quarta-feira, dezembro 27, 2006

27th

Nesta época do ano, todos fazem uso da internet para desejar boas festas. Ao redor de (quase) todo o mundo, as pessoas deixam de lado as agruras do cotidiano para celebrar o nascimento de um ser iluminado, cujos valores são base fundamental da sociedade em que vivemos. Tal ser - cuja perfeição despertou sentimentos nada nobres em seus pares menos esclarecidos - transformou o mundo como nenhum outro espírito, pois seu carisma e sua generosidade sintetizam, ainda hoje, tudo o que gostaríamos de ser. Seu nome se tornou sinônimo de integridade e justiça; seu semblante, ícone de bondade.

O que só os leitores deste blog sabem é que todo o resto do mundo comemora o nascimento desse inquestionável líder com dois dias de antecedência.

Sing me happy birthday.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

I wish I was him

A melhor coisa que li em 2006.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Aperitivo para qualquer coisa consistente

1 Estou de férias nas Barramas, na casa de papai e mamãe, e a irritante conexão discada explica a falta de atualizações nos últimos dias. Há muito não tinha tanto tempo de sobra, e todos sabemos que quanto maior o ócio, maior a vontade de não fazer nada. Nos primeiros dias cumpri todo o feng shui pré-virada: organizei meus cds, livrei-me, finalmente, de todas as minhas fitas cassetes, joguei meia floresta de papéis fora, desocupei alguns pares de gavetas, só para passar o resto das férias pensando em formas de ocupa-las novamente. Hoje, completando uma semana por aqui (e não tendo colocado o pé na calçada mais do que meia dúzia de vezes), já desisti de manter a aparência produtiva. Se descontarmos, claro, o gás nas leituras e a chance de ver filmes que há muito ansiava (re)ver. Em alguns dias, chega o Natal - os presentes - e, dois dias depois (dia 27!), meu aniversário - outros presentes. Dentre os planos de férias, ainda preciso me embebedar e encarar as 10 horas de filmes do Sergio Leone que me aguardam na gaveta (não necessariamente tudo isso em um mesmo dia). A vida é boa e fútil, e ainda estou longe de ficar de saco cheio disso.

2 Para 2007, porém, já incluo nas promessas de ano novo atualizações mais constantes. Como prova de boa fé, iniciarei (ok, tentarei iniciar) o ano com posts diários, revelando, dia após dia, milha lista dos 10 melhores filmes e discos de 2006. Afinal, fazer esse tipo de balanço foi o principal motivo que me levou a começar esse blog. A vida é boa e fútil, e ainda estou longe de ficar de saco cheio disso.

3 Todo mundo já deve saber do anúncio da MTV dizendo que, até 2007, deixará de exibir clipes em sua programação. Quem, como eu, achava que o MTVLab era um bom retorno à essência do canal (que, por um período, só exibia clipes para interrompe-los no meio), tem prova, mais uma vez, de que o mundo é caído e de que as pessoas sempre vão boicotar o potencial de maneirice da vida. Embora os índices de audiência sejam indiscutíveis, a declaração da emissora - de que as pessoas preferem ver clipes pela internet porque podem assistir somente aos de sua preferência - pode ser usada tanto pela defesa, quanto pela acusação. Com o fim da presença de videoclipes no canal e o excesso de VJs retardados, não tenho mais nenhum motivo para continuar assistindo à MTV (e, claro, o número de posts nesse blog diminuirá sensivelmente por carência de matéria-prima). Espero que algum sistema de TV por assinatura decida trazer logo para o Brasil o sinal da MTV2, já que o MTVHits (da Sky) só passa as mesmas coisas. O bordão dos dois primeiros tópicos nem encaixa aqui...

4 Falando em mesma coisa, o novo single do My Chemical Romance é bem mais interessante do que tudo que ouvi da banda no passado. Apesar da fofoca bisonha de que eles teriam gravado 150 canais para chegar à perfeição com "Black Parade", o refrão da música é bom, e a tentativa de imitar o Queen tem lá seu charme. As letras, o visual dos rapazes e todo o gestuário (agora querendo ser o Freedy Mercury) do tal Gerard Way continuam lamentáveis. Em um mundo perfeito, o próximo clipe do My Chemical Romance mostraria a banda toda pegando um bronze na praia - com sunguinhas coloridas, mas sem maquiagem - cercada por mulheres leiteiras, sendo uma delas o "cara" do AFI. E o Robert Smith faria uma ponta, pegando onda, de bermudão. Durante todo o clipe, imperaria o sentimento de que a vida é boa e fútil, e que estamos, todos, longe de ficar de saco cheio disso.

5 Trilha-sonora das férias: "All these things", do All Systems Go. A banda, do ex-Doughboys John Kastner (e que viria a contar com remanescentes do Big Drill Car e do Descendents na sua formação), passa longe de ser memorável, mas "All these things" é das músicas mais viciantes que ouvi em um bom tempo. Uma canção que impressiona por não ter, absolutamente, nenhum tempo morto.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Amarcord: Fale comigo Verão

Com que freqüência nos lembramos do nosso primeiro contato com uma obra-prima que viria a se tornar definidora em nossas vidas? Confesso que nem sempre sou capaz de perceber uma obra-prima assim que somos apresentados, mas não é sobre isso que quero falar. Lembro quando, em meados de 1996, um amigo me emprestou uma fita Sony UX (lembra como as fitas chromo tinham a melhor sonoridade, os melhores agudos?) de 90 minutos, e em um dos lados tinha o álbum Anthem for a new tomorrow, de uma banda da qual nunca ouvira falar, chamada Screeching Weasel. Não tenho a menor idéia de o quê tinha gravada no lado B da fita, mas o encanto com aquele álbum do Screeching Weasel foi tão imediato que até hoje ele é minha peça favorita na discografia da banda.

É comum vermos o Screeching Weasel jogado no tal saco de gatos que se convencionou chamar de bubblegum, mas confesso que a influência nítida de Ramones no som da banda nunca foi a raiz de minhas melhores impressões. É claro que ela existe e é, de fato, orgulhosamente assumida pelos próprios integrantes da banda, mas o que me fascina no Screeching Weasel (e que está especialmente presente em Anthem for a new tomorrow) é, além da simplicidade, a capacidade de criar melodias que parecem ao mesmo tempo ensolaradas e sombrias, sorridentes e melancólicas. Agridoce, diria. Nesses momentos, o Screeching Weasel se afasta de suas releituras ramônicas e se aproxima, estranhamente, da banda que talvez tenha melhor compreendido o pop punk (não fossem seus álbums terem tantas canções dispensáveis quanto hinos), o Descendents.

Existe algum cruzamento possível entre os Ramones e canções insuportavelmente belas como "Falling appart", "Thrift store girl" ou "Every night"? São canções que estão muito mais próximas dos momentos mais clássicos dos Descendents – como "Silly girl", "Sour grapes", "Get the time" ou a insuperável "Clean sheets" – do que da maior influência assumida pelo Screeching Weasel. Embora esses momentos não sejam predominantes na carreira da banda, é possível rastreá-los até mesmo em seus primeiros passos; lembremos de "Stupid over you", "Hey suburbia" e "Supermarket Fantasy", todas do segundo álbum da banda, Boogadaboogadaboogada. São canções que já tateavam o caminho, caminho esse que teria até mesmo ramificações (basta lembrarmos do Sludgeworth, banda formada pelo ex-Screeching Weasel Danny Vapid, e que demonstrava as mesmas intenções no interessante Losers of the year).

Existe, porém, em Anthem for a new tomorrow, uma canção-síntese que resume essas intenções. Trata-se de um número instrumental chamado "Talk to me Summer", faixa 5 do álbum. Os Ramones tiveram incursões instrumentais que mais pareciam bases onde a banda não soube encaixar vocais. Os Descendents (e principalmente o ALL) também se aventuraram várias vezes em canções sem vocais mas, embora boas canções, eram muitas vezes mais próximas de jam sessions de improviso do que de canções, tradicionalmente falando. Com "Talk to me Summer", o Screeching Weasel cria uma canção (a melodia base é perfeitamente assobiável – quase cantável, diria) instrumental com as poucas notas tão características aos solos de guitarra da banda, e resume o sentimento agridoce de suas melhores canções.

Em minha propensão ao epifânico, ruminei por anos a idéia de fazer uma canção-cumprimento a "Talk to me Summer". De uma maneira estúpida e auto-afirmativa, seria minha forma de dizer ao mundo que eu havia entendido o que Ben Weasel dissera em sua canção sem palavras, e que eu percebia o sentimento que distinguia o Screeching Weasel de suas influências assumidas e de seus daltônicos seguidores. Eu queria escrever uma canção instrumental, mas não tinha a menor idéia de como começar.

Alguns verões antes eu tinha criado um riff de guitarra do qual gostara muito, mas nunca fora capaz de criar vocais em cima (tentei algumas vezes, sem nunca ser propriamente bem sucedido). Descobrira à época como criar falsos tons menores pelo uso de sextas, e é possível que tal riff tenha sido minha primeira concretização dessa idéia (antes mesmo de "Waiting for tomorrow"). O que fiz, portanto, foi criar uma seqüência de acordes razoavelmente lógica (o riff seria o verso e, se não teríamos refrão, precisava criar ao menos uma ponte e uma terceira parte complementar), gravei em uma fita cassete e, com um double deck, coloquei-a para tocar enquanto gravava tentativas de solo em cima. Diferente de todas as minhas canções, "Fale comigo Verão" foi um trabalho de pesquisa e compreensão formal de um original, na tentativa de repensar seus elementos e criar algo novo. Sem chafurdar em tecnicalidades, percebia que o verso da canção do Screeching Weasel explorava notas mais próximas à primária, sua ponte subia e buscava notas um pouco mais graves, para depois culminar em um terceiro verso que trabalhava frações mais agudas.

Embora eu use, em "Fale comigo Verão", muito mais notas do que Ben Weasel usara, a estrutura é basicamente a mesma: após várias sessões de improviso, detectara uma parte que criara que trabalhava com notas próximas à primária (o verso), outra que buscava tons mais graves (a ponte) e uma predominantemente aguda (a parte final). Montando o quebra- cabeças, adicionei uma pausa e a tradicional batida surf na parte final para reverenciar os Descendents, como o subtexto que afirmava que eu havia compreendido as intenções por trás da canção, percebendo suas particularidades e reverências. Sim, parece bobo e juvenil hoje em dia, mas esse híbrido controlado ainda resume minhas crenças de que retrabalhar influências é arte legítima, de que podemos buscar elementos de artistas que gostamos, combina-los e torna-los nossos (afinal, eu aprendi a compor roubando – e estudando – músicas dos meus artistas favoritos). De que antes de artistas somos ouvintes, só que essa relação não é passiva, mas sim tem algo de antropofágica, de consciente referenciação que, se presente, melhor assumida.

