quinta-feira, maio 14, 2009

2008 em 10 discos

07 - Girl Talk - Feed The Animals



Girl Talk é o paroxismo do método deleuziano. Alinhando-se a obras tão distintas quanto um ...se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, e os Kill Bill`s de Quentin Tarantino, Feed The Animals é mais um trabalho que - consoante a tendências ultra contemporâneas - pensa a taxinomia, a evocação, o inventário como um discurso artístico. Desde Secret Diary, o DJ Greg Gillis (o homem por trás da garota) usa uma mesma técnica de composição: criar peças musicais novas a partir de samples de outros artistas. Até este momento, seus álbuns se enterravam em limitações bastante previsíveis desse formato: tanto nos mais (Night Ripper) quanto nos menos interessantes de seus discos (Secret Diary), sempre pairava a impressão de estarmos ouvindo um exercício curioso de associações, mas nunca uma obra com joelhos firmes. Com Feed The Animals, porém, somos convidados a pular todas as páginas restantes do manual para, enfim, botar o brinquedo pra funcionar. E Feed The Animals funciona.

A diferença dele para os títulos anteriores não é de método, mas sim de aplicação. Em Secret Diary, os samples eram esmigalhados em microframes, construindo batidas e linhas a partir da combinação desses fragmentos. Com isso, Gillis fazia, talvez, seu mais radical exercício, tirando daquelas ínfimas unidades a possibilidade mais ampla de reconhecimento. Mas o sample, o inventário, funciona justamente a partir da identificação. Podemos não saber de onde, exatamente, vem cada referência de Kill Bill, mas elas são escoradas pela certeza da familiaridade. Nunca vimos aquelas imagens antes, mas sabemos que elas vêm de lugares imaginários muito específicos. Enquanto Secret Diary era como um quebra-cabeças sem peças, Night Ripper trazia peças bastante reconhecíveis (de "Where Is My Mind?" a "Tiny Dancer") que, ainda assim, não formavam uma imagem muito interessante. Unstoppable, seu terceiro disco, juntava as duas pontas, e encaixotava um quebra-cabeças de peças que não se encaixavam.

Até aqui, portanto, a relação com o Girl Talk era - embora fascinante em essência - de resultados um tanto tolos. A arte como jogo de montar nunca foi exercício dos mais interessantes, e os discos do Girl Talk pareciam expor o problema mais grave do método popularizado e rubricado por Gilles Deleuze: enfileirar referências não é, em absoluto, um discurso artístico. A chave encontrada por Gillis, em seu quarto disco, é simples, mas de resultados não raro muito surpreendentes: ele deixa os trechos das canções durarem um pouco mais, mas nunca os deixa tocarem sós, se esvaziando como simples citação. Além de sua preciosa arqueologia musical, o Girl Talk tem a seu favor um talento notável para perceber proximidades, e sobrepor canções ( o tão falado mash up) muitas vezes separadas por décadas (momentos como o que um verso de Lil Wayne é projetado sobre a introdução de "Under The Bridge", do Red Hot Chili Peppers, são de um timing musical desconcertante) - algo que acontece, nesse disco, muito mais vezes do que nos anteriores.

Mas Feed The Animals é mesmo uma obra notável por, enfim, encaminhar as pulsões de uma geração que se comunica por citações, e busca, na cultura pop, encontrar voz para expressar sentimentos genuinos e fabricados. O que temos, aqui, é o som dessa voz. Em um primeiro momento, é impossível não se deixar levar pelo jogo de advinhações: Radiohead, Cranberries, David Bowie, Faith No More, Toni Loc, Thin Lizzy, Elvis Costello, Nirvana, Jay-Z, Avril Lavigne, The Cure (jogo que, a propósito, as montagens feitas no YouTube a partir das faixas de Feed The Animals servem bem como gabarito). Tudo isso marcado pela batida incessante (lembremos que Gillis sempre diz que sua música favorita é "Scentless Apprentice" - aquele genuíno pancadão do Nirvana) que vai esburacando essa grande dobra temporal, trazendo um "Jump! Jump!" pra cima de um refrão do The Band; indo buscar Sinnead'O'Connor e Ace of Base em lugares cobertos de luminosa poeira; emendando o refrão de "Lovefool", do Cardigans, com o hit do ano do Hot Chip. Tudo em uma velocidade galopante, trazendo, a cada novo sample, um número avassalador de lembranças.

No entanto, se existe algo comum que faz de Kill Bill e ...se um viajante numa noite de inverno obras notáveis, é justamente o salto da taxinomia para o discurso próprio. Buscamos as palavras dos outros porque as palavras são sempre as mesmas; mas podemos criar frases fabulosas trocando cada uma delas de lugar. Logo passamos para um segundo estágio, que é o de perceber o que é criado de novo a partir de combinações de elementos já tão sedimentados na memória. É esse sentido de unidade que faz de Feed The Animals um disco tão bacana, pois Gillis não só escava a memória de cada ouvinte com os samples que tira de sua discoteca, mas, principalmente, cria momentos extraordinariamente únicos na combinação desses elementos individuais. É claro que o solo de guitarra de "In A Big Country", do Big Country, é genial por si só; mas quão mais genial ele se torna quando combinado com o refrão de "Whoomp! (There It Is)"? Quando ouvimos "ABC" montada sobre um solo de "Bohemian Rhapsody" - talvez duas das canções mais reconhecíveis da história da música pop - e sentimos ouvir essas velhas conhecidas pela primeira vez, é sinal que uma operação muito especial está acontecendo ali. Feed The Animals é uma festa ininterrupta onde essas operações acontecem diversas vezes por minuto.


For dummies
Álbuns do Girl Talk recomendados em ordem de interesse

Feed The Animals, 2008
Night Ripper, 2006
Unstoppable, 2006
Secret Diary, 2004

3 comentários:

Anônimo disse...

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Andre de Freitas Sobrinho disse...

eu tenho certeza que vou gostar disso; contrapartida, gera uma quse certeza de que você não vai gostar do meu livro. =^P

Fábio Andrade disse...

eu diria que é necessário um esforço considerável para não gostar desse disco, andré.

aguardo o seu livro ansiosamente. mande logo.