segunda-feira, julho 24, 2006

De Chihiro a Sen

Existem pouquíssimas interseções possíveis entre a banda de hardcore californiana Strung Out e o autor britânico Nick Hornby. Ambos, porém, passaram pelos meus últimos dias de forma parecida, tornando os paralelos mais urgentes do que relevantes. Enquanto revisitava a discografia do Strung Out como aclimatação para o show da banda (que verei em São Paulo no próximo sábado) nas últimas semanas, coincidentemente me dedicava às páginas de "Uma longa queda" (Long Way Down, 2006) , última obra do badalado romancista autor de megahits como "Alta fidelidade" (High Fidelity, 1995) e "Um grande garoto" (About a boy, 1998). Curioso é que as páginas recém impressas do livro de Hornby tenham um sabor tão semelhante ao das canções de Exile in Oblivion (2004), último disco do Strung Out.

Assim como Hornby lançou trabalhos que tiveram uma importância enorme na minha adolescência (em especial os mencionados "Alta fidelidade" e "Um grande garoto", com menção honrosa para o mais recente "31 canções" - 31 songs, 2003 - embora não um romance, leitura das mais agradáveis), o Strung Out foi uma das bandas que mais me impressionou na segunda metade dos anos 90, com discos excepcionais como Suburban Teenage Wasteland Blues (1996) e o supremo Twisted by Design (1998). Tanto Hornby quanto o Strung Out partiram de lançamentos mornos, mas com momentos de promissor talento (com, respectivamente, "Febre de bola" - Fever Pitch, 1992 - e Another Day in Paradise, de 1994), para segundas obras de grande impacto geracional ("Alta Fidelidade" e Suburban), e terceiras marcadas pelos melhores traços da maturidade artística ("Um grande garoto" e Twisted). Ambos erraram a mão no quarto lançamento (os fracos "Como ser legal" - How to be good, 2002 - e An American Paradox, do mesmo ano) e me inclinaram a uma inevitável dúvida: estariam eles realmente em fases pouco inspiradas ou seria eu quem mudara, condenando-os às amarras de uma época passada que hoje não faria sentido senão como nostalgia?

A resposta deveria vir com "Uma longa queda" e Exile in Oblivion, e a fruição sincronizada das duas obras me conduziu a um sonoro "não sei!". São, ambos, trabalhos melhores do que seus predecessores, mas falham em reproduzir o brilho que costumavam refletir em meus olhos adolescentes. "Uma longa queda" parte de uma premissa bastante interessante: quatro pessoas completamente diferentes se conhecem no topo de um prédio durante a passagem de ano, e todas haviam subido até lá com a intenção de cometer suicídio. A estória é narrada pelas quatro personagens, como entrevistas individuais editadas por cronologia, adicionando ao livro uma intenção de multiplicidade de pontos-de-vista. Exile in Oblivion foi anunciado pelo Strung Out como o disco mais pesado de sua carreira. Após o fracasso em fazer as pazes com a melodia em An American Paradox, a banda teria deixado seu sempre presente lado metaleiro prevalecer ao tatear novos destinos, já que a sonoridade do passado há muito perdera o vigor. Reforçando a intenção, convidaram Matt Hyde para trabalhar no disco, produtor famoso por parcerias com Slayer e Hatebreed. Surpreendentemente, porém, o livro de Hornby e o disco do Strung Out encontram nas ambições de seus projetos justamente as raízes de seus maiores problemas.

Muito por conta de sua formação jornalística, é inegável o talento de Hornby para transitar entre as sutilezas do discurso falado. Se a crença de que a literatura deve se aproximar da fala coloquial anda em alta, não é à toa que o autor inglês seja acolhido por parte da crítica ainda que seus livros alcancem inegável popularidade. A ambição da alternância dos narradores, porém, exacerba essa qualidade como motor principal, e por vezes gera a frustrante impressão de que a motivação de Hornby em seu novo livro não passa da construção mais rasa dos personagens por meio da fala. Ao escolher protagonistas de formação completamente diferentes (um apresentador de televisão, uma senhora reclusa de meia idade, uma moderninha desbocada e um roqueiro frustrado norte-americano), Hornby cria para si mesmo um laboratório de linguagem, e acaba tornando-se o rato dentro de sua própria gaiola.

Exile in Oblivion não nega, a princípio, sua proposta inicial: sua primeira metade traz de fato o material mais pesado já gravado pela banda, com os méritos e problemas que isso traz a reboque. A banda mostra-se mais vigorosa explorando o novo gênero do que mimetizando seus dias de glória. Porém, o uso descomedido do bumbo duplo, o timbre incômodo das guitarras e a falta de refrões fortes fazem que o disco passe longe de ser memorável. Assim como Hornby explora o discurso de seus personagens mas acaba negligenciando a estória que quer contar, o Strung Out se esbalda com os clichês de um gênero ainda pouco explorado pela banda, mas nesse meio tempo parece esquecer de escrever canções de verdade.