Ainda acho que "Fale comigo Verão" é bastante bem sucedida em suas intenções. Não soa como uma cópia da original, mas sim como uma releitura livre, um complemento não autorizado. Surpreendo-me hoje com algumas notas mais ousadas que meu conhecimento formal de hoje talvez não permitisse, mas que eram encorajadas pela minha inconseqüente curiosidade da época. E, mais do que isso, acho um exemplo curioso de como nos apropriamos da criatividade dos outros e clamamos para si, tornando-a nossa de alguma forma. Não à toa, lembro de quando, anos mais tarde, o próprio Ben Weasel lançara a sua continuação para "Talk to me Summer" (a faixa "The first day of Autumn", de Teen punks in heat), e eu não consegui controlar a impressão de que ele não tinha, de fato, compreendido o espírito de sua canção original.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Manifesto

Quando vi o preço dos ingressos para o show do New Order no Rio (R$115 para estudantes) tinha decidido tomar partido contra a safadeza e simplesmente não ir. O dólar já não vale tanto quanto costumava, mas, embora a quantidade de bandas vindo ao Brasil tenha aumentado consideravelmente, os produtores cobram preços cada vez mais altos. Em minha memória afetiva, esse processo começou no show que o Green Day fez no Rio, em 1998. À época, os ingressos de shows internacionais não passavam de R$25 (assim como uma promoção no McDonalds custava menos que R$5), mas para o Green Day o preço subira para R$40. Decidi seguir minha crença política e simplesmente não ir ao show. Ouvi comentários posteriores de que a casa estava vazia, e à porta cambistas tomavam prejuízo vendendo ingressos pelos usuais R$25. Minha atitude política, enfim, ressonara.

Saltamos para o show do RHCP há um par de anos atrás, cujos ingressos custavam R$90 (sem direito a meia-entrada de estudantes). Não dou dois centavos para o RHCP desde meus quinze anos de idade (embora o Bloodsugarsexmagic tenha sido o primeiro cd que comprei, junto com o Facelift do Alice in Chains) e ainda assim esbravejei alfinetes contra a facada indiscriminada dada pela organização. Em Fevereiro, porém, senti o coração pesar no bolso: R$100 a meia-entrada para o U2. Em São Paulo. Com filas de 12 horas para comprar ingresso. Consolei-me dizendo que a enorme produção que o U2 trazia para o Brasil até certo ponto justificava o valor, e acabei suicidando-me duas vezes e vendo a banda duas noites seguidas. Mas só porque era o U2, e Bono seria o primeiro a dizer que o U2 está acima de qualquer política.

Segui militando contra o valor absurdo da entrada para o show do New Order, considerando até tecer um post de protesto para o blog. Lembrei-me dos R$40 que não dei no ingresso do Green Day, e ainda me pergunto se gastei esse dinheiro em alguma coisa mais significativa do que ver uma das minhas bandas favoritas ao vivo. Pensei também em como seria ouvir "Regret" ao vivo, provavelmente minha música favorita do New Order. Minha Clarissa disse que eu devia ir, pois me arrependeria depois. Respondi que era uma questão política mais ampla, e que ir ao show seria apoiar um tipo de postura que acredito ser abusiva. Minha irmã insistiu para que eu fosse, pois ela queria ir mas não tinha companhia. Retruquei que ir em shows sozinho não é necessariamente desagradável e que ela não devia deixar de ir só por conta disso (embora o preço do ingresso fosse motivo mais nobre e definitivamente suficiente). Minha mãe tentou me convencer que gasto R$115 de maneiras bem menos interessantes. Engoli a boa resposta que nunca veio.

Hoje, um dia antes de "Temptation" e "Bizarre love triangle" serem ouvidas ao vivo no Rio pela primeira vez, continuo minha luta contra o preço abusivo dos ingressos para o show. Torço para que a casa fiquei vazia e que a organização sofra as conseqüências que merece (mesmo sabendo que irão culpar a cidade, dizendo que o Rio realmente não tem demanda suficiente para shows internacionais, sem nunca cogitar que, talvez, só talvez, o preço tenha sido alto demais para a nossa realidade, até mesmo comparativamente). Mas quando olho para o par de ingressos que dizem "NEW ORDER", em caixa alta, já saltitando sobre a mesa da sala, lembro da reação de meu caro Develly quando admiti ter cedido: "Então a sua postura política é obedecer às mulheres?". E ainda tem gente que acha que eu deveria escrever canções políticas...

segunda-feira, novembro 06, 2006

Retomando...

1 Ainda sobre videoclipes, está em cartaz no Rio o filme "Pequena Miss Sunshine" (Little Miss Sunshine, 2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris - prova cabal de que o videoclipe é uma linguagem particular, com seus próprios códigos e especificidades. A dupla Dayton e Faris faz sua estréia em longa metragem já com um currículo de respeito de clipes ("Californication", do RHCP, "Say it ain’t so", do Weezer, além de obras-primas ao lado do Smashing Pumpkins, como "Tonight, tonight" e, especialmente, "1979"), e, se essa estréia não chega a ser desastrosa, não traz para o cinema o brilho que eles não raro alcançavam nos vídeos musicais. Apesar do excelente elenco e de um começo visualmente interessante, o filme se torna esquemático justamente no narrar. O talento que a dupla tem em realizar obras de poucos minutos se mostra insuficiente nos 101 do longa, talvez por terem confiado em uma "estilização" que é suficiente para um clipe, mas que acaba por revelar as faltas de um roteiro sem muita criatividade e a inabilidade, por parte dos diretores, para com a linguagem cinematográfica.

2 Em compensação, "Dália negra" (Black Dahlia, 2006), o novo Brian de Palma, é puro cinema. Se nem todos os seus filmes são brilhantes como o que parodio no título desse blog ("O pagamento final", ou, Carlito's way, 1993), "Dália negra" traz De Palma em sua melhor forma, mostrando que ele ainda é um dos realizadores que melhor explora o espaço no cinema (o já antológico plano-sequência na primeira meia-hora de filme é apenas um exemplo mais óbvio de um domínio que se confirma plano a plano). Em semana onde a acidez anti-Hollywood esteve curiosamente presente (além do filme de De Palma, assisti hoje "Um convidado bem trapalhão" – The party, 1968 – de Blake Edwards; e "Beijos e tiros" – Kiss, Kiss, Bang, Bang, 2005 – de Shane Black, coincidentemente, todos críticas à indústria cinematográfica), "Dália negra" firma-se como o melhor filme de um diretor americano que vi nos cinemas em 2006 (lembrando que alguns candidatos em potencial ao meu top10 anual acabaram passando batido na minha programação, falha que pretendo corrigir conforme os filmes forem lançados em DVD).

3 Mais sobre o post dos videoclipes, esqueci de falar mal de uma última coisa: o último clipe do Forgotten Boys - aquele em que quatro garotas substituem os caras da banda em um show - é outra vítima da síndrome da estorinha. Mais uma idéia bacana que vai pelo ralo quando fica com cara de novela ruim.

4 Parada roqueira da semana:
Brian Wilson - Smile
The Lawrence Arms - Oh! Calcutta!
Guided by Voices - Isolation Drills
Elvis Costello - My aim is true
Thin Lizzy - Jailbreak

segunda-feira, outubro 23, 2006




Pato Fu - Toda cura para todo mal


Em um dos raros bons momentos do atabalhoado "Janela da alma" (2001), o mestre Walter Lima Jr. define, em poucas palavras, o que seria a beleza. Para ele, a idéia de beleza estaria atrelada à essência do mundo e dos objetos, e a beleza plena só seria atingida quando uma representação conseguisse chegar à síntese, ao irredutível do representado. Quando todos os adornos fossem retirados, teríamos o mundo em sua mais pura essência, e essa seria a definição de beleza para o artista depoente. Antes mesmo de conhecer Walter e poder conversar com ele sobre essa e outras belezas, lembro de ter essa declaração como um dos meus primeiros nortes de criação. O simples que não é simplório, mas sim que tenta despir o mundo de toda e qualquer maquiagem (uma beleza mais fácil, porém menos consistente) e achar uma beleza original intrínseca ao que é olhado, tornou-se uma referência artística para mim tão confiável quanto rara.

Confesso não ter ficado lá muito impressionado quando ouvi os primeiros discos do Pato Fu. Sem gerar maiores antipatias, a mistureba psicodélica que a banda buscava indiscriminadamente em suas primeiras canções - e que até hoje encontra ressonância em gostos estranhos que dizem ser esse o melhor período da carreira dos mineiros - me afastava. Porém, se a celebrada originalidade inicial do grupo me entediava, às vezes me pegava encantado com avulsas pérolas pop, como o caso da belíssima "Sobre o tempo", presente no segundo disco da banda (Gol de quem?, de 1995). Se, no início, canções do quilate de "Sobre o tempo" eram exceções, a cada disco o Pato Fu parecia se desvencilhar de seu projeto estético inicial para encontrar seu verdadeiro caminho. Embora as brincadeiras musicas da banda às vezes rendessem momentos do melhor humor (como a genial "Capetão 66.6 FM"), como regra sentia que faltava música aos discos do Pato Fu. Sobravam faixas, mas faltavam canções.

Essa sensação se atenuava um pouco mais a cada disco (a partir do excelente Televisão de cachorro, de 1998), e, com o tempo, comecei a perceber no trabalho da banda a busca pela beleza que tanto me impressionara no discurso de Walter Lima Jr. Em momentos memoráveis como "Canção para você viver mais", "Imperfeito" e "Um dia, um ladrão", a banda aos poucos abria mão de seus enfeites (que não deixavam de ser ruído) para buscar o sublime. Seja pela abordagem direta das palavras - que resiste bravamente às tentações das figuras de linguagem - ou pela simplicidade das melodias - que passam longe dos excessos de arranjo dos primeiros registros - o Pato Fu parecia conscientemente buscar a beleza irredutível, como que percebendo o talento bruto que tinha em trabalhar com menos elementos. Ao lançar o impressionante Mtv ao vivo - no museu de arte da Pampulha (2002), que além de boas releituras continha quatro excelentes novas canções, o Pato Fu parecia ter atingido a plena maturidade artística, assumindo conscientemente um novo projeto estético que poderia ser, até mesmo, lido como uma completa divergência de suas primeiras idéias (a troca do "mais" pelo "menos"). Era, portanto, de se esperar que o disco seguinte da banda fosse o melhor de sua trajetória.

