segunda-feira, novembro 26, 2007

Top 5 da semana

Tive uma mudança meio brutal no meu horário de trabalho, saindo do turno da tarde e entrando para o incômodo mundo onde celulares despertam às 5h20 da manhã. Ainda assim, me parece um preço bastante ameno pelas tardes livres que, nessa semana, gastei – quase todas – nos cinemas da cidade. Não sei se a freqüência é o determinante, mas esses últimos dois meses do ano me parecem vir para compensar a magreza do cardápio cinematográfico de 2007: não só vi filmes bem acima da média, como já começo a guardar espaço na agenda das semanas seguintes para estréias vindouras que me interessam (“Lady Chatterley”, de Pascale Ferran e, sobretudo, “Novo Mundo”, filme de Emanuele Crialese que há muito tenho curiosidade de assistir, e que já tem trailer e cartaz circulando nas salas do Rio). É por isso que passo batido por uma mais que tardia vista impressionadíssima de “Os reis do iê iê iê” (primeiro filme de Richard Lester com os Beatles que até essa semana esburacava meu repertório de vida) em dvd e faço um top 5 dos mais recheados, só com filmes em circuito. Aproveitem a bonança, pois ela tem sido mais rara do que todos nós gostaríamos.

01 - Hotel Chevalier - Wes Anderson


Como entusiasta do cinema de Wes Anderson, foi com alguma tristeza que me peguei entediado por boa parte de seu último longa, “Viagem a Darjeeling”. Nenhum questionamento ao talento do rapaz; estão ali a estranha frontalidade de suas composições, a exuberância de suas cores primárias, os tons acima da encenação, o primoroso gosto musical, a pontualidade do slow montion, o silêncio de seu humor. O incômodo é que a leve sensação de desconforto que já marcava o terço final de “A vida marinha com Steve Zissou” apareceu com uma recorrência meio assustadora em “Viagem a Darjeeling”, e fiquei cá na poltrona como se estivesse em uma festa para a qual não recebi convite. Anderson continua um apurado compositor visual (alguns momentos de “Darjeeling” tem a força visual das telas de Miguel Calderon que Anderson usou como elemento de cena no irretocável “Os excêntricos Tennenbaums”), mas seu centro dramatúrgico me parece extremamente cansado (e cansativo) nesse seu último filme. Embora apareçam alguns elementos de construção bastante inspirados (a ineficiência completa de toda e qualquer ritualística externa; a belíssima seqüência do funeral do menino indiano; a redistribuição, como bem observou minha Clarissa, dos papéis familiares ausentes entre os filhos), “Viagem a Darjeeling” me parece a confirmação de uma anunciada (por parte da crítica) perda de fôlego artístico que eu ainda não havia sentido.

Seria preocupante se, antes de “Viagem a Darjeeling”, não fôssemos contemplados com uma pequena obra-prima de 13 minutos chamada “Hotel Chevalier”. Apresentado como introdução à estória de “Viagem a Darjeeling”, o curta realizado por Wes Anderson com Natalie Portman e Jason Schwartzman traz todos os elementos fascinantes de seus longas, sem o esgotamento narrativo que fere “Darjeeling”. A enxurrada de amarelos, a mise-en-scène criada pelos próprios personagens (a canção que o personagem de Schwartzman põe pra rolar em seu iPod, conferindo ao momento real um clima cinematográfico, me parece um resumo de muitas das intenções cinematográficas de Anderson), os belíssimos planos em slow motion (sim, a cena de nudez de Natalie Portman merece um inevitável destaque), a composição sempre estranhamente bem equilibrada, os movimentos de câmera meio zombeteiros, o texto que enfeita o vazio... tudo que faz Wes Anderson aos meus olhos aparece condensado em “Hotel Chevalier”, com economia e vigor absolutamente arrebatadores.

02 – Jogo de cena – Eduardo Coutinho


Assim como acontece com Wes Anderson, há dois filmes o projeto cinematográfico do gênio Eduardo Coutinho vem esbarrando em suas próprias paredes. Sem querer desqualificar “Peões” e “O fim e o princípio”, desde a obra-prima “Edifício Master” a obra do mais importante documentarista brasileiro me parecia aguardar um sopro de renovação. “Jogo de cena” não é, porém, uma ruptura. É a busca da essência da caminhada que indicará os destinos possíveis.

Embora muito se tenha dito sobre um suposto flerte com a ficção, regra do jogo (expressão utilizada por Coutinho como o recorte que permite a existência de cada um de seus filmes) continua a mesma: um filme que documenta encontros entre duas vozes (a de Coutinho e de seu entrevistado), buscando não no discurso, mas no próprio ato da fala, algo revelador. A mistura de atrizes (mais ou menos profissionais) com suas personagens (em “Jogo de cena”, todas mulheres) pouco altera a estrutura do filme: em Coutinho, todos atuam, e é esse olhar sobre si mesmo que interessa o diretor.

Muito me impressiona, portanto, o depoimento da atriz Andréa Beltrão, logo no início do filme. Mais do que um jogo do recontar, o que Coutinho busca é a verdade que cada boca adiciona seu discurso. A dificuldade da atriz em reviver certas nuances da personagem que inspira seu discurso me parece um dos momentos mais belos de todo o cinema de Coutinho: o momento da percepção do outro, da vinculação de cada história a seus protagonistas, da aproximação de retratista e retratado (no caso de “Jogo de cena”, sempre pelo viés da família, da filha que se torna mãe), da consciência de imagem e auto-imagem. Quando não se deixar escorregar nos excessos do dispositivo (a atriz que se revela por um “e foi assim que ela contou”, no final do depoimento, por exemplo), Coutinho faz um filme realmente belíssimo.

