bewitched) de Nora Ephron, os livros de J.D. Salinger e Underneath , do Hanson, o folhetim de Amy Sherman-Palladino sempre me pareceu merecer atenção muito maior do que a que parece ter alcançado. Por trás do palavrório descontrolado de Lorelai e Rory, Palladino maquinava – com muita delicadeza – uma espécie de conto-de-fadas moderno, onde o principal interesse se encontrava na arte de se criar ficção. Por sete temporadas, “Gilmore Girls” defendeu ferozmente o espaço ficcional como salto do real, de fato. Espaço onde o artista tem a chance de criar um mundo em “wishful thinking”, e nele realizar tudo aquilo que não tem chance de mudar em seu mundo físico. Ato de amor, puro e simples.
“Would love be considered an art?” (Gena Rowlands em Love Streams, de John Cassavetes)
A pré-trama de “Gilmore Girls” é aparentemente descartável: garota de classe alta engravida na adolescência, contraria o desejo dos pais pelo casamento e sai de casa para criar a filha no muque. Arruma um emprego como faxineira de uma pousada em um vilarejo chamado Stars Hollow, onde cresce com sua filha e poucos luxos, mas total autonomia. Aos poucos, ela ganha a confiança da dona da pousada e o amor de toda a comunidade, consegue criar sua filha da maneira que acredita ser a mais correta (não só mãe e filha, mas - como sempre reaparece na boca de alguma personagem do seriado - melhores amigas) e tem indiscutível sucesso em sua liberdade.
Tudo dito até agora, porém, é um constante extra-campo no decorrer da série. “Gilmore Girls” começa em um sacrifício: o momento em que, para garantir o melhor futuro para sua filha, Lorelai precisa se reconciliar com o passado. O dinheiro que falta para matricular a filha no melhor colégio da região é o dinheiro que as escolhas de Lorelai não puderam lhe garantir. Mas é, também, o dinheiro que obriga Lorelai a procurar seus pais, a torna-los novamente parte de sua vida em um empréstimo que - disfarçada como um jantar semanal - é a ruína de um mundo até então visto como ideal.
Curiosamente, é com esse choque de realidade que Amy Sherman-Palladino põe em movimento sua ficção. Stars Hollow – uma cidadezinha inventada em algum canto do estado de Connecticut – parece ter saído diretamente da imaginação de Lorelai quando engravidara de Rory. Se o ambiente em que foi criada lhe rendeu um péssimo relacionamento com seus pais, só lhe resta inventar um outro mundo ideal para criar sua filha. Stars Hollow é o “lar” desenhado pela imaginação de uma adolescente para todos aqueles que foram expelidos para a margem do mundo “real”. Uma cidade onde as decisões municipais são tomadas em reuniões de moradores, onde as fofocas correm mais rápido que o tempo e o cinema passa sempre os mesmos filmes. Lugar que abriga, sem distinções, uma ex-atriz que nunca realmente fez sucesso, um dono de lanchonete incapaz de lidar com perdas (e que, significativamente, se veste como se os dias de Seattle ainda ditassem capas de revista), uma senhora apaixonada por gatos, uma conservadora mãe coreana que tenta frear os impulsos norte-americanos da filha (em uma família completada por um pai que nunca conhecemos). Uma pequena esquina do mundo que todos os párias e frustrados poderão chamar de sua, e onde poderão cuidar uns dos outros. E, como essa cidade é fruto da imaginação de uma adolescente submersa em cultura pop, é também o lugar onde se come batatas fritas no café-da-manhã, onde Grant Lee Phillips é o trovador oficial (e sempre parece cantar canções que conferem algum sentido ao que acaba de acontecer), onde os pedidos de casamento são validados por milhares de margaridas amarelas, e onde Sebastian Bach é o roqueiro aposentado que volta a tocar em uma banda de garotos. Stars Hollow é a página em branco.
Todos os exageros freqüentemente apontados pelos detratores da série são, na verdade, a evidência de uma mise-en-scène intrínseca a esse universo, que sobrevive até mesmo ao rodízio constante de roteiristas e diretores. O ritmo estonteante da fala de ambas as protagonistas (conversas inventadas e roteirizadas em momentos de inquieta introspecção); a abundância de referências (o texto que se evidencia como tal); os planos-sequência que fazem de qualquer caminhada um complexo balé de corpos (o mundo em perfeita sincronia); o mesmo rosto que parece desempenhar todas as funções coadjuvantes que garantem o funcionamento desse mundo (Kirk – personagem interpretado por Sean Gunn que, em diferentes momentos de um mesmo episódio, pode aparecer trabalhando como carteiro, fotógrafo e funcionário da companhia de tv a cabo); tudo em “Gilmore Girls” parece um exercício de projeção, de ficçionalização escancarada por parte de uma garota (a protagonista, ou a própria criadora da série) que gostaria de viver em um mundo feito à sua imagem e semelhança, onde até mesmo as lacunas e os mistérios servem para torna-lo ainda mais encantador.