Três anos depois é lançado Toda cura para todo mal (2005). A produção do disco já é um primeiro grande acerto: sai o excesso de agudo e esterilidade de Dudu Marote, e entra uma captação mais crua e ambiente feita pela própria banda. Se em palavras isso pode parecer dar indícios de um acabamento menos cuidadoso, minha inaptidão à escrita é quem me trai: sem o verniz "som livresco" de outrora, o Pato Fu consegue em seu sétimo disco de estúdio uma produção de profissionalismo sem paralelo no Brasil, valorizando as características da banda sem nunca pasteurizar sua sonoridade. Se antes a genialidade do baterista Xande Tamietti parecia amuada em estúdio, em TCPTM ela ganha uma espacialidade impressionante, rara no reinado de ProTools e SoundReplacer. Os arranjos, não necessariamente menos trabalhados que na primeira fase da banda, parecem mais focados do que nunca: samples; cravos; cordas; programações; tudo parece funcionar em nome das canções, gerando uma variedade sonora que nunca perde seu foco. Pela primeira vez, ao longo de todo um disco, o Pato Fu funciona somente para suas canções, sem em nenhum momento se deixar seduzir pelos atalhos que embolavam seus primeiros passos.

"Anormal", a faixa de abertura, é uma das mais belas criaturas pop dos últimos anos. Nunca antes a banda havia emprestado, com tamanha perfeição, a doçura inerente às suas baladas a uma canção tão pra cima. A melodia é base para uma bela letra sobre a descoberta do amor e tudo o que vem a reboque. "Uh, Uh, Uh, Lá, Lá, Lá, Ié, Ié", o primeiro single, é a mais interessante releitura feita do Jackson 5 desde o surgimento dos irmãos Hanson. "Sorte e azar" dá as mãos a "Agridoce" (e seu eficiente dedilhado de guitarra) como as baladas mais singelas do álbum - mais uma vez, aqui, rendendo algumas de suas melhores letras. "Amendoin" parece pegar o bonde posto em movimento por "Made in Japan" alguns discos antes, mas os belos arranjos de teclado evidenciam a evolução do Pato Fu na meia década que separa as duas gravações. "Vida diet" é Cardigans como o Cardigans já não é mais há anos, e a simpaticíssima "No aeroporto" vai buscar seus arranjos de cordas no trabalho de Danny Elfman para os filmes do Tim Burton. Até mesmo em seus momentos menos notáveis (como "Tudo" e "O que é isso"), TCPTM sustenta o interesse com uma coesão nunca antes vista no trabalho do Pato Fu. É "Simplicidade", porém, que parece ser a chave para a compreensão de toda a mudança: embora cumpra a função dos respiros de psicodelia que sempre entrecortavam as canções dos discos anteriores, a quinta faixa de TCPTM acaba sendo um dos momentos mais bonitos do disco (e, sem dúvida, um dos momentos mais especiais que já presenciei em qualquer show). O caipira-vocoder que entoa a simpática letra da canção parece ser a síntese da música do Pato Fu: a beleza que precisa ser buscada com esmero e paciência, e que reside justamente no irredutível, na simplicidade, naquilo que tomamos como garantido. O disco fecha com "Boa noite Brasil", que soma Super Furry Animals aos momentos mais delicados do Smoking Popes e rende uma belo final.

TCPTM não é apenas o melhor disco do Pato Fu; é o melhor disco lançado por uma banda de rock no Brasil em muitos, muitos anos. É o trabalho de artistas com um projeto consciente e sólido, que, após terem atingido sua maturidade, têm como único desafio uma lapidação cada vez maior de suas qualidades - sem que isso seja, porém, atalho para fórmulas sem vigor. John, principal compositor da banda, parece cada vez mais tomado por essa busca do belo irredutível, por encontrar a representação que se torna a única possível, pois se iguala à essência do que se propõe a representar. Ao atenuar o experimentalismo (que, em grande parte, era causa das eternas comparações aos Mutantes) e deixar de lado seus cacoetes menos interessantes (como as canções de Rubinho Troll, sempre os piores momentos de sua discografia), o Pato Fu parece não se preocupar com mais nada além de fazer boa música. E parece falar de si mesmo por meio da personagem de "No aeroporto", que confunde seus discos com uma carta de amor.

sexta-feira, outubro 13, 2006

E o VMB vai para... mim!

Confesso que não vi o VMB. Não costumo sequer assistir ao Oscar, portanto não me sinto motivado o suficiente para aturar piadas sem sal contadas por convidados e residentes sob a pressão do figurino (que já não dão nenhum show de carisma em condições ideais), sobre clipes ruins de bandas que normalmente não gosto. Antes de dormir, porém, costumo dedicar minhas últimas piscadas à TV, e acabei acompanhando um trecho da festa pós-festa. Embora o VJ que curte Radiohead pra caralho tenha tentado dar uma animada mantendo os convidados do "Pânico na TV" o tempo todo no vídeo, meu sono chegou rápido. Enquanto buscava o controle remoto perdido sob o travesseiro, o VJ que curte Radiohead pra caralho entrevistava a banda Banzé (ou BNZ!, como eles parecem preferir), que com o clipe de "Doce ilusão" faturara o prêmio de melhor vídeo independente.

Não tenho maiores lembranças da canção vencedora, mas me recordo de, na única vez que vi "Doce ilusão" na MTV, ter passado 90% da duração do vídeo pensando estar diante de um raro caso de um videoclipe brasileiro que refletia uma compreensão maior do formato por parte do diretor (o estreante Paulinho Caruso). Os outros 10%, porém, seriam um exemplo perfeito de como os profissionais brasileiros falham em compreender o que existe de mais essencial no videoclipe enquanto expressão artística/veículo comercial. O clipe de "Doce ilusão" é uma curiosa combinação de síntese e paradoxo, expondo ao mesmo tempo o grande potencial e as maiores armadilhas de um nicho ainda tão subaproveitado da produção audiovisual no Brasil.

Caruso parte do bom princípio de que um clipe se sustenta em uma boa idéia visual. Recorre ao já manjado, mas ainda razoavelmente eficiente, plano-sequência aparente (escondendo dois ou três cortes no céu ou em rampas de edição) para brincar com a realização do próprio vídeo: em vez de a câmera enquadrar a banda, a produção se torna tão sofisticada que é a banda que tem de correr atrás da câmera (para a frente dela, na verdade). Além do bom-humor na metalinguagem (o clipe parece debochar de todos os recursos de que dispõe, construindo a narrativa de forma que ela aproveite tudo que a produção tem à mão - em vez de produzir os recursos para possibilitar a narrativa idealizada), a brincadeira com a construção da mise-én-scène gera situações insólitas (como os amplificadores sendo empurrados por contra-regras, e a bateria, que ora é puxada em um carrinho, ora e desmontada e remontada para acompanhar o movimento da câmera) e uma boa discussão sobre a própria relação banda x diretor na produção de uma obra que deve representar ambos artisticamente (no caso, a banda que precisa "se enquadrar", não só para corresponder a uma idéia do diretor, mas também para entrar no quadro, de fato). Uma idéia original, que rende boas situações visuais (todo o desenvolvimento narrativo parte de contradições geradas por essa única idéia-base) e que instiga o espectador sem descumprir sua função de peça de promoção.

O problema, porém, são os outros 10%: antes de começar a canção, o diretor sente a necessidade de introduzir com um prólogo satírico, explicando que o clipe deveria ser gravado às pressas por conta de um atraso de produção. Esse prólogo - cuja encenação remete ao constrangedor "Só por uma noite", de Johnny Araújo/Charlie Brown Jr.- não só arruína a estranheza em potencial da situação (tudo aquilo que interessava pelo inusitado se torna apenas manifestação do já anunciado), como reflete a patológica necessidade que o videoclipe brasileiro tem de buscar historinhas, de "fazer sentido". Em vez de aproveitar um campo que é pura potência estética, cria-se uma amarra que faz com que os clipes tenham que ser "entendidos" pelo espectador, o que acaba destruindo a fruição. Não acredito que videoclipes não possam ter estórias (o extraordinário "Coffee and tv" do Blur não me deixaria tomar essa posição); o que incomoda é quando as estórias são criadas para justificar opções estéticas originais. O clipe de "Big me" seria legal se antes fossemos avisados de que se trata de uma sátira dos comerciais da Mentos? E "Sabotage"? Não seria a historinha de "Coffee and tv" apenas uma desculpa para que caixinhas de leite circulem por aí? O que nasce primeiro, o sentimento visual ou o roteiro em "1979"?

A necessidade de se fazer entender - justa e necessária em qualquer obra - parece, na maioria dos videoclipes brasileiros, tomar sempre um mesmo caminho. O excesso de didatismo, e muitas vezes uma falta de consciência de mise-én-scène ("Quem já perdeu um sonho aqui", do Hateen; "Memórias", da Pitty; todos os clipes do Charlie Brown Jr.; a maioria dos clipes do CPM-22; etc) condenam o videoclipe brasileiro a um eterno amadorismo, pois pior do que não fazer bem é simplesmente não conhecer o meio pelo qual você busca se expressar. É claro que temos exceções, como o cromatismo quase sempre instigante de Oscar Rodrigues Alves, a originalidade do rapaz do Gram, as referências não raro interessantes de Andrucha Waddington, e um par de bons clipes de bandas como Pato Fu, Bidê ou Balde e Los Hermanos (que para cada "Todo carnaval tem seu fim" comete três "Cara estranho"). Via de regra, porém, estamos entregues a bandas mal enquadradas ("Além de mim", do NX-Zero), idéias que travam as rodas na esperteza ("Você", do Dead Fish), roteiros de novela indie ("Um minuto para o fim do mundo", do CPM-22), clichês de representação ("A minha alma", do Rappa) ou referências mal compreendidas (como "Consumado", de Arnaldo Antunes, que desperdiça uma boa idéia visual ao tentar emular o universo felliniano sem entender a estética do Fellini). Os clipes do "Fantástico" não são tão passado assim.

segunda-feira, setembro 25, 2006

O PC quebrou

1 E dessa vez é verdade: levei meu computador para uma recauchutada e, assim que ele voltou do banho de loja, a pobre placa mãe ficou com inveja dos novos colegas e queimou-se de raiva. Nessa brincadeira tive que trocar também o gabinete, obsoleto demais para a vaidade da nova mamãe. A parte boa é que o blog está de volta, e que agora meu computador não só me acompanha na internet e no tlac-tlac do Word, como também faz o jantar e me leva para passear na praia.

