quarta-feira, fevereiro 20, 2008
Postado por Fábio Andrade às 1:02 PM
Melhores de 2007
02 – Maria Antonieta (Marie Antoinette) – Sofia Coppola
Em 1999, Sofia Coppola surpreendera a mim e a meio mundo com seu belíssimo longa de estréia, As Virgens Suicidas. Senhor de seu próprio encanto, o filme de 1999 era ornamentado pelo inegável talento visual da diretora, mas seu olhar duramente sensível ainda não deixava vislumbrar o que estaria por vir. Encontros e Desencontros, o longa seguinte, era a obra-prima que nem os fãs mais ardorosos do filme de estréia de Sofia pareciam acreditar ser possível. O impressionante balé de corpos, luzes e afetos do segundo filme de Sofia Coppola se revelaria não só um trabalho de vigorosa autenticidade (com todo seu encanto, As Virgens Suicidas poderia, sim, ser um primeiro inspirado trabalho de uma artista propícia a toda sorte de cacoetes e modernices inconvenientes), mas também um desses momentos especiais onde as peças parecem se encaixar em suave harmonia. Encontros e Desencontros é o filme que eu gostaria de ter feito (e eu nem tenho tanta vontade assim de fazer um filme), embora tenha plena consciência de que a aspereza hormonal masculina (por mais que eu seja mulherzinha) me manteria sempre distante demais daquela sensibilidade.
Então Sofia vem com Maria Antonieta, e mais uma vez nos surpreende. Afinal, quem poderia prever que uma diretora aparentemente tão envolvida com a superfície visual/sensória/cosmética do que filma estaria disposta a mergulhar em um projeto com a relevância política de Maria Antonieta? Curioso que, em filme onde as posições tomadas são tantas e tão bem demarcadas, ainda tivesse gente que visse apenas uma nova estorinha de uma garota aprisionada na solidão da pompa do seu tempo (o que o filme também é, mas não só). Porque além de ser mais um precioso retrato sobre a (não?) inserção das jovens mulheres no mundo (e, honestamente, quantas vezes já vimos esse universo ser observado com tanta propriedade quanto nos filmes de Sofia?), Maria Antonieta é uma constatação da necessidade de todo filme se relacionar diretamente com seu tempo. Em seus palácios habitados por canções pop, reis que falam (sem falso sotaque) sobre peitos e bundas, pares de All Star, e uma encantadora displicência em tons de rosa, Sofia dá a sacudida que os filmes históricos tanto precisavam: se a História é fonte reveladora da maneira como nos relacionamos com o mundo hoje, é essa relação que interessa, que precisa estar impressa na película. Que venham os anacronismos, os choques visuais e morais, afinal, é isso que vem alimentando a História desde que ela se tornara maiúscula.
Mas Maria Antonieta não é só um manifesto político. Temos Kirsten Dunst no papel de sua vida; temos a olhada para a câmera mais despudorada desde os créditos inicias de Mal dos Trópicos; temos uma trabalho de música absolutamente notável (como já era de se esperar, tratando-se de Sofia); uma construção de cena preciosa, e um rigor visual que nunca tolhe a sensualidade magnética da câmera de Lance Acord. Temos, também, algumas das seqüências mais fortes do cinema em 2007: a separação de Maria Antonieta de seu cão; o som da multidão enfurecida no extra-campo da sala de jantar real; a jovem rainha que oferece, na varanda, sua cabeça ao povo; o grafismo pop do “clipe” de “I Want Candy”; os momentos de Maria com a filha no Petit Trianon; a impressionante secura da cena final.
Enquanto o cinema contemporâneo joga o nome de Rossellini para todo que é lado, buscando no realizador italiano novos artifícios de aparência, Sofia Coppola talvez tenha feito, com seu Maria Antonieta, o filme mais rosselliniano que o cinema viu em anos. Se seu universo visual é outro, a urgência política de seu filme parece ir buscar coragem em Rossellini para promover transformações em uma maneira de o cinema olhar uma certa fatia do mundo que parecia, há muito, plenamente cristalizada. Dizer que Maria Antonieta é o Paisá de nossa época seria exagero? Talvez. Mas é um filme de uma urgência ímpar, que o cinema parecia há muito estar aguardando. E isso, definitivamente, não é algo que se vê todo dia.
0 comentários:
Postar um comentário