segunda-feira, março 12, 2007

Melhores de 2006 - Discos



02 - The Hold Steady - Boys and Girls in America

Colocar uma descoberta recente entre as melhores coisas de 2006 pode parecer exagero de ouvinte afobado. A não ser que a descoberta em questão seja Boys and Girls in America, mais novo trabalho do quinteto nova-iorquino Hold Steady. O terceiro disco da banda (conheci os outros dois apenas em retrospecto) é a mais urgente peça de música lançada em 2006. Auto-intitulada como a banda de bar número 1 da América, o Hold Steady dilui Bruce Springsteen e Thin Lizzy em uma mistura de destilado com todas as drogas que estiverem ao alcance, e em 11 faixas te leva para uma noite que parece sempre longe de acabar.

Mas por que canções que combinam álcool, drogas, garotas e rapazes ainda fazem tanto sentido? O que diferencia a poesia de pé sujo de Craig Finn, líder do Hold Steady, de toda a bagaceirice chata dos anos 70? Por que um álbum que começa citando Kerouac ainda ressoa no mundo? O enigma por trás de várias dessas perguntas é um dos principais méritos de Boys and Girls in America. E quando tiramos do caminho tudo aquilo que não conseguimos decifrar, sobra uma particularidade essencial: em vez de falar sobre os atos, Finn canta a sinestesia das lembranças.

Para os olhos de Craig Finn, o mundo é bastante semelhante àquele de Wong Kar-wai. Os encontros são fugazes, os reencontros não raro decepcionantes, os significados são posteriores, os diálogos se repetem. A memória é o único registro. A diferença é que os filmes de Kar-wai se preocupam com questões amorosas de policiais, matadores e escritores, enquanto as canções do Hold Steady falam sobre jovens em uma festa interminável. E se o recorte traz riscos inevitáveis (paternalismo, moralismo, generalização), Finn torna toda a situação mais complexa adicionando uma dose cavalar de culpa cristã. Os rapazes e garotas na América se despem da moralidade para encontrar a noite perfeita, mas esbarram em dogmas e costumes da infância que impedem que a experiência seja plena. Tomam toda sorte de drogas para construir momentos inesquecíveis, mas essas mesmas drogas esfumaçam a memória e deturpam o registro. “Most nights were crystal clear but tonite its like it's stuck between stations on the radio”, define a faixa de abertura. A imprecisão da memória é dado essencial em Boys and girls in America. Era ou não era a mesma garota? Houve ou não houve o beijo?

Difícil separar o conteúdo musical do lírico no Hold Steady: o conceito da banda é tão bem delineado que acordes e palavras buscam, sempre, um mesmo efeito. Estão lá os pianos tirados de Born to run, as guitarras oitavadas de Jailbreak, os metais que lembram Rocket From the Crypt e os solos que derretem os rostos dos mais dedicados heróis da air guitar. Mas tudo isso cairia no saudosismo vazio não fossem as estórias. A garota que beija como nenhuma outra, mas não é cristã das mais confiáveis (e que dança melhor que qualquer uma, mas daria uma péssima namorada). O poeta que morre por acreditar que suas palavras eram boas o suficiente para salvar sua vida. A viciada que ganha dinheiro nas corridas de cavalo e gasta tudo comprando drogas pros amigos (personagem que parece saída de “Estranhos no paraíso”, clássico de Jim Jarmusch). A banda que toca “Sabbath bloody sabbath”. A garota que sofre por nunca conseguir ficar tão chapada quanto da primeira vez, e chora ao falar sobre Jesus. Os beijos que fariam Judas parecer sincero. Os lençóis que mancham, e os pecados que saem com água. Personagens e idéias que reaparecem em diferentes canções, como as pessoas que você conhece de vista por irem sempre à mesma festa que você.

Se o universo criado por Finn alcança a rara proeza de fazer um disco parecer interessante no papel, as canções são razão suficiente para colocar (quase) todo o Boys and girls in America na lista dos rocks mais legais de 2006. “Stuck between station” abre o disco de forma mais que apropriada: todos os elementos que serão aprofundados nas canções seguintes já aparecem nos primeiros 30 segundos. Os riffs pontudos de guitarra, as belas linhas de teclado e órgão, o vocal quase falado de Craig Finn; o jogo fica claro de início, e a fruição do álbum está voluntariamente vinculada a essa primeira impressão. “Chips Ahoy” é séria candidata a melhor faixa do disco, com seu memorável duelo de guitarra e hammond e o vocal de galerão no refrão. A compassada “Hot soft light” tem um dos melhores refrões do disco. “Same kooks” é, sozinha, justificativa para a invenção da guitarra.