2 Novas musas cantantes:
"Put your Record on" - Simpaticíssima canção de Corinne Bailey Rae , inglesa novata na soul music e, até então, minha total desconhecida. O clipe passa com certa freqüência na MTV, e a melodia é tão agradável que você nem se incomoda de ela grudar na cabeça pelo resto do dia.
"Who knew" - Depois da Pink já ter provado seu tino marqueteiro com "Stupid girl" – que, embora aquém de seu talento musical, cumpria impecavelmente a função de chamar novamente atenção para sua carreira – ela retorna com esse estrondo chamado "Who knew". Se alguém ainda tinha dúvida do talento da cantora (nem que seja na escolha de suas parcerias, que incluiu Tim Armstrong, do Rancid, no disco Try this!), tava dando bobeira há tanto tempo que não merece ter uma frase endereçada para si, portanto, deixo-a incompleta. "Who knew" é, sem dúvida, uma das melhores canções de 2006 e forma, ao lado de "Don’t let me get me" e "Just like a pill", a trilogia inabalável de uma das artistas mais interessantes da última década.

Resoluções de computador novo sendo cumpridas: SoulSeek baixando os últimos três discos da Pink e toda a discografia da Norah Jones.

3 Ainda sobre música, o disco mais legal da semana é Rebels, Rogues & Sworn Brothers, do talentosíssimo quarteto de Memphis Lucero . Já tendo lançado algumas pérolas do alt-country lo-fi (como o belo Tennessee), a banda retorna com um disco que incorpora à sua música todo o espírito de Born to run. RR&SB mistura Bruce Springsteen, Paul Westerberg e Uncle Tupelo, ancorado pela carismática voz de Ben Nichols (cujo timbre se aconchega entre Scott Weiland e Mike Ness) em 12 ótimas canções.

4 Ainda no "ainda sobre música", nossos queridos Carbonas lançam disco novo pela bacana revista Outra Coisa (famoso projeto do Lobão que já botou na rua alguns discos interessantes), nas bancas dia 14 de Outubro. Em um mundo perfeito a banda leria meu pensamento e subiria no altar da genialidade dando ao disco o título Mesma Coisa.

5 Respondendo ao comentário do cineasta M. Night Shyamaldluwa: sim, já vi "A dama na água". Adianto que gostei, mas peço um prazo maior para meus comentários, já que metade do filme ainda está curtindo com a minha cabeça, e a outra metade ainda nem chegou pra festa. Verei o filme novamente nos próximos dias, e prometo tecer, aqui, alguns fios de ego a respeito.

Nas últimas semanas pré-Festival do Rio (que ainda não engrenei, mas engreno já) tive a chance de ver duas belas obras em cartaz: "Miami Vice" (2006) , de Michael Mann, e "O sabor da melancia" (Tian bian yi duo yun, 2005) de Tsai Ming-liang. Mann radicaliza a pesquisa formal iniciada no excelente "Colateral" (Collateral, 2004) e faz de "Miami Vice" um laboratório sobre as potencias do vídeo como novo território narrativo (com destaque para a fotografia de Dion Beebe, mais uma vez buscando aliar ao vídeo o uso extensivo da luz natural), além de um belo exercício de construção de gênero. Tsai Ming-Liang, por sua vez, mistura diversos gêneros com um controle impressionante (embora esteja sendo vendido como comédia, o filme é tão comédia quanto é qualquer outro gênero), sem por isso perder o incômodo que é tão particular ao seu cinema. "O sabor da melancia" resgata o simbolismo para falar de amor, desejo, sexo, paixão, e a bagunça que isso faz nas cabeças das pessoas. Um filme extremamente instigante, com uma das mais belas coleções de enquadramentos vistas por aqui esse ano.

6 Volto, portanto, a postar regularmente essa semana. Retorne para mais amolações, carisma e precipitações egotistas.

sábado, agosto 12, 2006

Passados os segundos de auto-questionamento, o retorno à privada de regras

1 Dia desses estava assistindo ao programa "Claro que é rock", no Multishow. Enquanto culpava os VMBs por terem, um dia, levantado a hipótese de que jam sessions poderiam ser uma boa idéia, o apresentador Roberto Frejat projetava constrangimento com uma amadoríssima versão para "Rock the Casbah". Assistindo ao "Claro que é rock" não consegui domar o pensamento de que o rock brasileiro peca por falta de profissionalismo e competência.

Mudei para o canal 52, e no People & Arts passava "Rockstar Supernova" - divertido reality show onde Tommy Lee Jones, Gilby Clarke e Jason Newsted procuram o vocalista para a nova banda que o ex-baixista do Metallica, atual Voivod, já fez questão de, publicamente, colocar entre aspas. Enquanto os candidatos exageravam nas caras de roqueiro louco e no visual previsível, era inevitável pensar no programa como um "American Idol" com guitarras, e ter que admitir que o grande problema do rock americano atual é o excesso de profissionalismo e competência. Ainda assim, preferi continuar vendo "Rockstar Supernova" do que retornar ao "Claro que é rock".

2 Não consigo me decidir se a pessoa debaixo da fantasia de Cauê, o solzinho mascote do Pan Americano, tem o pior trabalho do mundo ou, na verdade, goza, todos os dias, do privilégio de poder se imaginar no palco junto com o Flaming Lips.

3 Não tenho ouvido discos novos. Ainda não terminei de ler "Retrato do artista quando jovem" para poder adicionar o romance de James Joyce à lista dos melhores que já li. Não tenho ido ao cinema com a frequência dos dias de glória. Ainda assim, sinto-me obrigado a confrontar os detratores e defender uma das últimas sessões que frequentei: o novo "Super Homem" (Superman Returns, 2006) é excelente! Bryan Singer mostra, mais uma vez, que domina melhor o universo cinematográfico dos super-heróis do que a maioria de seus pares - sejam os fazedores de filme de capacidade questionável (Brett Ratner e Christopher Nolan) ou mesmo os artistas talentosíssimos que tiveram trajetórias irregulares pelo gênero (Sam Raimi e Robert Rodriguez). Singer comprova as boas impressões marcadas em filmes anteriores (em especial os dois primeiros "X Men", "O aprendiz" e "Os suspeitos") e, se não constrói uma obra-prima, faz um filme de pleno domínio cinematográfico, que pensa o cinema de forma explícita (a bela sequência de Lex Luthor destruindo a cidade feita em maquete, e as referências constantes a outros blockbusters - "Titanic", "Parque dos dinossauros" - não me deixam mentir) e segura as rédeas da ação com toques do mais genuíno melodrama. Além disso faz das cenas de vôo - em um céu silencioso e poético - uma das mais belas declarações cinematográficas do ano.

4 Domingo o Queerstoca no Rio. Embora eu já possa descrever exatamente como será o show - mesmo só tendo visto o Queers uma vez - tenho certeza que vou me divertir. Joe King já cometeu seus deslizes, mas é também autor de algumas das melhores canções das últimas décadas ("Debra Jean" ao vivo faz pensar sobre a beleza da ingenuidade). Prometo passar todo o show do Marky Ramone (que trocará as canções do simpático Answer to your problems - que no Brasil saiu com o título cretino de Don't blame me - por reciclagem de clássicos do Ramones junto com o Tequila Baby) no bar, porque quem apóia safadeza, safado é.

segunda-feira, julho 24, 2006

De Chihiro a Sen

Existem pouquíssimas interseções possíveis entre a banda de hardcore californiana Strung Out e o autor britânico Nick Hornby. Ambos, porém, passaram pelos meus últimos dias de forma parecida, tornando os paralelos mais urgentes do que relevantes. Enquanto revisitava a discografia do Strung Out como aclimatação para o show da banda (que verei em São Paulo no próximo sábado) nas últimas semanas, coincidentemente me dedicava às páginas de "Uma longa queda" (Long Way Down, 2006) , última obra do badalado romancista autor de megahits como "Alta fidelidade" (High Fidelity, 1995) e "Um grande garoto" (About a boy, 1998). Curioso é que as páginas recém impressas do livro de Hornby tenham um sabor tão semelhante ao das canções de Exile in Oblivion (2004), último disco do Strung Out.

Assim como Hornby lançou trabalhos que tiveram uma importância enorme na minha adolescência (em especial os mencionados "Alta fidelidade" e "Um grande garoto", com menção honrosa para o mais recente "31 canções" - 31 songs, 2003 - embora não um romance, leitura das mais agradáveis), o Strung Out foi uma das bandas que mais me impressionou na segunda metade dos anos 90, com discos excepcionais como Suburban Teenage Wasteland Blues (1996) e o supremo Twisted by Design (1998). Tanto Hornby quanto o Strung Out partiram de lançamentos mornos, mas com momentos de promissor talento (com, respectivamente, "Febre de bola" - Fever Pitch, 1992 - e Another Day in Paradise, de 1994), para segundas obras de grande impacto geracional ("Alta Fidelidade" e Suburban), e terceiras marcadas pelos melhores traços da maturidade artística ("Um grande garoto" e Twisted). Ambos erraram a mão no quarto lançamento (os fracos "Como ser legal" - How to be good, 2002 - e An American Paradox, do mesmo ano) e me inclinaram a uma inevitável dúvida: estariam eles realmente em fases pouco inspiradas ou seria eu quem mudara, condenando-os às amarras de uma época passada que hoje não faria sentido senão como nostalgia?

A resposta deveria vir com "Uma longa queda" e Exile in Oblivion, e a fruição sincronizada das duas obras me conduziu a um sonoro "não sei!". São, ambos, trabalhos melhores do que seus predecessores, mas falham em reproduzir o brilho que costumavam refletir em meus olhos adolescentes. "Uma longa queda" parte de uma premissa bastante interessante: quatro pessoas completamente diferentes se conhecem no topo de um prédio durante a passagem de ano, e todas haviam subido até lá com a intenção de cometer suicídio. A estória é narrada pelas quatro personagens, como entrevistas individuais editadas por cronologia, adicionando ao livro uma intenção de multiplicidade de pontos-de-vista. Exile in Oblivion foi anunciado pelo Strung Out como o disco mais pesado de sua carreira. Após o fracasso em fazer as pazes com a melodia em An American Paradox, a banda teria deixado seu sempre presente lado metaleiro prevalecer ao tatear novos destinos, já que a sonoridade do passado há muito perdera o vigor. Reforçando a intenção, convidaram Matt Hyde para trabalhar no disco, produtor famoso por parcerias com Slayer e Hatebreed. Surpreendentemente, porém, o livro de Hornby e o disco do Strung Out encontram nas ambições de seus projetos justamente as raízes de seus maiores problemas.

