sexta-feira, março 09, 2007

Melhores de 2006 - Discos



03 - Johnny Cash - American V: A Hundred Highways

“It should be a while before I see doctor Death”, canta Johnny Cash em “Like the 309”, a única canção propriamente inédita de American V: A Hundred Highways.
Somos tomados pela sensação de que, talvez, a primeira linha da última canção escrita por Cash não seja mais que uma tentativa de auto-convencimento, e imaginar sua imponência curvada diante do inevitável é de desmontar homens feitos. Pouco tempo depois, Johnny Cash foi tirar suas contas com o tal doutor, e esse A Hundred Highways ganha inevitáveis feições de testamento. A obra derradeira do iluminado encontro de dois homens-música (Johnny Cash e Rick Rubin) é um auto-retrato, uma biografia em canções.

Muito do brilho da série American Recordings é mérito de Rick Rubin. A idéia do produtor de trazer Cash para o presente, buscando cruzamentos possíveis de suas premissas estéticas com a música pop contemporânea, é o que faz com que os cinco discos sejam pontos altos em uma obra tão vasta e importante. Embora nem todos os passos tenham sido firmes, a American Recordings se afirma, com esse último volume, como uma das mais impressionantes criações da música recente. A produção de Rubin – aqui concluída após o falecimento de Johnny Cash – não trai a adequada discrição dos volumes anteriores, e adorna uma das mais icônicas vozes da música mundial com arranjos simples e de finíssimo gosto.

Mas como falar de música quando estamos ouvindo o balanço de vida de um artista? O que é a música diante da existência? Para que servem canções quando a morte não mais se confunde com a linha do horizonte? Em A Hundred Highways, o artista parece nos dizer que vida e música são uma coisa só. E se o disco é tomado de uma serenidade por vezes desconcertante (sensação próxima à transmitida pelos últimos filmes de Akira Kurosawa), a voz de Cash parece ter amado cantar a vida. Se ele abre o disco pedindo ajuda a Deus em seus últimos passos, é porque Cash quer nos levar em uma última caminhada pelos entroncamentos da memória. A humildade perante os mistérios da vida - nervo central de sua estética - requer esse humilde pedido diante dessa inquietação maior. Atendido o pedido, Johnny Cash canta para nos mostrar, em cada faixa, a beleza desses mistérios.

“If you could read my mind” canta a distância inevitável entre duas pessoas que se amam, e a combinação entre a interpretação do cantor e o humor original da letra culmina em fascinante ambigüidade. “The feeling’s gone and I just can’t get it back”, lamenta Cash, ao final da canção. Mas a caminhada continua, como diz “Further on up the road” – bela interpretação de Cash para a canção de Bruce Springsteen. “On the evening train” traz a dor para o primeiro plano: “The babies eyes are red from weeping / His little heart is filled with pain / ‘Oh daddy,’ he cried, ‘they're takin' momma / Away from us on the evening train’ ", diz o narrador, enquanto um caixão é colocado dentro do trem. Moldada pelo timbre de Cash, a dor da criança pela percepção da morte se torna evidência da vida.

“Love’s been good to me” começa humilde, mas escala diminutos para terminar como uma das mais impressionantes canções do disco. O amor que partiu em “If you could read my mind” é revisitado, aqui, sem nenhum traço de arrependimento: “There was a girl in Denver / Before the summer storm / Oh, her eyes were tender / Oh, her arms were warm /And she could smile away the thunder / Kiss away the rain / Even though she's gone away / You won't hear me complain”. Ao fim da vida, a memória perde qualquer rastro de amargor, e se torna agradecimento pelo que foi vivido. E, aos poucos, Johnny Cash nos conduz por todos os mistérios que sempre o encantaram: amor, Deus, vida, música, morte, consciência.

O quinto volume da American Recordings é um registro último dessa visão de mundo, que se torna ainda mais fascinante por chegar íntegra ao final. A interpretação de Cash demonstra o refinamento conquistado com os anos, e a consistência de seu projeto artístico domina cada uma das 12 faixas do álbum. Seu testamento não poderia contradizer mais o discurso de “Johnny & June” (ou, se preferir, Walk the line), filme de James Mangold sobre a vida do cantor. Enquanto Mangold constrói um homem partido que alcança a redenção, Johnny Cash retruca que a vida partida é a redenção em si. Se as linhas onde ele caminhou foram tortas, foram as linhas que ele escolheu para escrever sua história. Os eventos, em si, pouco significam. O que sobrevive é a intensidade com que eles foram vividos, a pulsação que conduzia a caneta nos traços dessa biografia.

1 comentários:

Anônimo disse...

Fala Fábio! Faz um tempo que não nos falamos, mas continuo lendo teus posts sempre que tenho um tempo. Ótimo texto sobre um dos caras mais fodões que existiram. Abraço!