quarta-feira, março 07, 2007

Melhores de 2006 - Discos



04 - Belle & Sebastian - The life pursuit

Dia desses ouvi uma estória sobre o Miles Davis. Reza a tal estória que ele ficava incomodado por as pessoas ficarem conversando durante suas apresentações, até que decidiu se afastar um pouco do microfone. Miles Davis reparou que, tocando mais baixo, as pessoas tinham que fazer silêncio para ouvi-lo, e por conta disso ele criou um novo estilo, uma nova maneira de tocar. É mais ou menos assim que eu me sinto em relação ao Belle & Sebastian. A delicadeza que a banda usa para esculpir cada acorde é tão bem calculada que você tem que parar de fazer qualquer coisa para ouvir seus discos. Tudo parece tão belo e frágil que um movimento mais brusco teria o poder de quebrar o tempo das canções. Então você senta e fica ali, quieto, ouvindo o que a banda tem pra te dizer.

Essa delicadeza é o que o Belle & Sebastian sempre teve de mais original. Foi isso que impressionou quando o grupo tomou o mundo pelo pé do ouvido, com o belo The boy with the arab strap – disco que, na verdade, resume o trabalho que a banda já fazia nos álbuns e singles anteriores. Em época de gravações ultracomprimidas, os sussurros da banda se destacaram entre os gritos, e o mundo parou para ouvir. Esse estilo tão bem delineado parecia, porém, atingir o paroxismo no disco seguinte. Fold your hands child, you walk like a peasant mantinha todos os elementos que faziam do B&S uma banda especial. Apesar disso, a fragilidade das canções logo assumia a forma de fraqueza, e a impressão inevitável era a de que a estética da banda se tornava decrescente. Tudo estava no mesmo lugar, mas esse lugar não parecia mais tão agradável. O disco te mandava sentar para escutar, mas você logo ficava com calor e tinha vontade de ir fazer outra coisa.

O fim do B&S como conhecíamos estava decretado pelas próprias canções. Até que saiu o disco seguinte, Dear catastrophe waitress, e a trupe de Stuart Murdoch se mostrava tão ciente das limitações de seu velho projeto estético quanto qualquer pessoa com orelhas. Chamar o disco de ruptura seria banalizar o termo, mas canções como a magnífica “If she wants me” e “You don’t send me” traziam um inesperado novo fôlego à banda. Não era a constatação de que o paroxismo não passava de aparência, mas sim sutis mudanças que indicavam um processo de transformação lento, porém definidor.

The life pursuit começa com poucas novidades aparentes. “Act of the Apostle part 1” desfia as tradicionais imagens religiosas de Murdoch por uma melodia embebida no melhor dos Zombies. Soa delicado, bonito e a garota que adormece ao sentir o peso do sol sobre a nuca sonha em se tornar uma canção (“Oh, if I could make sense of it all! / I wish that I could sing /I’d stay in a melody / I would float along in my everlasting song / What would I do to believe??”). Soa exatamente como Belle & Sebastian, mas algo parece dizer que a canção será apenas um guia conhecido em uma jornada por lugares nunca antes visitados. O andamento aperta em “Another sunny day”, lembrando as melhores faixas do brilhante If you’re feeling sinister. Apesar de ainda estarmos em território conhecido, a canção é tomada por uma energia que contradiz a fina porcelana dos acordes, e torna a faixa ainda mais interessante. E se a vista ainda parece familiar demais para ser propriamente excitante, Murdoch, o contador de estórias, as sustenta com algumas de suas melhores linhas. “The lovin is a mess what happened to all of the feeling? / I thought it was for real; babies, rings and fools kneeling / And words of pledging trust and lifetimes stretching forever / So what went wrong? It was a lie, it crumbled apart /Ghost figures of past, present, future haunting the heart”, canta ele, sobre o amor que chega ao fim. As primeiras canções de The life pursuit parecem, também, cantar sobre uma banda que chega ao fim. Mas com o fim do amor desgastado, nasce outro mais atual e excitante.