Muito por conta de sua formação jornalística, é inegável o talento de Hornby para transitar entre as sutilezas do discurso falado. Se a crença de que a literatura deve se aproximar da fala coloquial anda em alta, não é à toa que o autor inglês seja acolhido por parte da crítica ainda que seus livros alcancem inegável popularidade. A ambição da alternância dos narradores, porém, exacerba essa qualidade como motor principal, e por vezes gera a frustrante impressão de que a motivação de Hornby em seu novo livro não passa da construção mais rasa dos personagens por meio da fala. Ao escolher protagonistas de formação completamente diferentes (um apresentador de televisão, uma senhora reclusa de meia idade, uma moderninha desbocada e um roqueiro frustrado norte-americano), Hornby cria para si mesmo um laboratório de linguagem, e acaba tornando-se o rato dentro de sua própria gaiola.

Exile in Oblivion não nega, a princípio, sua proposta inicial: sua primeira metade traz de fato o material mais pesado já gravado pela banda, com os méritos e problemas que isso traz a reboque. A banda mostra-se mais vigorosa explorando o novo gênero do que mimetizando seus dias de glória. Porém, o uso descomedido do bumbo duplo, o timbre incômodo das guitarras e a falta de refrões fortes fazem que o disco passe longe de ser memorável. Assim como Hornby explora o discurso de seus personagens mas acaba negligenciando a estória que quer contar, o Strung Out se esbalda com os clichês de um gênero ainda pouco explorado pela banda, mas nesse meio tempo parece esquecer de escrever canções de verdade.

Seriam de fato trabalhos menos impressionantes de artistas que já não estão mais no auge, ou teria eu cumprido a sina de me tornar o alvo de meus ódios do passado? Encurralado pela dúvida, acalmo-me com uma solitária canção do último disco do Strung Out, e um trecho específico do livro de Hornby. Quando ambos deixam de lado seus novos pressupostos estéticos, me conquistam com a bela "Swan Dive" (curiosamente a canção de Exile in Oblivion que mais se assemelha ao passado da banda) e com a passagem onde a mãe de um adolescente em estado vegetativo assume ter comprado para seu filho coisas que os rapazes de sua idade gostam, e que ele provavelmente gostaria se não vivesse alheio ao mundo desde o nascimento. "Uma longa queda" e Exile in Oblivion melhoram exponencialmente em suas segundas metades, justamente quando Nick Hornby e Strung Out parecem menos afetados pelas expectativas externas e mais à vontade para fazer aquilo que sempre fizeram bem.

A dúvida, porém, continua. Não consigo afirmar com certeza se Suburban Teenage Wasteland Blues ou "Alta Fidelidade" teriam hoje em mim o mesmo impacto que tiveram há 10 anos. Nenhuma obra é desvinculada de seu tempo, e eu, obra do acaso, não sou diferente. Quando a feiticeira Yubaba, no magistral "A viagem de Chihiro" (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) obriga a pequena Chihiro a crescer (com um emprego, novas responsabilidades, e uma tendência a esquecer seu passado), muda seu nome para Sen. O observador atento percebe, porém, que o ideograma que representa Sen já estava contido entre os ideogramas que escreviam Chihiro. Sen, a pessoa adulta, seria portanto apenas parte (mas não todo) de Chihiro, a criança, potência aos poucos minadas pelas escolhas da vida. Confesso que, hoje, quando penso sobre uma das minhas seqüências favoritas do filme de Hayao Miyazaki, me pergunto se o processo não seria exatamente o contrário. Se o que fui quando jovem ainda seria parte de mim, mas que essa parte nunca teria sido todo. Se os discos do Strung Out ou os livros de Nick Hornby na verdade nunca foram grandes obras, mas apenas estavam presentes no momento mais oportuno. Mas também me pergunto se toda essa reflexão não seria a minha parte Sen devorando impiedosamente minha porção Chihiro, iludindo-me de que o processo de me tornar o que costumava odiar não é nada além de uma equivocada visão daquilo que os adultos chamam de "crescer".

sexta-feira, julho 14, 2006

A melhor música que já inventaram até hoje

Train in Vain - The Clash

Porque esse tipo de certeza só vem depois de você ouvir uma versão r&b, quase gospel, no rádio e a canção ainda soar absolutamente magnífica.

quinta-feira, julho 13, 2006

Eu, edifício

Assim como o Rubinho relatou uma vez em seu blog ter uma amiga que criou o gênero dos "filmes de tortinho" (aqueles filmes onde uma estrela interpreta um personagem com deficiência física ou mental - se for as duas, melhor ainda - e ganha montanhas de prêmios por conta disso), tenho uma amiga que também inventou seu gênero cinematográfico: os filmes edificantes. Seriam, esses, filmes como "A sociedade dos poetas mortos", de Peter Weir (Dead poets society, 1989) ou os momentos mais canastrões de Cameron Crowe, como "Jerry Maguire" (Jerry Maguire, 1996) e o recente "Tudo acontece em Elizabethtown" (Elizabethtown, 2005). São filmes onde personagens e espectadores são ensinados uma lição de vida, e saímos do cinema revigorados, dando valor a pequenas coisas que a corrida cotidiana do mundo contemporâneo nos havia feito esquecer. Filmes edificantes, portanto.

A despeito da qualidade sempre variante de tais filmes, o maior incômodo surge da intenção de seus autores em reservarem, já, suas cadeiras ao lado de Nosso Senhor. Esses artistas - iluminados por sabedoria que nós, reles espectadores, jamais teríamos - usam seus filmes como veículos educativos e, com imagens visualmente sedutoras, personagens carismáticos e falas bem escritas demais para parecerem reais, passam sua "mensagem" com superioridade panteônica.

Pior do que o monstro, porém, só o monstro que se reproduz. Em pouco tempo, outro mercado já deveras antipático encontrou fertilidade inabalável nas intenções edificantes: a publicidade. Sim, a antipatia pela publicidade é uma de minhas indignações de estimação. Reconheço que meios não são culpados por seu uso, e sou o primeiro a admitir quando vejo uma campanha publicitária interessante, mas, via de regra, a publicidade é um veículo que sofre na mão de profissionais que se acham mais inteligentes e brilhantes do que realmente são. Basta lembrar que o maior expoente da categoria no Brasil teve a petulância de criar uma campanha de auto-promoção nos cinemas, onde com uma tela branca ele tentava, com onisciente narração em off de canastrice inaceitável, nos convencer a comprar a paz (o que significa, imagino, que a paz era propriedade dele). Desde então, passei a reparar na crescente difusão da publicidade edificante. Seja com o plano de saúde que se assume o segundo melhor (pois o melhor plano de saúde seria viver; com imagens sépias, crianças, cães e narração em off, claro) até o sofrível "Estatuto da sua nova vida", de Thiago de Mello, apropriado por uma empresa de automóveis, a publicidade agora quer nos tornar pessoas melhores.

O grande problema dessa intenção de mudar a vida dos outros é que ela parte do pressuposto, em si complicado, de que existe algo de errado com a vida dos outros, e que você tem a capacidade de perceber e solucionar esse problema por elas. O pior de ver isso associado à publicidade é que, se no cinema ainda existe um mínimo conforto de que um filme que muda a vida das pessoas vende a si mesmo, a publicidade não se encerra em si mesma, e edifica em nome de uma terceira coisa. Curiosamente, esse produto é normalmente tanto solução quanto causa do problema. E é nessa encruzilhada que me pego engalfinhado com a campanha criada pela agência Fallon para o Citibank, possivelmente a mais ultrajante de todas as publicidades edificantes.

A tal campanha do Citibank é um sossega-yuppie dos mais baixos, tentando apelar, com razão, justamente aos clientes do Citibank. Nenhuma oferta de produto associada (só sabemos o que a publicidade vende por conta de um discreto logo da empresa), e sim peças clean com dizeres (reduzindo-se, portanto, somente à "mensagem") asquerosos como: "crie filhos em vez de herdeiros"; "dinheiro só chama dinheiro, não chama para um cineminha"; "trabalhe, trabalhe, trabalhe. Mas não se esqueça: vírgulas significam pausas"; e os meus favoritos, "não é justo fazer declarações anuais ao Fisco e nenhuma para quem você ama" e (Deus do céu!) "o valor da bolsa subindo não é mais emocionante do que um dente-de-leite caindo". Fico especialmente tocado com o juízo de valor indicado pelo "não é justo", na penúltima peça, que indica que a publicidade agora quer, também, ser parâmetro de justeza. Além de vender produtos, as agências querem fazer julgamentos abertos sobre seus consumidores (até então esses julgamentos não costumavam sair dos relatórios das empresas). Os publicitários sabem quais são os problemas de nossas vidas, e com um mesmo anúncio são capazes de soluciona-lo (consigo visualizar plenamente um executivo com coração de pedra tendo sua alma tocada por um desses anúncios) e prolonga-lo (afinal, a solução está em um banco, justamente um dos ícones mais clássicos da mentalidade que eles apontam como causa do problema).

Pior do que o edificante, porém, é o edificante barato. Se antes a crença era de que precisávamos de Tom Cruise ou Robin Williams como catalizadores de uma mudança, hoje basta meia-dúzia de palavras em um ponto de ônibus. A crise do sujeito se tornou descartável. A vaidade yuppie atingiu níveis tão altos que se pode, anonimamente, ter a petulância de oferecer soluções rápidas para a vida dos outros (um "outro" que é genérico, impessoal, e que existe por ser o oposto do emissor da mensagem). Se somos tocados por uma propaganda (e esse blog de publicidade que encontrei enquanto pesquisava é indicador de que a campanha é bem sucedida) que diz "crie filhos em vez de herdeiros", estamos admitindo que, até alguns minutos atrás, todos pensávamos em criar herdeiros, não filhos. Precisamos, todos, ser edificados. Desde que não imaginemos o criador da edificação trabalhando até tarde, sem vírgulas, deixando de ir ao "cineminha" (em um nojento diminutivo) para criar uma peça publicitária que faça dele um yuppie bem sucedido.

sábado, julho 01, 2006

Copa Cola

1- Esse tempo todo evitei falar da Copa por aqui, mas agora que já é inofensivo contribuo com minhas moedinhas. Não vou dizer que Parreira é caído, que o Ronaldo tava gordo, que ninguém jogou nada contra a França, pois, afinal, não sou imprensa. Mas só cumprimento Deus pelo senso de humor em colocar o gol francês justamente nos pés daquele que, durante a semana, havia dito que o Brasil só era favorito porque enquanto ele estava na escola os jogadores brasileiros já estavam jogando bola. Só faltou um corte seco pra Deus com cara de Didi Mocó, e na trilha-sonora o Pelé cantando "A, B, C... A, B, C..."