03 – Os donos da noite (We own the night) – James Gray


Não conheço nada da filmografia anterior de James Gray, mas me parece extremamente difícil driblar o deslumbramento (e por que faríamos isso?) diante de alguns preciosos momentos de seu “Os donos da noite”. Curioso que esse encanto não seja nunca buscado pela supra-estilização do gênero (aqui, o policial), mas sim por abordagens inventivas de sua essência mais tradicional. As fotografias de abertura, a canção do Blondie que embala o quase-coito e a impressionante pista de dança em plongé (é muito fácil filmar cenas em casas noturnas mal, e a força que vem de um único, breve plano de Gray me parece fruto de exímia precisão), o matagal que queima, a chuva que cega uma perseguição de carros etc. “Os donos da noite” parece combinar “O pagamento final”, “Os infiltrados” e “Zodíaco” e alcançar quase tudo o que há de melhor nesses três filmes.

04 – Antes só do que mal casado (The heartbreak kid) – Peter e Bobby Farrelly


Mais um filme dos irmãos Farrelly, mais um mergulho dedicado na projeção de preconceitos e expectativas que (re)moldam o mundo. “Antes só do que mal casado” não tem o fôlego dos melhores momentos da dupla (embora me pareça tão bom quanto “O amor em jogo”, o bom trabalho anterior dos irmãos), mas, por diversos momentos, o que parece uma atenuação se revela uma democratização da imperfeição, um deslocamento imperceptível que gera um ângulo absolutamente novo para as questões da dupla (e o reaparecimento de motivos clássicos da obra dos diretores reaparecem aqui justamente para se mostrarem esvaziados, pedindo uma nova abordagem). Também, como poderia eu não me dobrar diante de um filme que retrata o ápice da felicidade em um casal que corta a estrada ensolarada ouvindo “Rosalita”, e cantando a letra da canção alto o suficiente para abafar o barulho do motor? Eu posso ser mais fácil que uma manhã de domingo, mas a satisfação em ver uma cena como essa (que ainda serve de escada para uma das melhores piadas do filme) é prazer do qual não faço planos de me privar.

05 – Mutum – Sandra Kogut


“Mutum” poderia muito bem ser um grande filme se não tropeçasse na relutância da diretora em se entregar ao tempo de determinadas passagens (importantíssimas, porém). Ainda assim, o primeiro filme de ficção de Sandra Kogut (que havia realizado o bom “Um passaporte húngaro”) me parece muito mais interessado em se colocar diante do mundo de uma maneira autêntica do que um Karim Ainouz, por exemplo. Embora a montagem seja mãe dos problemas mais evidentes de “Mutum” e o do supra-comentado “O céu de Suely”, Sandra Kogut me parece se entregar mais na busca de uma estética, enquanto o filme de Karim Ainouz me parece reproduzir uma gestalt de “cinema de arte” contemporâneo, buscando atalhos para um sentimento que raramente está lá. Com todos seus tropeços, “Mutum” e a proximidade delicada de seu olhar sobre o universo que escolhe é não raro cativante (no meu mundo de associações desconexas, em momentos me lembrou “A floresta dos lamentos”, de Naomi Kawase). O trabalho impressionante dos atores e a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. escoram uma sensibilidade instigante, que tem tudo para se revelar mais intensamente na segurança dos trabalhos futuros.

2 comentários:

Thiago Camelo disse...

Até o Coutinho atua no Jogo de Cena. Em dois momentos: quando, de fato, ele dá a deixa para as atrizes atuarem e, também, na hora de entrevistar efetivamente. Acho que a pergunta "qual é o limite da atuação" se dá para o próprio Coutinho. Curto isso no filme.

Concordo contigo quando diz que o "foi o que ela disse" é caído. Mas me parece demais também a Fernanda Torres justificando em palavras a dificuldade de encenar a menina. Pô, aquilo já estava no filme muito antes de ela dizer, não precisava tornar tão claro!

Fábio Andrade disse...

Thiago,

Acho que o Coutinho parte do princípio da veracidade da atuação, e não se existe atuação ou não. Tenho a impressão de que, para ele, a atuação existe o tempo todo, então ele atua sim, e não só nos dois momentos mais claros que você apontou. Isso é algo que ele já trabalha há bastante tempo, e aqui talvez só se torne mais evidente... lembra da "mentirosa verdadeira" do "Edifício Master"? Acho que já tava tudo ali. Não é à toa que o Coutinho dizia que aquela personagem era a filósofa favorita dele no filme todo.

O que me incomoda em certos momentos da Fernanda Torres (incluindo o que você falou) e da Marília Pêra é a impressão de uma consciência bastante clara de oferecer o que elas acreditam que o Coutinho quer delas. Ele ratifica isso colocando os planos na montagem. Mas acho, também, que essas acabam sendo novas camadas, novas perguntas pra se fazer ao filme. Acho que mais do que perguntar "o quê" às atrizes, o filme pergunta "como". E aí me parece que a minha impressão mais favorável às respostas da Andréa Beltrão é mera questão de empatia mesmo. Isso me impressiona muito no filme, porque no fim das contas a própria percepção individual de quais seriam os bons e os maus momentos se torna uma nova camada que o filme de propõe... o dispositivo é tão forte que até mesmo o questionamento de seus excessos se torna uma pergunta da estrutura do filme pra maneira que você se relaciona com ele.