“Steam from the cup and snow on the path, the seasons have changed from present to past” (Feist)
Fui fisgado pelo último episódio de “Gilmore Girls” de maneira bastante acidental. Há alguns meses havia trocado a intermitência da última temporada pela overdose das caixas das duas primeiras, substituindo os passos mais recentes das personagens por suas origens. Até que, certa quinta-feira, havia terminado de devorar mais um dos dvds da série e, quando desliguei o aparelho, o Warner Channel anunciou “o último episódio de Gilmore Girls”. Pulei as temporadas ainda não vistas por completo enquanto me dirigia pro sofá e, agraciado pela coincidência, aguardei que os destinos de Rory e Lorelai fossem traçados.
Às vezes a beleza teima se esconder em ranhuras que, se regras servissem para alguma coisa, poderiam gerar tropeços: a redundância maravilhosa do voice over de “Desencanto” (Brief Encounter), o aparente mesmo filme que Ozu fez em toda a sua carreira, os intermináveis parágrafos de Proust, o desrespeito formal de Henry Miller. Enquanto acompanhava o último dia das Gilmore, era inevitável perceber a normalidade com que todos os envolvidos atropelavam o peso do episódio definitivo. O pouco de trama que ainda restava vinha de episódios anteriores (o pedido de casamento que Logan faz a Rory, a expectativa frustrada na negação de seu estágio no New York Times, uma possível declaração de amor de Lorelai a Luke) e servia como mero pano de fundo para as banalidades que sempre conferiram charme à série. Até que, já no meio do episódio, Rory anuncia no jantar familiar que fora convidada pelo site em que escrevia para cobrir a campanha primária de Barack Obama. Mais uma vez, o choque de realidade que gerara aquele mundo ficcional é o que o põe em crise, e o misto de autonomia e proximidade buscado por Lorelai desde o princípio é o que virá a ferir o mundo que ela construira. As garotas Gilmore, enquanto unidade, não mais existirão. Resta, portanto, dar fim à estória.
Esse fiapo de crise serve para que, uma última vez, acompanhemos Rory e Lorelai na despedida de um quotidiano em transformação. Em vez da costumeira apoteose dramática dos piores finais, as garotas passam por um último jantar de família, vão às compras, arrumam a mala de Rory e ganham uma última festa em Stars Hollow (recurso por tantas vezes usado ao longo da série para que seus personagens desfilassem pelas ruas da cidade, lembrando mais o universo de Fellini do que quase tudo que já foi taxado de felliniano). E, aos poucos, Palladino acaba nos mostrando que “Gilmore Girls” sempre foi sobre aceitação e convivência. Não só a convivência entre os moradores de Stars Hollow, mas também a diluição da aspereza da relação de Lorelai com os pais (seja pela confirmação de que os jantares familiares continuarão, seja pelo reconhecimento dos pais de que Lorelai havia se saído melhor como mãe e pessoa do que eles jamais imaginaram) e o próprio rumo tomado pela vida de Rory (em vez de um emprego no maior jornal dos EUA, um salário baixo em um site desconhecido, mas que garante que ela presencie um importante momento histórico). E se o beijo de Lorelai em Luke poderia ser visto como um gran finale, Palladino passa por ele com elegância, e termina a obra de maneira ainda mais previsível: Rory e Lorelai tomando café-da-manhã no Luke’s e conversando sobre tudo que gostariam de comer.
A previsibilidade do último episódio de “Gilmore Girls” anula qualquer expectativa dramática, e nos diz que o seriado sempre foi sobre o conviver (até mesmo entre espectadores e obras – que, no caso dos folhetins, é ainda mais agudo). O mundo projetado por Lorelai não é de grandes acontecimentos. Eles até aparecem por lá, mas nunca têm a projeção da neve que cai com as folhas de plátano sobre o coreto, das canções que decoram as esquinas, de um legume perfeito ou de um copo de café. O mundo da ficção é construído dessas pequenas coisas – bastante paupáveis – e, aos poucos, ele vai abrindo espaço para que uma realidade mais traumática possa entrar: o relacionamento com os pais, o indefinido carinho que sente por Luke, a partida de Rory para a vida adulta. O fim de “Gilmore Girls” é, na verdade, um ritual de passagem do mundo de ficção para o mundo adulto. Esse ritual pode ser precoce – no caso de Rory – ou tardio – em Lorelai –; mas sua inevitabilidade eventualmente baterá à porta e forçará entrada. É curioso que Palladino associe a necessidade da ficção justamente a esse período de transformação, de passagem. Seria a ficção uma forma de atenuar as crises? Uma maneira de conferir sentido a uma realidade não raro esmagadora, e que se transforma rápido demais para que entendamos o que se passa? Durante os sete anos que existiu, “Gilmore Girls” foi a defesa dessa necessidade de se criar ficção, e de usa-la como ponto de fuga (mas que é, também, ponto de retorno) para uma realidade extremamente instigante – daí as xícaras de café, as margaridas amarelas, as luzes de natal na varanda – mas carente de interpretação. Uma defesa da capacidade que temos, todos, de criar um lugar onde possamos viver com alguma tranqüilidade, e cuidarmos uns dos outros. E de, com o tempo, fazê-lo real.
1 comentários:
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