2- Meu Reverendo favorito postou em seu RTU uma excelente análise do clipe "Wake Up", da Hilary Duff, dirigido por Marc Webb. Sobre "Wake Up" nada tenho a dizer que Rev.Albuquerque já não tenha dito melhor, mas sinto-me obrigado a tecer randomicidades sobre seu favorito "Helena", do My Chemical Romance (dirigido pelo mesmo Marc Webb). Minhas reservas ao clipe têm pouco a ver com a minha completa ausência de afeição pela bandica, mas sim por achar que é um exemplo perfeito onde a má direção é a ruína de uma grande idéia.

Sem dúvida, Marc Webb marca pontos ao retomar as origens do sucesso do videoclipe (obviamente "Thriller", de Michael Jackson), adaptando-a à proposta estética do cliente (mesmo essa proposta sendo tão inaceitável quanto a do My Chemical Romance). O grande deslize de Webb, porém, é não perceber os recursos narrativos solicitados pelo gênero. Por que filmar coreografias de grupo em planos fechados? Por que mutilar em planos curtos um objeto que pede um maior tempo de observação? Como compreender a coreografia de conjunto se o conjunto em si é raramente mostrado? Por que usar um elemento de visualidade tão grande quanto os guarda-chuvas e não fazer planos gerais (e de cima para baixo) suficientes para que o efeito se dê?

Por "Helena", fica a sensação de que Marc Webb pode ser mais um diretor de clipes que ferve com idéias originais, mas tropeça ao não conhecer as propriedades narrativas do audiovisual. O My Chemical Romance devia ter chamado o carnavalesco que era da Unidos da Tijuca pra dirigir o clipe.


3- Não tenho ouvido muitos discos recentes, ou mesmo prestado atenção às dúzias de bandas de pop punk genérico que surgem todos os dias. Recentemente, porém, me percebi escutando Commit this to memory, segundo disco do Motion City Soundtrack, com a freqüência dos mais freqüentes.

Admito que não há nada nas composições que provoquem raios de originalidade. Admito também que a produção do rapazote do Blink e o excesso de auto-tune deixa o som da banda mais pasteurizado do que devia (especialmente se lembrarmos que a produção de I am the movie, o primeiro da banda, era muito mais interessante). Admito terceiro que o disco tem momentos bem fracos, e fica especialmente constrangedor no final. Apesar disso tudo, Commit this to memory busca o sol sem constrangimento, e traz na garupa algumas das canções mais legais lançadas por uma banda do gênero em anos. O Motion City Soundtrack é uma das poucas bandas dessas últimas levas que faz o tipo de musica perfeito para ser popular, sem que isso seja um ponto negativo. Desde que você se mantenha longe das fotos promocionais para não acabar com a boa impressão, claro.

domingo, junho 25, 2006



Ruth Ruth - Laughing Gallery

Quando o Green Day fez o punk novamente popular na metade da década de 90, milhões de bandas com uma sonoridade razoavelmente próxima assinaram contrato com gravadoras grandes. Algumas delas, como Goldfinger e Eve 6, fizeram razoável sucesso. Outras, como Jawbreaker e Samiam, tiveram em seu período major apenas mais uma fase indistinta dentro de carreiras independentes sólidas. Mas para cada Green Day, dúzias de bandas tinham breve chance no mainstream, para terminar de desaparecer depois de um ou dois discos invisíveis. A maioria delas realmente não merecia atenção. O Ruth Ruth, porém, é o outro lado de várias moedas, e nos faz pensar em todas as bandas legais que deixamos de conhecer nesse vai-e-vem da indústria do disco. O trio nova iorquino, formado por Chris Kennedy (bx/v), Mike Lustig (g) e Christian Nakata (bat.), lança seu primeiro cd pela major American Recordings (Laughing Gallery, 1995), passa por um período independente que rende o belo ep The Little Death (lançado em 1996 por uma parceria da Deep Elm com a Epitaph, o que rendeu edição nacional a ser garimpada a preço de nada nos saldões da vida) e depois se torna um quarteto ao assinar com outra major, dessa vez a RCA, para lançar o estranho (mas não menos interessante) Are you my friend?, em 1998.

Até poucos minutos atrás, era essa a biografia que conhecia de uma das bandas mais subestimadas desse período. Fazendo o dever de casa, descobri que o Ruth Ruth segue na ativa e lançou um quarto disco - independente, gravado de forma caseira - em 2004. Fiz uma busca no SoulSeek, e entre Ruth Brown e Babe Ruth não encontrei uma música sequer do trio de NY, nem mesmo de seus discos mais antigos. O site da banda não é atualizado desde 2005, sua página no MySpace tem menos acessos do que a do Invisibles, e o All Music não traz sequer a capa de Right about now, o tal disco de 2004. Depois de várias tentativas, independentes ou industriais, em 10 anos de carreira, o Ruth Ruth permanece como se não tivesse existido. E Laughing Gallery, o disco mais completo da banda, segue como obra não ouvida.

Talvez parte (pequena, se tanto) do fracasso comercial de Laughing Gallery venha de um erro crasso cometido pela banda: o disco abre com sua pior canção. "Uninvited" não só é ruim como foi single, tendo seu clipe até mesmo exibido na MTV brasileira. O problema da má escolha da primeira faixa (maximizado para o primeiro single) é tanto de ordem estética quanto prática: além de ela não situar o ouvinte corretamente na fruição do disco, é fracasso certo nas compras que partem de audições em loja. "Uninvited" é uma má canção. Mas Laughing Gallery ainda é um belo disco de outras 11 canções. "Uptight", a segunda, mostra uma banda de uma originalidade sutil que se desenha com total solidez no restante do disco. Embora a canção tenha uma estrutura típica pro contexto (batida acelerada, power chords ramônicos e um verso todo estruturado em torno de um solitário mi maior), o refrão salta da caixa de presente com uma dinâmica impressionante. É aí que descobrimos o que faz do Ruth Ruth uma banda especial: por traz da simplicidade dos arranjos e da ironia debochada das letras, está uma banda com pretensões de arena. Ao mesmo tempo que se veste como Billy Joe Armstrong, esconde por baixo uma camiseta do Meat Loaf. É desse encontro de opostos à época antagônicos (lembrando que o fenômeno Green Day dos dias de hoje era impensável então, mesmo no auge do Dookie), dessa improvável colisão entre o teatral e o imundo, de canções que lembram tanto Queen quanto Ramones, que o Ruth Ruth ergue a cabeça acima do oceano.

O vocalista/baixista/compositor Chris Kennedy é, sem dúvida, o merecedor dos louros. Embora a guitarra nunca plenamente distorcida de Lustig e a pegada de Nakata (que está mais para Peter Cris do que para Marky Ramone) confiram personalidade à mistura, é a voz rouca e a entonação dramática de Kennedy que se tornam plenamente reconhecíveis no som da banda. Se em Laughing Gallery ainda não temos os experimentos com sonoridades e texturas que marcariam Are you my friend?, a forma como o vocalista incorpora e dramatiza os personagens de suas estórias já aparece pronta nesse primeiro registro (e atingiria níveis ainda mais impressionantes em The little death).

"All readydown", a terceira faixa do cd, reverencia Kiss com um belo riff de abertura e tem um dos melhores refrões. "Neurotica" e "Bald Marie" (que satiriza os amores incompreendidos cantados pelos mais rebeldes heróis adolescentes, sem que a ironia impeça a criação da bela passagem "I don’t want your reputation, I want you") poderiam vir do mesmo lugar das melhores de Insomniac, não fossem as mudanças de tons e a dinâmica crescente tão particular do Ruth Ruth. "Amnesia" é outro rockão clássico, com o refrão ("What can I do? I forget why I need you") cuidadosamente estruturado para gerar crises de bronquite no estádio de Wembley. Enquanto excelentes canções como "Pervert", "I killed Meg the prom queen" e "I grew up" reservam bons momentos de puro pop punk, a pérola pop "Mission Idiot" bagunça o 4x4 com complexidade de melodia das mais fáceis. E se olhar para trás é o que difere o Ruth Ruth das várias bandas que homogeneizavam o estilo, com um mínimo desvio ocular eles buscam em "Don’t shut me out" (possivelmente a melhor de todo o cd) a clássica levada Clash/Pretenders/Cure que bandas como Strokes e Libertines revitalizariam anos depois em canções como "Someday" e "Death on the stairs", respectivamente.

Curioso é perceber como, hoje, Laughing Gallery e toda a discografia do Ruth Ruth permanece íntegra. Enquanto o Green Day parece cada vez mais distante do Dookie, e mesmo Dear You (obra-prima lançada pelo Jawbreaker em 1995, sob contrato com a Geffen) já parece sofrer os efeitos do tempo, as canções do Ruth Ruth continuam frescas e originais apesar de todas as fases que o rock passou nesses últimos 10 anos. Talvez porque reinterpretar o passado sob os signos do presente garanta uma longevidade só alcançada pelas sínteses. Talvez porque o tempo seja um pouco mais generoso com aqueles que o mundo parece nunca ter visto.

segunda-feira, junho 12, 2006

Don’t think twice, it’s alright

Há não muito tempo atrás, era lugar comum que bandas de punk rock gravassem versões "atualizadas" de hits do passado. Não me eximo de culpa, afinal o Invisibles gravou "Always on my mind" (canção imortalizada na voz do rei, que não é o Robertão) em 1999. Ainda assim, as tais covers ficaram marcadas em minha memória como um dos piores vícios daquele período. Embora tenha conhecido várias canções legais por conta dos discos do Me First and the Gimme Gimmes (projeto que reúne integrantes de várias bandas do estilo para gravar covers), raramente as tais versões traziam contribuição relevante às originais, e os discos não sobreviviam como mais que itens de curiosidade.

