quarta-feira, julho 15, 2009

Notas infundadas sobre o envelhecimento


É oportuno que o calendário tenha feito coincidirem, em Nova York, as exposições Avedon Fashion, no ICP, e a retrospectiva de James Ensor, no MoMA. Pois, em ambos os casos, o que vemos é o enfraquecimento latente de armaç ões internamente subversivas na medida em que elas se tornam mais claramente conscientes para seus realizadores, virando leitmotif auto-evidente de trabalho.

Logo em sua primeira foto de moda de sucesso, Richard Avedon já deixava claro que sua preocupação era sempre problematizar a imagem. The New Look of Dior trazia a modelo Renée de costas para a câmera, em composição que combina a pose estudada à impressão de instantâneo de um Cartier-Bresson. Em seu contraplano (o plano da foto), porém, temos um homem que não olha para a modelo, mas sim diretamente para a câmera. Mais do que exibir um modelo (a roupa, ou a pessoa), Avedon insere esse olhar problematizador que pensa a imagem dentro da própria imagem.


Que essa primeira foto sirva como guia de aproximação: nos primeiros dez anos cobertos pela exposição como fotógrafo de moda (do final da década de 1940, ao final de 1950), Richard Avedon invariavelmente coordenava os elementos em cena de forma a produzir uma auto-crítica não só a seu trabalho, mas principalmente ao meio em que ele se inseria. Quando não construía um onirismo absolutamente irreal, escancarando a fantasia que a publicidade sempre tenta escamotear, Avedon misturava suas modelos a performers de toda natureza - em coreografia com elefantes de circo, ou em uma mesa sobre um palco onde se apresentam dançarinas de cancan.




Com a simples composição da cena, Avedon estabelecia um complexo discurso de auto-ironia, onde a imagem não só era construída buscando força plástica, mas também um bem articulado jogo de camadas político. As mulheres não apareciam como mulheres; mas sim como performers que viviam do corpo, da imagem, da sedução (em sua série de fotos de Sunny Harnett em cassinos, em 1954, temos a impressão de que os prêmios apostados são as próprias modelos).

A mulher aparece reduzida a cabide; a manequim, como vemos em associação literal na belíssima Workroom - tirada no ateliê de Dior, em 1947 (infelizmente, não encontrada na rede) - em que o enquadramento coloca, lado a lado e em poses igualmente esvaziadas, os corpos inanimados de uma modelo viva e de uma boneca que serve como molde para o costureiro. Esse conceito ele repetiria em 1998, ainda com bastante força, em foto cujos nomes das modelos (Carmen Kass e Audrey Marnay) aparecem como marca, descolados de possível identificação.


De certa forma, a busca por ironia coberta em Avedon Fashion só irá ser retomada em In Memory of the Late Mr. and Mrs. Comfort - série de fotos realizadas para a New Yorker em 1995. Claramente inspirada pela iconografia da pintura madura de James Ensor, Mr. and Mrs. Comfort traz uma modelo (Nadja Auermann) contracenando com um esqueleto.



Tanto em Avedon como em Ansor, a inserção do artifício (o esqueleto) só faz ressaltar o empalidecimento de uma crise que, antes disfarçada, já perdera sua força. Há uma diferença brutal em se compor a ironia a partir do momento, e inseri-la como signo externo à diegese; em Avedon e em Ansor, a necessidade da inserção ergue a cabeça para fora d'água, como buscando um último gole de ar que não é suficiente para manter a pulsação dos pulmões.




O universo dominante da maturidade de Ensor é frustrante, pois traz para o terreno figurativo questões que já eram plenas quando subcutâneas em seus primeiros trabalhos. A ambivalência em relação à vida aparece tão mais bem expressa em suas pesquisas gestaltistas da relação figura/fundo (e é uma grande ironia que um de seus mais belos quadros se chame The Domain of Arnheim, e seja muito anterior aos estudos de Rudolph Arnheim dos fundamentos da gestalt), onde a figura (pois nem sempre é o ser) aparece tencionada entre a vontade de se ver integrada ao m(f)undo, e a necessidade pessoal de se destacar dele - algo que, talvez, atinja maior nível de clareza em suas gravuras a carvão.




Onde termina o chão? Onde começa o rosto? Um se projeta sobre o outro, e a imagem se torna esse espaço indiscernível, imprecisável, incomensurável. A fase madura de Ensor é por demais auto-consciente, e o auto-retrato não é mais movido pelo drama do desaparecimento, mas sim pelos limites que os separam de suas criaturas. Há, aí, algo de carnavalesco, e não é à toa que o carnaval tenha adotado o termo "alegoria"; há necessidade de clareza, pois o meio (o rapaz que olha para a câmera, naquela foto de Avedon) não é mais o centro de discussão. É apenas um meio, de fato.

Quando constrói sua iconografia de caveiras e máscaras, Ensor deixa de se expressar com as particularidades inerentes ao seu craft, como o uso da cor em Fireworks; ou o brilho quase lautreciano - e, por isso mesmo, subversivamente incomum - que ele aplica a The Drunkards, com personagens que parecem prestes a serem absorvidos pelas cores das paredes. Quando Avedon produz um ambiente absolutamente impalpável em In Memory of the Late Mr. and Mrs. Comfort (não bastasse a mão pesada com o título), reduz sua ironia a mensagem. Pois a ironia da ironia é que ela, mesmo quando calculada (como toda composição é), precisa aparentar espontaneidade. Caso contrário, ganha-se em clareza, e perde-se em tensão. E quando alguém evidencia sua intenção de ironia, normalmente ela não é mais que cinismo.

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