E, como toda banda de rock clássico digna de um vintém, o Hold Steady também compõe baladas. “First night” é a que melhor desempenha o papel, embora os violões de “Citrus” e os pianos de “Party pit” rendam preciosos respiros ao longo do disco. “Massive nights” é fanfarronice em forma de música, e a incrível “Southtown girls” é pronta candidata a uma das melhores canções para se cantar bêbado já feitas na história (lembrando que “Living on a prayer” tem título intransferível nessa categoria). E embora a banda promova o cruzamento de gêneros e instrumentos pouco prováveis, Boys and girls in America se sustenta com inabalável unidade.

A preocupante exceção é “Chilout tent”, penúltima faixa do álbum. Tentativa mais rebuscada de contar uma estória, a canção traz Finn como narrador, enquanto Dave Pirner (ex-Soul Asylum) e Elizabeth Elmore (Sarge/The Reputation) fazem as vozes dos personagens principais. O aprofundamento teatral na estória de dois jovens que se conhecem tomando intra-venoso no posto médico de um show acaba revelando uma canção mal acabada, provando que muito do que impressiona nas letras de Craig Finn está mais intimamente ligado à música tocada pela banda do que percebemos. A voz de Elizabeth Elmore está em registro tão desconfortável que estraga um bom refrão, quebrando a diegese proposta pela própria canção. Todas essas deficiências fazem de “Chilout tent” uma exceção em um álbum quase perfeito. Essa exceção só se torna preocupante quando percebemos que a canção expõe algumas das fraquezas do universo lírico que, até então, nos conduzira de forma tão impressionante. Os personagens ganham caracterizações tão extremas que se aproximam de caricaturas, e as sedutoras imagens de Finn parecem ressoar em um acomodado vazio.

Não fosse a possibilidade de esgotamento prematuro de um projeto estético em formação, Boys and Girls in America estaria no topo da minha lista esse ano. Raramente encontramos discos tão abertamente apaixonados pelo rock’n’roll quanto esse, e estar diante de obra que transpira honestidade só faz desmontar as aparências que macularam um mundo que, um dia, nascera para ser espontâneo.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ok, você me convenceu. Vou baixar este hoje!

Rubem disse...

Aiiiiii!

Tomou esporro do Rodrigo Lariú!

http://www.chappa.com.br/noticia.php?titulo=rodrigo-lariu-1

Eu não deixava...

Fábio Andrade disse...

fantástico, né? :)

Anônimo disse...

e ai fabio blz, não vou perder tempo explicando qm sou eu pq vc não vai lembrar de mim, mas tenho duas coisas pra falar...
1: seus posts são kilométricos e da preguiça de lêr, apesar de eu achar vc um ótimo escritor desde q vc fez a analogia do metrônomo com vc mesmo...
2: vc ja vouviu esse disco: "the format - dog problems", é animal, parece um musical da brodway, meio circense, pop, não sei, diferente de tudo, fóda... obs: tem q ouvir no minimo umas três vezes pra gostar, como qualquer outro disco bom...
acho q era isso, se não der preguiça eu leio o proximo post, abraço... obs (novamente):tem algum lugar q ainda da pra achar aquele diario da gravação do hollywood?
abraço...

Fábio Andrade disse...

Amauri,

1- Diria que os posts não são grandes de propósito, mas reflexo da abordagem que propus a mim mesmo quando comecei o blog. Minha intenção não é fazer um guia de consumo, dizendo "se você gosta disso e daquilo, compre isso que você também vai gostar". Francamente, nunca comprei um disco por conta de resenhas assim, acho que já existe muita gente fazendo esse trabalho que, além disso, não acho interessante. Acho que sempre faltou material escrito que levasse música pop mais a sério. Textos que tentassem traduzir o que aqueles álbuns e canções dizem, percebendo tendências e mudanças de olhar que não fossem meramente comparativas. Minha idéia aqui no blog é muito essa. Quem quiser saber do que eu gosto pra ver se vai gostar, é só olhar a capa dos discos e ir atrás. Quem quiser entender os porquês, lê os textos. Entendo que dá preguiça (às vezes também tenho preguiça de escrevê-los), ainda mais agora que passei um bom tempo esmiuçando as obras que mais me interessaram no ano passado. Mas, bom, ao menos existe. Podem não ser textos para todos, mas se alguém quiser ler uma análise mais detida, os textos estão aqui.

2- nunca ouvi esse disco que você mencionou, mas vou correr atrás pra ver qual é.

acho que tenho os diários do hollywood no meu computador. se quiser, me manda um email que eu te passo, ok?