Como sou roqueiro de passado musical dos mais curtos, conheci "Don’t think twice" (sem o "it’s alright" do título original) na voz de Mike Ness, líder do Social Distortion, que gravou uma versão para a canção de Bob Dylan em seu disco solo de estréia, o ótimo Cheating at solitaire (1999). Seja no Social D ou em carreira solo, Mike Ness assinou diversas covers ao longo de sua carreira (chegando a seu segundo disco solo, Under the influences (1999), todo composto de releituras), e a canção de Bob Dylan talvez tenha sido, entre todas elas, a escolha mais inusitada. Recentemente decidi tomar providências em relação às minhas mais graves falhas curriculares, e entre as medidas tomadas estava o desejo de explorar melhor a obra de Bob Dylan. Foi em um desses passos que topei, finalmente, com a versão original da canção, lançada em The freewheelin’ Bob Dylan (1963), segundo disco do homem.

Entre pencas de momentos brilhantes de Dylan a desvendar, me peguei apaixonado justamente por "Don’t think twice, it’s alright", a sétima faixa do disco. Parte do fascínio vinha da impressão de - embora já tivesse ouvido a versão de Ness inúmeras vezes - estar conhecendo a canção com ouvidos inaugurais. Apesar de a melodia central ser a mesma, as duas versões (e já vi dados de que existem várias outras, incluindo uma gravada por Johnny Cash - que, aliás, também já foi reinterpretado pelo Social Distortion, com cover de "Ring of Fire") parecem vir de direções absolutamente opostas, gerando canções e sentimentos inteiramente diferentes.

As distorções, porém, não são meramente estilísticas. É óbvio que a roupagem country two-step de Mike Ness pouco tem a ver com o dedilhado singelo marcado à gaita por Bob Dylan, mas até aí estamos no terreno das releituras. O que torna a comparação das duas versões tão intrigante é a colisão de duas personas tão marcadamente opostas quanto Dylan e Ness; a sofisticação dos acordes diminutos substituída pela brutalidade dos maiores.

Mike Ness é certamente um dos mais expressivos intérpretes do rock. Poucas vezes uma voz conseguiu incorporar valores de forma tão vívida: cada rasgada de garganta vem embebida de sua imagem de marginal sentimental seduzido por um universo de drogas, pin ups, jogos de azar e toda uma iconografia vintage. A cada nova canção ouvimos Mike Ness rosnar sobre sua vida desgraçada e sua romântica intenção de se reerguer (que, caso consumada, provavelmente arruinaria com sua carreira). Até mesmo seus momentos de maior espiritualidade são pontuados por ressentimento, e é exatamente nesse ponto que sua versão para "Don’t think twice" se torna uma outra canção.

Enquanto a original é uma doce carta de despedida, a versão de Mike Ness bate o telefone (ou a porta) após o desabafo. A diferença está além da entonação: fora o "it’s alright" que lima do título, Mike Ness muda um sujeito essencial, e enquanto Bob Dylan lamenta com "you could have done better, but I don’t mind" (algo como "você poderia ter se saído melhor, mas tudo bem"), Mike Ness esnoba com "I could have done better, but I don’t mind" (mais próximo de "eu poderia ter arranjado alguém melhor, mas tudo bem"). Se Dylan pede para ser convencido em "still I wish there was somethin' you would do or say to try and make me change my mind and stay", Ness reafirma seu território adicionando um "I wish there was something you could do or say to make me want to change my mind and stay".

Se a canção de Bob Dylan era a triste constatação de que as coisas não saíram como o planejado, Mike Ness se envaidece de sua auto-comiseração loser que até tem seu charme (e chega a ser extremamente sedutora em certos momentos da vida), mas não resiste como mais que icônica. Embora seu arranjo seja interessante, Ness faz a canção servir à sua personagem, enquanto Dylan faz com que a canção sirva somente a si própria, apesar da vida. E com isso se torna eterna. Porque talvez não exista ouvido que se preocupe com rosnados se, ao seu lado, soa o canto de um homem feito que, resignado, lamenta os rumos que seus sonhos decidiram tomar.

quarta-feira, junho 07, 2006

I see you, you see the grizzly man

1 Quando vi pela primeira vez o simpático clipe de "Forever Lost", a inegável fofura (musical e visual) do Magic Numbers não me convenceu a buscar outras canções da banda. Alguns meses se passaram até que eu topasse novamente com eles, em mais uma de minhas caminhadas televisivas. Dessa vez, porém, a banda cantava ao vivo, no programa Top of the Pops, uma singela canção chamada "I see you, you see me". Guardei no topo da memória a vontade de conhecer melhor o trabalho da banda, e poucos dias depois o disco de estréia do Magic Numbers já me acompanhava em meu carro.

The Magic Numbers, o disco, passa longe de ser obra-prima. Embora os irmãos Stodart e Gannon (a banda é composta por dois casais de irmãos, todos rechonchudos, tornando a comparação com The Mamas & The Papas ainda mais óbvia) crivem músicas de inegável talento, o disco por diversas vezes parece se arrastar para além do necessário (13 músicas em pouco mais de uma hora de música). Porém, em seus momentos mais inspirados, o Magic Numbers consegue revitalizar elementos do passado com uma espontaneidade comovente.

É o caso de "I see you, you see me", sem dúvida a mais bela fatia do disco de estréia dos irmãos. Para além de ser uma belíssima canção, "I see you, you see me" chama atenção exatamente por desenterrar uma forma defunta e torna-la novamente pertinente: trata-se do mais clássico dueto. Não me lembro qual foi a última vez que ouvi um dueto que se aproximasse com tanta propriedade do formato mais tradicional, sem com isso soar datado de nascença. Irmão e irmã Stodart dividem os vocais em uma canção doce porém forte, simples porém profunda, e retiram brilho justamente do encontro (e da alternância) das vozes. Resgatando um formato que por muitas vezes pareceu condenado, o Magic Numbers consegue a proeza de compor uma canção que, logo nas primeiras audições, parece estar por aí há tempo o suficiente para não nos lembrarmos de como era a vida sem ela.


2 Assim como não tenho tido tempo de atualizar o blog, passei as últimas semanas sem praticamente pisar em uma sala de cinema. Ainda não vi "X-Men III", tampouco filmes que tinha curiosidade de ver, como os novos de Win Wenders e Terrence Malick. Até hoje sigo em débito com a grande maioria dos indicados ao Oscar, desde o bafafá dos cowboys gays de Ang Lee, até o filme preto e branco do ano. Recentemente tentei me reaproximar das salas vendo "A lula e a baleia" (de Noah Baumbach) que, embora fraco e inofensivo, me proporcionou novamente o prazer de estar sentado em uma sala de cinema. Ainda assim, faltava combinar o prazer do estar com o de ver, encontro raro que se deu no sábado, quando fui assistir a "O homem urso" (Grizzly Man, 2005), último filme do alemão Werner Herzog lançado no Brasil.

Conheço pouquíssimos filmes de Herzog, diretor famoso por (além de sua excentricidade) filmes como "O enigma de Kaspar Hauser", "Aguirre: cólera dos deuses" e o remake de "Nosferatu" (obra-prima de F.W. Murnau) e por uma sólida carreira como documentarista. "O homem urso" deu bolo no último festival do Rio, teve sessões conturbadas no último É Tudo Verdade, e chega, finalmente, às telas do circuito carioca. A premissa já é sensacional: Herzog tem à sua disposição 100 horas de material gravado pessoalmente por Timothy Treadwell, ambientalista que durante 13 anos passou seus verões em uma planície do Alaska, convivendo com os ursos pardos. Treadwell desenvolve uma série de técnicas de aproximação dos ursos, e seus constantes avisos do perigo de sua aproximação se fecham em ironia quando descobrimos que, em seu décimo terceiro verão por lá (no caso, o de 2001), Treadwell e sua namorada acabaram sendo devorados por um dos ursos que ele tanto defendia.

Embora a personalidade de Treadwell já seja atrativa o suficiente para que qualquer um se interesse pelo filme, Herzog a contorna com traços de gênio ao inverter a vida do ambientalista: enquanto Timothy Treadwell usava a si mesmo para falar sobre a natureza, Herzog usa a natureza para descobrir a pessoa para além do ambientalista. Aos poucos descobrimos que a aparente insanidade de Treadwell é, na verdade, uma fachada exagerada para uma pessoa que, como todos nós, apenas buscava um sentido para sua vida. E que, não diferente de todos que se entregam sem relutância à sua paixão, acabou sendo devorado por ela.

"O homem urso" é, seguramente, o segundo filme que vi esse ano que imediatamente guardou sua cadeira no top 10 que faço a cada virada (o primeiro sendo "2046 - Os segredos do amor", do gênio Wong Kar Wai). É um filme sobre uma persona criada na solidão, persona essa que acaba se tornando mais forte que seu criador. Herzog é apenas mais um dos artistas contemporâneos que percebe - de forma muito lúcida - que o pequeno, o particular, o ignorado, é, geralmente, mais comovente do que o macro.

terça-feira, maio 23, 2006

Amarcord: Postcard

"Sei que o caminho não é longo, mas no momento me sinto bem" – Anjos Caídos (Duo Luo Tian Shi, 1995), Wong Kar Wai

Para retraçar os caminhos que me levaram a "Postcard" eu deveria assistir novamente o belo "O quarto do filho" (La Stanza Del Figlio, 2001), filme do diretor italiano Nanni Moretti. Não tenho nenhuma lembrança concreta da trilha que Brian Eno fez para o filme, mas, por caminhos sem dúvida estranhos, o drama dos pais que saem em uma viagem de carro para superar a morte do filho me fez sair do cinema com uma melodia na cabeça. Dias depois essa melodia se tornaria "Postcard", canção que até hoje vejo como das minhas mais completas.

Confesso que não sou bom criador de estórias, talvez por não enxergar o mundo por linhas narrativas. "Postcard", portanto, não poderia ser uma canção sobre um casal de pais que perde um filho adolescente em um acidente de mergulho. Porém, olhando para "Postcard" e reafirmando minha impressão de que a base das melhores letras nasce junto com a melodia, penso que minha canção brota justamente dessa viagem de carro, dessa estrada que a família tem que, visualmente, percorrer. Não sou bom criador de estórias, mas me aproximo do mundo por imagens que evocam um certo estado de espírito, e é com esse olhar que crio. Assim como Moretti em seu filme, em minha canção vejo na estrada uma possibilidade de redenção. "Postcard" é minha road song.

Adoro estradas, não só pelo evidente caráter simbólico que encontramos em todo caminho, mas também pelos signos que hoje caracterizam uma estrada não mais como simples passagem, mas também como lugar. Muito do que me atrai nas estradas reflete minha crença de que, talvez, o que existe de mais significativo na vida não seja um objetivo que tentamos alcançar, mas sim o processo de tentar alcança-lo. Talvez o lado mais nobre dos objetivos seja justamente a capacidade de gerar essa possibilidade de um processo, de gerar uma estrada. O Invisibles, como toda vida, não foi um objetivo, foi um trajeto. Foi uma canção que, como toda canção, faz sentido enquanto é cantada, e quando acaba não temos mais do que sua ausência.

