segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Melhores de 2007

03 – Medos Privados em Lugares Públicos (Coeurs) – Alain Resnais


Se organizar listas já é um grande exercício de rememoração, escrever com alguma dedicação sobre cada um dos filmes – como me proponho aqui – às vezes estica os fios da memória até extrair vibrações que vão surgindo com o andar dos textos. Medos Privados em Lugares Públicos é filme que vi apenas uma vez, à época da estréia nos cinemas, em Julho de 2007. Não tive chance de rever o filme desde então – padrão que se repetiu com a grande maioria dos lembrados nessa lista. Escrever, portanto, se torna um exercício tão árduo quanto surpreendente, já que as imagens dos filmes retornam centrifugadas pelo tempo que nos separa, e o que sobra são apenas impressões avulsas de obras feitas com intenção de coesão, de uma unidade que já não está mais presente. Estes textos, portanto, são textos sobre o que ficou, o que sobreviveu ao esquecimento e ao excesso de exposição que toda dedicação traz consigo. Pensando que tento manter minha média (nem sempre cumprida) de ver um filme, entre novos e revisões, por dia, é de se imaginar que a relação com cada um deles seja sempre impura, contaminada por contatos enviesados, por obras que se aproximam na mera coincidência de meus dias.

Medos Privados em Lugares Públicos talvez seja, entre meus favoritos, o que se sustenta de maneira mais rarefeita na memória – justamente o filme de um cineasta que revolucionou o cinema tratando da lembrança e do esquecimento. Não deixa de ser surpreendente que quase 50 anos depois de renovar bastiões com seus Hiroshima, Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad, Resnais tome preciosa posição na inutilidade dessa lista com um filme tão bonito quanto seus clássicos. Os dispostos a procurarem, nesse novo filme, uma mimetização do estilo que Resnais inventara na virada da década de 1950 para 1960 devem se preparar para uma enorme decepção: existe, em Medos, uma intenção de ressignificar afetivamente o popular, o pouco erudito, o belo que flerta com o cafona (o que falar do extraordinário bar onde se desenvolve a maior parte de um dos encontros de Medos?) capaz de desmontar muitos dos espectadores mais cultivados – especialmente aqueles que se encastelam na comodidade da alta cultura.

Afinal, estamos, aparentemente, diante de um típico “filme do Estação”: Medos Privados em Lugares Público não deixa de ser um melodrama sobre a solidão de personagens mundanos, com os toques de comédia de costumes que tanto agradam as velhinhas (que, apontemos, aqui não é questão de idade) falantes das salas “de arte” do circuito carioca. Assim como Resnais já demonstrava o interesse proeminente pela cultura popular em Amores Parisienses (filme todo construído a partir do imaginário das canções populares francesas – dirigido, sim, pelo mesmo homem que, no passado, adaptara Robbe-Grillet), aqui ele vai buscar no centro de um novo cinema popular francês a base para suas indagações – sem com isso deixar de olhar afetuosamente para o gênero e para seus tipos e cacoetes mais claros. Alain Resnais é o tipo de artista atento ao mundo, para quem tudo - do holocausto às teses científicas - pode virar inspiração.

Mas esse interesse nunca fica na superfície, pois o talento do diretor inevitavelmente se sobrepõe às amarras das convenções. E é justamente isso que sobrevive, depois de tantos meses, do contato com o filme: Resnais filma como muito poucos chegaram a filmar. A inventividade dos enquadramentos e movimentos de câmera, o rigor impecável das composições, o trabalho notável com os atores. Sobram, de Medos, essas pequenas grandes evidências de seu incomensurável talento: a divisória de vidro que separa um dos casais em seu ambiente de trabalho (sem dúvida uma das melhores metáforas que um cenário já criou no cinema – barreira física mas, ainda sim, transparente, transponível ao olhar); o retrato que encara a câmera com um efeito narrativo que nunca conseguimos decodificar para além do efeito; o velho tarado que grita obscenidades dispostas a invadir o quadro; a neve que invade a sala de jantar em um maravilhoso salto de diegese; a janela dividida ao meio; os apartamentos em plongé; as fitas de vídeo que vêm e vão, carregadas de afeto. E, claro, as transições em neve – efeito de uma beleza tão assustadoramente simples que o cinema só consegue alcançar em um ou outro raro momento de iluminação de um artista em preciosa forma. O gelo da solidão que separa os personagens do filme – o intransponível limite do outro – mas que aqui aparece de forma festiva, em flutuante leveza que, como transição entre duas seqüências distintas obrigadas a conviver em um mesmo mundo, permite que os solitários possam, enfim, dar as mãos.

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Enquanto o blog segue em passos negligentes (que prometo tentar corrigir, dando cabo de nossos 10 filmes até o fim da semana), a produção para a Cinética segue frenética: estão no ar críticas da grata surpresa que é Desejo e Reparação e da grata confirmação de Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet como mais um grande filme de Tim Burton.

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