terça-feira, maio 23, 2006

Amarcord: Postcard

"Sei que o caminho não é longo, mas no momento me sinto bem" – Anjos Caídos (Duo Luo Tian Shi, 1995), Wong Kar Wai

Para retraçar os caminhos que me levaram a "Postcard" eu deveria assistir novamente o belo "O quarto do filho" (La Stanza Del Figlio, 2001), filme do diretor italiano Nanni Moretti. Não tenho nenhuma lembrança concreta da trilha que Brian Eno fez para o filme, mas, por caminhos sem dúvida estranhos, o drama dos pais que saem em uma viagem de carro para superar a morte do filho me fez sair do cinema com uma melodia na cabeça. Dias depois essa melodia se tornaria "Postcard", canção que até hoje vejo como das minhas mais completas.

Confesso que não sou bom criador de estórias, talvez por não enxergar o mundo por linhas narrativas. "Postcard", portanto, não poderia ser uma canção sobre um casal de pais que perde um filho adolescente em um acidente de mergulho. Porém, olhando para "Postcard" e reafirmando minha impressão de que a base das melhores letras nasce junto com a melodia, penso que minha canção brota justamente dessa viagem de carro, dessa estrada que a família tem que, visualmente, percorrer. Não sou bom criador de estórias, mas me aproximo do mundo por imagens que evocam um certo estado de espírito, e é com esse olhar que crio. Assim como Moretti em seu filme, em minha canção vejo na estrada uma possibilidade de redenção. "Postcard" é minha road song.

Adoro estradas, não só pelo evidente caráter simbólico que encontramos em todo caminho, mas também pelos signos que hoje caracterizam uma estrada não mais como simples passagem, mas também como lugar. Muito do que me atrai nas estradas reflete minha crença de que, talvez, o que existe de mais significativo na vida não seja um objetivo que tentamos alcançar, mas sim o processo de tentar alcança-lo. Talvez o lado mais nobre dos objetivos seja justamente a capacidade de gerar essa possibilidade de um processo, de gerar uma estrada. O Invisibles, como toda vida, não foi um objetivo, foi um trajeto. Foi uma canção que, como toda canção, faz sentido enquanto é cantada, e quando acaba não temos mais do que sua ausência.

Alguns dias depois de ter visto "O quarto do filho", cunhava rimas enquanto arrumava as malas para irmos, eu e Clarissa, para Juiz de Fora, onde o Invisibles faria, à época, seu segundo show na cidade. Embora o nosso set tenha sido tesourado da primeira vez que tocamos por lá, fiquei com a impressão de que naquela cidade encontraríamos pessoas que, de certa forma, realmente compreenderiam quem nós éramos, o que aquelas canções diziam, e reconheceriam o sentimento de onde elas surgiam. Enchia as malas de expectativa, e o tal show foi, de fato, um dos melhores dias que tivemos nos 10 anos que existimos como banda. A cidade realmente nos compreendia. Depois disso, a estrada, que também é retorno.

Uma das minhas maiores ambições sempre foi trazer para o punk rock um certo olhar que nunca teve muito espaço no gênero, que é mais caro aos artistas comumente chamados de singer/songwriter, e é nesse sentido que vejo em "Postcard" uma de minhas canções mais completas. Não é só uma questão de realmente gostar de vários de seus versos, mas também de achar que eles foram concebidos para serem cantados da melhor forma possível, nos momentos certos, extraindo o máximo de sentido de cada palavra. O sentimento-síntese de expectativa parece guiar cada verso, embora não apareça literalmente uma vez sequer. Não é uma canção sobre uma viagem, mas sim sobre a expectativa que antecede essa viagem e sobre todas as coisas inesquecíveis que podem ser vividas nesse curto espaço de tempo. É sobre fazer as malas levando consigo seus melhores sentimentos, deixando pra trás tudo o que acontece quando não é fim de semana.

Muito desse sentimento era factual. Quando escrevi "Postcard" eu havia acabado de mudar para o Rio, e passava minhas semanas distante de minha musa, vivendo vidas-duplas de fato. Só nos víamos em fins de semana, e por isso os sorrisos se despediam com a chegada da primeira estrela do domingo. Por isso pedia que ela não esquecesse seu brilho de sexta-feira, como as senhoritas de outrora tinham roupas separadas para os fins de semana. A expectativa era minha roupa de sair. Era a minha ambição de viver momentos eternos, de fazer com que cada trecho de estrada se tornasse lugar. Os versos passam como os dias da semana – retornam, parecidos mas com algo diferente, como os dias da semana – assim como a canção deixa de cantar o dia e, no exato momento onde adquire traços de uma quase canção de ninar, passa a cantar o anoitecer (marcada aqui pelas solitárias páginas de uma noite de leitura), para depois tornar ao sol, no dia seguinte. "Postcard" seria a tentativa de capturar (como em um cartão-postal) os fins de semana, tratando toda quarta-feira como um contraponto que nos lembre de como é agradável um sábado, que mesmo quando chuvoso não deixa de ser ensolarado. "Postcard" é uma canção sem refrão.

Nunca revi "O quarto do filho". Talvez porque não poderia escrever “Postcard” novamente. Talvez por temer que as ternas lembranças que tenho do filme se perdessem se o deslocasse do momento que o assisti pela primeira vez. Talvez pelo medo de perceber que uma das canções que mais me sinto satisfeito por ter escrito não seja mais que um plágio descarado do Brian Eno.

3 comentários:

Anônimo disse...

Quatro caras, mais um e a Claridade e Presentes Invisíveis, foram escritos com espírito semelhante.

Vou vender umas coisas minhas pra visitar o por-de-sol do sábado.

Anônimo disse...

Achei que você ia gostar de saber:

A Buena Vista divulgou oficialmente ontem que distribuirá O Magnata, longa-metragem escrito pelo cantor e compositor Chorão, do Charlie Brown Jr.

Dirigido por Johnny Araújo, conhecido dos videoclipes em seu primeiro longa, e produzido pela Gullane Filmes (Nina), o filme retrata a trajetória de Magnata (Paulo Vilhena), um astro do rock que financia suas extravagâncias com a herança deixada pelo pai. Imaturo e deslumbrado com o sucesso, ele tenta mudar quando se apaixona por uma garota. Mas um crime fará com que ele aprenda da pior maneira que atitudes têm conseqüências.

O longa promete participação diversas de nomes da música e terá o próprio Chorão como ele mesmo. A estréia acontecerá em janeiro de 2007 e as filmagens começam nos próximos dias.

Anônimo disse...

O que esperar disso! Deus Meu! Só de imaginar todo mundo falando as frases chorônicas já assusta!