segunda-feira, maio 15, 2006

O bom cão

Minha obsessão de garoto também nasceu de um elogio. Uma vez, durante o almoço, contei a meu pai que havia me levantado durante a noite para ir ao banheiro. Ele me felicitou em voz alta diante do resto da família, e, por conta disso, passei a me sentir um pequeno senhor. Aquele afago na cabeça era como um biscoito de recompensa, portanto, logo percebi que era um caminho todo pontuado por biscoitos, o que fazia dele objeto de profundo estudo para sanar a curiosidade pela trilha comestível. Queria andar por esse caminho mais vezes, e daí nasceram minhas constantes incursões noturnas ao banheiro.

Como é comum termos heróis paridos pela conjuntura, explico a natureza do afago: minha irmã mais velha freqüentemente se deixava levar por seus sonhos mais sinestésicos e relaxava a continência durante a noite. Lembro que me contava que em seu sonho mais recorrente ela estava numa piscina – o que, por si só, já revelava um hábito que me afligia toda vez que, por acidente, engolia água enquanto nadava – ou mesmo no banheiro, e que seu sono era tão traiçoeiro que a expulsava de lá quando começava a sentir a cama molhada. Por vezes sonhei estar também boiando em silêncio na piscina, mas mantinha-me alerta contra possíveis ciladas armadas para minha honra.

Admito que, por duas ou três vezes, não fui forte o bastante. Para pelo menos uma dela, porém, tenho a clara certeza de ter sido seduzido pelo meio. Como era bastante comum em minha infância, fui passar a noite na casa de meus primos. Meus dois primos mais velhos eram famosos na família por não terem o menor pudor em fazer de suas camas, banheiro. Por vezes viajávamos todos de férias, e praticamente todos os dias a irmã mais nova acordava chorando, pois havia dividido o colchão com um dos irmãos e acabara acordando com as costas empapadas de relaxamento alheio. Como meu faro é meu guia do passado, as duas maiores lembranças que tenho da casa de minha tia são o cheiro dos pães de leite condensado que ela preparava, todo dia, para o lanche, e o desagradável cheiro da varanda, onde, todos os dias, os colchões de meus primos eram colocados para secar ao sol. Uma vez acordei na casa de meus primos e minha tia me disse que havia molhado a cama. Embora reconheça ser fácil se deixar levar em ambientes de necessidades tão opressoras, ainda tenho dúvida se minha tia não queria, com isso, apenas melhorar a imagem de seus dois mijões. Ainda assim, meus primos mais velhos continuavam dizendo “caçapete” quando queriam falar “capacete”, portanto, ainda me sentia um vencedor.

Minhas incursões noturnas ao banheiro foram perturbadas quando nos mudamos de apartamento. Na casa nova, o banheiro mais próximo ficava de frente para o quarto de meus pais, e embora isso tenha despertado a tentação de agora poder buscar novos afagos provando minha disciplina de forma mais contundente, ao mesmo tempo me via intimidado pela possibilidade de acorda-los com o barulho da descarga. Assim que começavam as férias, eu passava a cultivar o hábito de assistir televisão durante as primeiras horas da madrugada, indo dormir cada dia um pouco mais tarde. Muito disso vinha do medo que sentia de um comercial noturno do SBT que combinava o desenho de uma família modelo, com a ameaçadora voz narrando que em cada cinco pessoas, uma morria de câncer, enquanto a figura relativa ao pai desaparecia do desenho.

Esse pesadelo me mantinha acordado por mais algumas horas, aumentando em número minhas idas ao banheiro. Para não acordar meus pais, aboli a descarga na esperança de desvendar mais alguns metros do caminho de biscoitos. Até que um dia acabei adormecendo mais cedo, e tive o sono cortado pela disciplina. Caminhei até o banheiro na ponta dos pés, evitei acender a luz para não acordar meus pais e enchi o vaso de orgulho, tentando não acertar diretamente a água no fundo da privada, na esperança de assim manter o silêncio do ritual. De alguma forma, porém, feri o sono leve de minha mãe. Dedicada a meus hábitos como lhe pedia a função, ela chamou-me a atenção: “não vai dar descarga não, porquinho?”. Sua voz cortou minha necessidade pelo meio, fazendo todo meu ritual parecer um pouco mais estúpido. Acendi a luz do banheiro, assassinei a noite com o estrondo da descarga, e, com passos duros, tornei à minha cama, assombrado pela imagem do desenho do pai que, lentamente, desaparecia.

4 comentários:

Anônimo disse...

Sempre me comovi com essa história...

Anônimo disse...

Campeã! Campeã!

Eduardo Albuquerque disse...

entretenimento de primeira!

Anônimo disse...

Sempre que você reclamar da minha constante necessidade de ir ao banheiro, apenas irei responder: "Pelo menos eu nunca mijei na cama".