quinta-feira, julho 13, 2006

Eu, edifício

Assim como o Rubinho relatou uma vez em seu blog ter uma amiga que criou o gênero dos "filmes de tortinho" (aqueles filmes onde uma estrela interpreta um personagem com deficiência física ou mental - se for as duas, melhor ainda - e ganha montanhas de prêmios por conta disso), tenho uma amiga que também inventou seu gênero cinematográfico: os filmes edificantes. Seriam, esses, filmes como "A sociedade dos poetas mortos", de Peter Weir (Dead poets society, 1989) ou os momentos mais canastrões de Cameron Crowe, como "Jerry Maguire" (Jerry Maguire, 1996) e o recente "Tudo acontece em Elizabethtown" (Elizabethtown, 2005). São filmes onde personagens e espectadores são ensinados uma lição de vida, e saímos do cinema revigorados, dando valor a pequenas coisas que a corrida cotidiana do mundo contemporâneo nos havia feito esquecer. Filmes edificantes, portanto.

A despeito da qualidade sempre variante de tais filmes, o maior incômodo surge da intenção de seus autores em reservarem, já, suas cadeiras ao lado de Nosso Senhor. Esses artistas - iluminados por sabedoria que nós, reles espectadores, jamais teríamos - usam seus filmes como veículos educativos e, com imagens visualmente sedutoras, personagens carismáticos e falas bem escritas demais para parecerem reais, passam sua "mensagem" com superioridade panteônica.

Pior do que o monstro, porém, só o monstro que se reproduz. Em pouco tempo, outro mercado já deveras antipático encontrou fertilidade inabalável nas intenções edificantes: a publicidade. Sim, a antipatia pela publicidade é uma de minhas indignações de estimação. Reconheço que meios não são culpados por seu uso, e sou o primeiro a admitir quando vejo uma campanha publicitária interessante, mas, via de regra, a publicidade é um veículo que sofre na mão de profissionais que se acham mais inteligentes e brilhantes do que realmente são. Basta lembrar que o maior expoente da categoria no Brasil teve a petulância de criar uma campanha de auto-promoção nos cinemas, onde com uma tela branca ele tentava, com onisciente narração em off de canastrice inaceitável, nos convencer a comprar a paz (o que significa, imagino, que a paz era propriedade dele). Desde então, passei a reparar na crescente difusão da publicidade edificante. Seja com o plano de saúde que se assume o segundo melhor (pois o melhor plano de saúde seria viver; com imagens sépias, crianças, cães e narração em off, claro) até o sofrível "Estatuto da sua nova vida", de Thiago de Mello, apropriado por uma empresa de automóveis, a publicidade agora quer nos tornar pessoas melhores.

O grande problema dessa intenção de mudar a vida dos outros é que ela parte do pressuposto, em si complicado, de que existe algo de errado com a vida dos outros, e que você tem a capacidade de perceber e solucionar esse problema por elas. O pior de ver isso associado à publicidade é que, se no cinema ainda existe um mínimo conforto de que um filme que muda a vida das pessoas vende a si mesmo, a publicidade não se encerra em si mesma, e edifica em nome de uma terceira coisa. Curiosamente, esse produto é normalmente tanto solução quanto causa do problema. E é nessa encruzilhada que me pego engalfinhado com a campanha criada pela agência Fallon para o Citibank, possivelmente a mais ultrajante de todas as publicidades edificantes.

A tal campanha do Citibank é um sossega-yuppie dos mais baixos, tentando apelar, com razão, justamente aos clientes do Citibank. Nenhuma oferta de produto associada (só sabemos o que a publicidade vende por conta de um discreto logo da empresa), e sim peças clean com dizeres (reduzindo-se, portanto, somente à "mensagem") asquerosos como: "crie filhos em vez de herdeiros"; "dinheiro só chama dinheiro, não chama para um cineminha"; "trabalhe, trabalhe, trabalhe. Mas não se esqueça: vírgulas significam pausas"; e os meus favoritos, "não é justo fazer declarações anuais ao Fisco e nenhuma para quem você ama" e (Deus do céu!) "o valor da bolsa subindo não é mais emocionante do que um dente-de-leite caindo". Fico especialmente tocado com o juízo de valor indicado pelo "não é justo", na penúltima peça, que indica que a publicidade agora quer, também, ser parâmetro de justeza. Além de vender produtos, as agências querem fazer julgamentos abertos sobre seus consumidores (até então esses julgamentos não costumavam sair dos relatórios das empresas). Os publicitários sabem quais são os problemas de nossas vidas, e com um mesmo anúncio são capazes de soluciona-lo (consigo visualizar plenamente um executivo com coração de pedra tendo sua alma tocada por um desses anúncios) e prolonga-lo (afinal, a solução está em um banco, justamente um dos ícones mais clássicos da mentalidade que eles apontam como causa do problema).

Pior do que o edificante, porém, é o edificante barato. Se antes a crença era de que precisávamos de Tom Cruise ou Robin Williams como catalizadores de uma mudança, hoje basta meia-dúzia de palavras em um ponto de ônibus. A crise do sujeito se tornou descartável. A vaidade yuppie atingiu níveis tão altos que se pode, anonimamente, ter a petulância de oferecer soluções rápidas para a vida dos outros (um "outro" que é genérico, impessoal, e que existe por ser o oposto do emissor da mensagem). Se somos tocados por uma propaganda (e esse blog de publicidade que encontrei enquanto pesquisava é indicador de que a campanha é bem sucedida) que diz "crie filhos em vez de herdeiros", estamos admitindo que, até alguns minutos atrás, todos pensávamos em criar herdeiros, não filhos. Precisamos, todos, ser edificados. Desde que não imaginemos o criador da edificação trabalhando até tarde, sem vírgulas, deixando de ir ao "cineminha" (em um nojento diminutivo) para criar uma peça publicitária que faça dele um yuppie bem sucedido.

8 comentários:

Anônimo disse...

Na boa? Parecia o Arnaldo Jabora falando hahahhahahahhahahahahahha

Anônimo disse...

Nunca mais vamos ter post tão edificante quanto este.

Anônimo disse...

"(...) superioridade panteônica." Não sei porque, mas nasceu em mim violenta impressão de palavra-valise na palavra "panteônica". Creio (e minha ignorância nunca me trai) que a referência é ao Panteon Grego, entretanto me remeteu à colocação Spinosista de "Panteísmo", Deus sendo a própria natureza, e ainda um remetimento a "tônica", então Deus na natureza é a tônica dos que se colocam ao "lado do Senhor". Edificar é meio de alcançar o etéreo. "Portmanteau" serve pra isso, quando não pra nada: achar coisa onde não tem. Fábio seu post é do tipo "Roman Fleuve"... um rio. Já tá bom de falar besteira à toa.

Anônimo disse...

só pra acertar meu troncho português... a besteira à toa é minha, não sua.

Anônimo disse...

Mas seus títulos continuam os melhores.

Anônimo disse...

Se um dos meus aprendizes tivesse criado essa campanha, eu só diria uma coisa:

VOCÊ ESTÁ DESPEDIDO!

Aliás, aproveitando o ensejo:

FÁBIO, VOCÊ ESTÁ DESPEDIDO!

Anônimo disse...

Mas as do Credicard são iradas!

Anônimo disse...

rapaz tem uma banda que é a sua cara. cinedisco.