quinta-feira, março 01, 2007

Melhores de 2006 - Discos



05 - Bruce Springsteen - We shall overcome: the Seeger sessions

Bruce Springsteen foi o artista mais importante de 2006. Embora ele não tenha lançado um disco de canções inéditas, e suas turnês americanas não atraiam mais o enorme número de seguidores do passado, a influência de Bruce (o único homem que o jornalismo deveria se negar a chamar pelo sobrenome) na música pop nunca foi tão proeminente. Vários dos discos mais interessantes do ano bebiam diretamente nos melhores trabalhos do chefe, fazendo seu nome voltar a circular nas publicações de música independente. Além de tudo isso, Bruce trocou sua E street por uma big band para gravar um disco apaixonante, chamado We shall overcome: the Seeger sessions.

Para nós, brasileiros, a recepção de We shall overcome é inevitavelmente incompleta. Em primeiro lugar por sua inspiração maior, o ícone folk Pete Seeger, não ter no Brasil expressão próxima da que tem nos EUA. Conhecido por aqui mais como o purista que se revoltou ao ouvir Bob Dylan tocando guitarra elétrica pela primeira vez - no famoso episódio do Newport Folk Festival - Seeger é, na verdade, uma figura chave no movimento folk norte-americano. Embora musicalmente conservador, foi ele um dos pivôs do movimento pelos direitos civis nas décadas de 50 e 60, além de ter escrito canções de enorme sucesso (“Turn, turn, turn” gravada pelos Byrds, e “If I had a hammer”, de Peter, Paul & Mary, por exemplo), restaurado clássicos esquecidos do cancioneiro popular americano, e até mesmo escrito um famoso método para banjo de cinco cordas. We shall overcome não é exatamente uma homenagem a Pete Seeger, o compositor (apenas uma das 13 canções do disco é de co-autoria de Seeger), mas sim ao impacto do músico na cultura norte-americana. Impacto forte o suficiente para fazer Bruce gravar o primeiro disco de covers em seus mais de 30 anos de carreira.

A cegueira à importância de Pete Seeger não é, porém, o que faz de We shall overcome um álbum diferente aos nossos ouvidos. O que é intransferível é a carga cultural impressa no álbum: são canções tão populares nos Estados Unidos que se confundem com a própria identidade do país. Projetar o impacto de We shall overcome nos ouvintes norte-americanos é como imaginar que Bruce Springsteen tivesse gravado um disco de canções de roda, ou algo que o valha. We shall overcome acaba sendo, para nós, um olhar mais profundo no afeto do outro, em um lado da América que raramente nos é mostrado. O mais novo álbum de Bruce se torna ainda mais interessante justamente nesse salto de significado, e na maneira que o artista lidou com esse ruído inevitável. Ao contrário da maioria dos discos de Bruce Springsteen - de produção quase sempre dispendiosa - We shall overcome foi gravado ao vivo no estúdio, em três dias. Talvez por isso o disco se aproxime tanto de outro importante registro folk do ano: a extraordinária trilha-sonora de “A última noite”, filme derradeiro de Robert Altman (já comentado por aqui). A abordagem de valorizar o encontro (a banda tocando ao vivo) é a mesma, com a diferença de que o disco gravado pela Prairie Home Companion tem a atmosfera radiofônica essencial ao funcionamento do show (e do filme). Aqui, a mixagem discreta faz com que uma big band afiadíssima soe intimista, e a voz de Bruce aparece limpa, como se cantada pessoalmente ao lado do ouvinte. Somos jogados, portanto, no meio da festa.

Se a trilha do filme de Altman já traz a fase embranquecida da música folk norte-americana (com muito bom gosto, é preciso ressaltar), Bruce e sua banda parecem ir mais atrás, buscando compreender como seriam as tradições antes de terem se tornado tradições (como fez a fantástica trilha de “E aí meu irmão cadê você?”, anos atrás). A maior parte de We shall overcome é de uma exuberância ímpar. O refrão de “O Mary don’t you weep” é de rara devoção, com um coro que convida o ouvinte a embarcar, de vez, no disco. “Old Dan Tucker” traz Bruce em humor mais leve do que em qualquer outro momento de sua carreira. “John Henry” e a vaudevilliana “Jacob’s ladder” têm mais vida do que qualquer festa que você já possa ter ido. “Jesse James” e “My Oklahoma home” soam tão atuais que poderiam se tornar melhores amigas do Being there, do Wilco. A balada “Shenandoah” é moldada tão perfeitamente pelo timbre de Bruce Springsteen que estaria em casa em seus melhores discos mais recentes, como Devils and dust e The rising. “We shall overcome”, música que se tornou tema do movimento pelos direitos civis nos EUA (equivalente americano para “Pra não dizer que não falei de rosas”, hino de Geraldo Vandré nos dias da ditadura), ganha no disco uma leveza que a carga histórica parecia ter negado à canção até hoje.

O interesse por um disco tão rico quanto We shall overcome vem das mais diferentes fontes. O bom gosto dos arranjos, a elegância da produção, a alma que transparece no encontro. O significado de canções tão embrenhadas culturalmente que os 13 músicos do disco (incluindo o homem de frente) gravaram, de forma tão esplêndida, sem precisar de um ensaio sequer. A voz de Bruce Springsteen que nega sua essência messiânica por uma humildade perante a História. A possibilidade de travar contato direto com a riqueza de uma cultura que tomamos por íntima, mas que consumimos com autenticidade equivalente à do hot Filadélfia na culinária japonesa. E, intelectualizações a parte, pela diversão. Raramente somos presenteados com momentos tão vivos e excitantes quanto os registrados nessas Seeger sessions. Nós, que aqui travamos contato com boa parte das canções pela primeira vez, ganhamos um empurrão extra. Mas, mesmo sem ele, presenciar um artista com uma trajetória como a de Bruce injetando vitalidade em canções que conhece desde garoto (e se divertindo imensamente com tudo isso) é inspiração contundente demais para ser ignorada.

1 comentários:

Anônimo disse...

E ainda me perguntam porque eu quero que meu filho se chame Bruce...