Seriam de fato trabalhos menos impressionantes de artistas que já não estão mais no auge, ou teria eu cumprido a sina de me tornar o alvo de meus ódios do passado? Encurralado pela dúvida, acalmo-me com uma solitária canção do último disco do Strung Out, e um trecho específico do livro de Hornby. Quando ambos deixam de lado seus novos pressupostos estéticos, me conquistam com a bela "Swan Dive" (curiosamente a canção de Exile in Oblivion que mais se assemelha ao passado da banda) e com a passagem onde a mãe de um adolescente em estado vegetativo assume ter comprado para seu filho coisas que os rapazes de sua idade gostam, e que ele provavelmente gostaria se não vivesse alheio ao mundo desde o nascimento. "Uma longa queda" e Exile in Oblivion melhoram exponencialmente em suas segundas metades, justamente quando Nick Hornby e Strung Out parecem menos afetados pelas expectativas externas e mais à vontade para fazer aquilo que sempre fizeram bem.

A dúvida, porém, continua. Não consigo afirmar com certeza se Suburban Teenage Wasteland Blues ou "Alta Fidelidade" teriam hoje em mim o mesmo impacto que tiveram há 10 anos. Nenhuma obra é desvinculada de seu tempo, e eu, obra do acaso, não sou diferente. Quando a feiticeira Yubaba, no magistral "A viagem de Chihiro" (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) obriga a pequena Chihiro a crescer (com um emprego, novas responsabilidades, e uma tendência a esquecer seu passado), muda seu nome para Sen. O observador atento percebe, porém, que o ideograma que representa Sen já estava contido entre os ideogramas que escreviam Chihiro. Sen, a pessoa adulta, seria portanto apenas parte (mas não todo) de Chihiro, a criança, potência aos poucos minadas pelas escolhas da vida. Confesso que, hoje, quando penso sobre uma das minhas seqüências favoritas do filme de Hayao Miyazaki, me pergunto se o processo não seria exatamente o contrário. Se o que fui quando jovem ainda seria parte de mim, mas que essa parte nunca teria sido todo. Se os discos do Strung Out ou os livros de Nick Hornby na verdade nunca foram grandes obras, mas apenas estavam presentes no momento mais oportuno. Mas também me pergunto se toda essa reflexão não seria a minha parte Sen devorando impiedosamente minha porção Chihiro, iludindo-me de que o processo de me tornar o que costumava odiar não é nada além de uma equivocada visão daquilo que os adultos chamam de "crescer".

6 comentários:

Anônimo disse...

show do Strung Out é de ficar para historia, mas não é o fim, vc ainda tem muito oque escrever da banda.

Anônimo disse...

Peraí, tô pensando ainda...

Anônimo disse...

Fábio, uma questão:
Se você lesse o Apanhador... (Salinger), um pouco mais velho, você acredita que ele seria tão fecundo? Acredita que o livo possa soar datado (paralelizando a questão strung out/hornby)?

Quanto a proposição de a literatura procurar a fala corrente: no Brasil houve um processo inverso durante nossa última vanguarda (termo horrível) e foi diverso também na França com o Nouveau Roman.
Dizem que isso ocorreu, a "ausência" da palavra, nos países onde tradição oral é mais intensa, por conta do colapso da razão no entre-guerras e pós-guerras. Nos países anglófonos o processo foi diferente. Daí que surgem, como exemplo, os beatnicks. É bombardeio de palavras "faladas" pra saturar sentidos e todo bla-bla-bla psicanálise e McLuhan possível. hehe

e é isso.
O fim do Post, sigo a claridade e continuo pensando, mas foi genial a questão proposta.

Fábio Andrade disse...

andré, se eu soubesse dizer como "o apanhador..." me tocaria hoje em dia, acho que o post teria mais respostas do que perguntas, não é? no fim das contas, como toda fruição está amarrada ao tempo, não consigo imaginar obras que se coloquem à margem dessa impressão. já li alguns livros duas vezes que me renderam impressões completamente diversas em cada uma das leituras. o mesmo aconteceu com filmes e discos. continuo sem saber.

curioso esse dado da frança e do brasil, até pq acredito que os dois países estejam se aproximando desse discurso hoje em dia. não sei a frança, mas ao menos no brasil vejo a literatura de base jornalística (que se aproxima de uma linguagem falada, menos rebuscada) crescendo muito. no cinema aconteceu a mesma coisa: nos anos 60, brasil e frança foram dois países que estavam à frente do movimento das vanguardas (com, respectivamente, o cinema novo e a nouvelle vague), e hoje o que restou? se pegarmos a maior parte da produção cinematográfica brasileira e francesa da atualidade, é possível perceber a intenção de se reaproximar do público, de criar um discurso menos hermético e mais popular. acho que o apreço pela palavra e pela forma está se perdendo um pouco. vivemos tempos conteudistas. a dedicação à forma hoje em dia é vista como arrogância. todo mundo tem medo de ser parnasiano. não sei se isso é bom ou ruim, mas é algo que eu percebo.

Anônimo disse...

O bafo do meu gato tem cheiro de ração de gato.

Anônimo disse...

Sobre o medo de ser parnasiano: a obsessão por vasos chineses era grande demais para que fossem colocadas flores em suas bocas.

A obsessão pela forma (reduzo meu campo ao literário) fica muito mais interessante com o rompimento da prática parnasista. Vide o Mallarmé pós-parnaso, Baudelaire e toda bizarria do processo de desconstrução conteudística pela forma com Joyce, Faulkner, T.S. Eliot.

Entendi o que você quis dizer, mas não creio que a despreocupação com a forma, para a colocação conteudista, seja relacionável ao parnasiano.

A espera da Palavra. hehehehe