“White collar boy” soa quase como uma outra banda. A bateria, mixada surpreendentemente alta para um disco do B&S, guia a linha de baixo marcante e os vocais de pergunta e resposta, como um onisciente coro grego que tenta convencer o protagonista a tomar o caminho inverso (“You were chained to a girl that would kill you with a look / It’s a nice way to die she’s so easy on the eye”). A melodia lembra Beach Boys e (vá-lá!) Supertramp, e as possibilidades de mudança indicadas pelo disco anterior tomam dimensões dificilmente imaginadas. Com as quase microfonias do final, somos conduzidos a “The blues are still blue”. Quem diria que aquela frágil banda escocesa construiria uma de suas melhores canções em cima de um riff clássico de guitarra? Murdoch brinca com as palavras e as cores, e troca os signos religiosos por roupas em uma lavanderia. Backing vocals galhofeiros e solos de guitarra adicionam à sobriedade da banda um toque inestimável de inconseqüência, e o Belle & Sebastian – aquele senhor aprisionado em corpo de jovem – se encanta, um pouco tardiamente, com as belezas da juventude.

The life pursuit é dominado por canções extrovertidas como as do parágrafo anterior. “Sukie in the graveyard” e “Song for sunshine” buscam teclados em Stevie Wonder, com resultados inesperadamente funkeados. “We are the sleepyheads” com seu abre e fecha de cimbal, e “Funny little frog” misturam soul e disco em divertida equação. “For the price of a cup of tea” é uma das melhores canções já escritas pela banda, e o humor discreto de Murdoch convida o ouvinte para dançar escondendo o ridículo atrás das pálpebras cerradas. “Act of the Apostle part 2” dá um passeio em um teatro vaudeville antes de retomar a primeira parte, dando mais um sujeito à cidade onde Deus adormeceu. O guia conhecido retorna para perguntar como tem sido o passeio, e assumimos a voz da personagem, cantando junto a vontade de se tornar canção.

O curioso é que, como o alívio cômico em um filme de horror, as canções de sorriso largo só fazem destacar os momentos em que o Belle & Sebastian retorna à charmosa timidez dos primeiros discos. “Mornington crescent” e “Dress up in you”, respirações necessárias para quando já perdemos o fôlego na pista de dança, soam, se não mais belas do que o Belle & Sebastian que nos conquistou no passado, mais completas por assumirem, no disco, papéis que colaboram com a fruição do todo. Nesse sentido, The life pursuit é sequenciado como nenhum disco anterior da banda, pois traz uma diversidade inédita que, inevitavelmente, cria uma obra mais versátil. Embora essa idéia não seja regra, os escoceses do B&S a usam com inteligência, e criam o disco mais consistente de suas carreiras.

Surpreendente que, em ano em que bandas razoavelmente semelhantes lançaram discos tão bons, o pai de todas elas ainda se coloque acima da prole. The life pursuit não é tão melancólico quanto o belo álbum do Camera Obscura, ou tão desafiador quanto The crane wife, dos Decemberists. Tampouco tão divertido quanto o surpreendente álbum de estréia dos (25) suecos do I’m from Barcelona. Mas é um disco que incorpora um pouco de cada um desses valores, e monta uma peça por fim mais complexa. Na arte dos discos, nas letras das canções, no design de toda a parte gráfica (ainda sonho em comprar todo o merchandise da banda, até mesmo os itens feitos para garotas), nos arranjos, nas fotos; o Belle & Sebastian sempre me parece um pouco mais do que uma banda. É uma atmosfera, um olhar, uma vontade diante do mundo. E ver essa vontade (de) se travestir de personagens diferentes, sem nunca deixar de ser ela mesma, confirma The life pursuit como um grande disco.

2 comentários:

Anônimo disse...

Beeeeeelle e Sebastian!!!!

Agora só falta um disco do maravilhooouuuso Cooooldplay...

Fábio Andrade disse...

obrigado rubinho, por nunca desapontar em sua previsibilidade!