Alguns dias depois de ter visto "O quarto do filho", cunhava rimas enquanto arrumava as malas para irmos, eu e Clarissa, para Juiz de Fora, onde o Invisibles faria, à época, seu segundo show na cidade. Embora o nosso set tenha sido tesourado da primeira vez que tocamos por lá, fiquei com a impressão de que naquela cidade encontraríamos pessoas que, de certa forma, realmente compreenderiam quem nós éramos, o que aquelas canções diziam, e reconheceriam o sentimento de onde elas surgiam. Enchia as malas de expectativa, e o tal show foi, de fato, um dos melhores dias que tivemos nos 10 anos que existimos como banda. A cidade realmente nos compreendia. Depois disso, a estrada, que também é retorno.

Uma das minhas maiores ambições sempre foi trazer para o punk rock um certo olhar que nunca teve muito espaço no gênero, que é mais caro aos artistas comumente chamados de singer/songwriter, e é nesse sentido que vejo em "Postcard" uma de minhas canções mais completas. Não é só uma questão de realmente gostar de vários de seus versos, mas também de achar que eles foram concebidos para serem cantados da melhor forma possível, nos momentos certos, extraindo o máximo de sentido de cada palavra. O sentimento-síntese de expectativa parece guiar cada verso, embora não apareça literalmente uma vez sequer. Não é uma canção sobre uma viagem, mas sim sobre a expectativa que antecede essa viagem e sobre todas as coisas inesquecíveis que podem ser vividas nesse curto espaço de tempo. É sobre fazer as malas levando consigo seus melhores sentimentos, deixando pra trás tudo o que acontece quando não é fim de semana.

Muito desse sentimento era factual. Quando escrevi "Postcard" eu havia acabado de mudar para o Rio, e passava minhas semanas distante de minha musa, vivendo vidas-duplas de fato. Só nos víamos em fins de semana, e por isso os sorrisos se despediam com a chegada da primeira estrela do domingo. Por isso pedia que ela não esquecesse seu brilho de sexta-feira, como as senhoritas de outrora tinham roupas separadas para os fins de semana. A expectativa era minha roupa de sair. Era a minha ambição de viver momentos eternos, de fazer com que cada trecho de estrada se tornasse lugar. Os versos passam como os dias da semana – retornam, parecidos mas com algo diferente, como os dias da semana – assim como a canção deixa de cantar o dia e, no exato momento onde adquire traços de uma quase canção de ninar, passa a cantar o anoitecer (marcada aqui pelas solitárias páginas de uma noite de leitura), para depois tornar ao sol, no dia seguinte. "Postcard" seria a tentativa de capturar (como em um cartão-postal) os fins de semana, tratando toda quarta-feira como um contraponto que nos lembre de como é agradável um sábado, que mesmo quando chuvoso não deixa de ser ensolarado. "Postcard" é uma canção sem refrão.

Nunca revi "O quarto do filho". Talvez porque não poderia escrever “Postcard” novamente. Talvez por temer que as ternas lembranças que tenho do filme se perdessem se o deslocasse do momento que o assisti pela primeira vez. Talvez pelo medo de perceber que uma das canções que mais me sinto satisfeito por ter escrito não seja mais que um plágio descarado do Brian Eno.

segunda-feira, maio 15, 2006

O bom cão

Minha obsessão de garoto também nasceu de um elogio. Uma vez, durante o almoço, contei a meu pai que havia me levantado durante a noite para ir ao banheiro. Ele me felicitou em voz alta diante do resto da família, e, por conta disso, passei a me sentir um pequeno senhor. Aquele afago na cabeça era como um biscoito de recompensa, portanto, logo percebi que era um caminho todo pontuado por biscoitos, o que fazia dele objeto de profundo estudo para sanar a curiosidade pela trilha comestível. Queria andar por esse caminho mais vezes, e daí nasceram minhas constantes incursões noturnas ao banheiro.

Como é comum termos heróis paridos pela conjuntura, explico a natureza do afago: minha irmã mais velha freqüentemente se deixava levar por seus sonhos mais sinestésicos e relaxava a continência durante a noite. Lembro que me contava que em seu sonho mais recorrente ela estava numa piscina – o que, por si só, já revelava um hábito que me afligia toda vez que, por acidente, engolia água enquanto nadava – ou mesmo no banheiro, e que seu sono era tão traiçoeiro que a expulsava de lá quando começava a sentir a cama molhada. Por vezes sonhei estar também boiando em silêncio na piscina, mas mantinha-me alerta contra possíveis ciladas armadas para minha honra.

Admito que, por duas ou três vezes, não fui forte o bastante. Para pelo menos uma dela, porém, tenho a clara certeza de ter sido seduzido pelo meio. Como era bastante comum em minha infância, fui passar a noite na casa de meus primos. Meus dois primos mais velhos eram famosos na família por não terem o menor pudor em fazer de suas camas, banheiro. Por vezes viajávamos todos de férias, e praticamente todos os dias a irmã mais nova acordava chorando, pois havia dividido o colchão com um dos irmãos e acabara acordando com as costas empapadas de relaxamento alheio. Como meu faro é meu guia do passado, as duas maiores lembranças que tenho da casa de minha tia são o cheiro dos pães de leite condensado que ela preparava, todo dia, para o lanche, e o desagradável cheiro da varanda, onde, todos os dias, os colchões de meus primos eram colocados para secar ao sol. Uma vez acordei na casa de meus primos e minha tia me disse que havia molhado a cama. Embora reconheça ser fácil se deixar levar em ambientes de necessidades tão opressoras, ainda tenho dúvida se minha tia não queria, com isso, apenas melhorar a imagem de seus dois mijões. Ainda assim, meus primos mais velhos continuavam dizendo “caçapete” quando queriam falar “capacete”, portanto, ainda me sentia um vencedor.

Minhas incursões noturnas ao banheiro foram perturbadas quando nos mudamos de apartamento. Na casa nova, o banheiro mais próximo ficava de frente para o quarto de meus pais, e embora isso tenha despertado a tentação de agora poder buscar novos afagos provando minha disciplina de forma mais contundente, ao mesmo tempo me via intimidado pela possibilidade de acorda-los com o barulho da descarga. Assim que começavam as férias, eu passava a cultivar o hábito de assistir televisão durante as primeiras horas da madrugada, indo dormir cada dia um pouco mais tarde. Muito disso vinha do medo que sentia de um comercial noturno do SBT que combinava o desenho de uma família modelo, com a ameaçadora voz narrando que em cada cinco pessoas, uma morria de câncer, enquanto a figura relativa ao pai desaparecia do desenho.

Esse pesadelo me mantinha acordado por mais algumas horas, aumentando em número minhas idas ao banheiro. Para não acordar meus pais, aboli a descarga na esperança de desvendar mais alguns metros do caminho de biscoitos. Até que um dia acabei adormecendo mais cedo, e tive o sono cortado pela disciplina. Caminhei até o banheiro na ponta dos pés, evitei acender a luz para não acordar meus pais e enchi o vaso de orgulho, tentando não acertar diretamente a água no fundo da privada, na esperança de assim manter o silêncio do ritual. De alguma forma, porém, feri o sono leve de minha mãe. Dedicada a meus hábitos como lhe pedia a função, ela chamou-me a atenção: “não vai dar descarga não, porquinho?”. Sua voz cortou minha necessidade pelo meio, fazendo todo meu ritual parecer um pouco mais estúpido. Acendi a luz do banheiro, assassinei a noite com o estrondo da descarga, e, com passos duros, tornei à minha cama, assombrado pela imagem do desenho do pai que, lentamente, desaparecia.

segunda-feira, maio 08, 2006

Quatro coisas

1- Infelizmente não encontrei na internet a sensacional foto da Associated Press que ganhou a capa do jornal "O Globo" essa semana (acompanhada de um genial "Muy Amigos" como legenda), onde Lula era - figurativamente falando, claro - enrabado por Evo Morales, o tal populista boliviano. Ver a foto na primeira página de um dos maiores jornais do Brasil me fez lembrar dos bons tempos do "Jornal do Brasil", época em que, mais do que simplesmente retransmitir a notícia, o jornal abria espaço para o bom humor e escancarava a subjetividade nos textos e nas manchetes (como a histórica capa sobre o sequestro da filha de Silvio Santos que vinha com a garrafal manchete "Nasce uma estrela"). Se os principais jornais percebessem que é justamente nesse tipo de abordagem que eles podem se diferenciar de todos os sites gratuitos de notícias que existem por aí, voltariam a me ter como assinante.

2- Obrigado a todos que apareceram no último show do Invisibles no Rio, domingo passado no Teatro Odisséia. Melhor do que tocar e reencontrar vários amigos, só o conforto da certeza de que fechar com um dos melhores shows dos 10 anos de Invisibles era a melhor lembrança que poderíamos guardar da banda. Mais uma vez, obrigado por terem contribuído na construção dessa mais cara memória. Dia 27 de Maio encerramos de vez com um derradeiro show em Barra Mansa, enterrando os ossos na cidade que figurou a maior parte de minhas canções.

3- Invariavelmente me percebo encantado com uma nova canção entoada por alguma moça genérica de rádio. Embora nem todas essas canções levem a descobertas tão sólidas como foi o caso de "Lovefool", do Cardigans, mantenho a generosidade a todo vapor quando alguma vozinha minúscula me chama atenção na programação quase sempre desagradável das rádios do Rio. Foi assim com "Thank You", da Dido, "Everywhere" de Michelle Branch, "A thousand miles", de Vanessa Carlton e os hits inconstantes de Alanis Morrisette. Talvez "Suddenly I see", da escocesa KT Tunstall, não tenha o mesmo brilho das jóias acima, mas é, sem dúvida, a canção mais interessante do gênero (se é que podemos chamar isso de gênero) a me fisgar em um bom tempo. O arranjo dos versos é confuso, a ponte beira o inaceitável, mas tudo é compensado por um refrão inspiradíssimo que tem me acompanhado na vida já há algumas semanas. Ainda não ouvi nenhuma outra canção de KT Tunstall, mas "Suddenly I see" é incrivelmente melhor que artistas mão-de-chumbo com toques de artpop como Demian Rice e o horrendo Keane, que o jabá invariavelmente tenta consagrar como deuses contemporâneos.

4- Para compensar pelo pau fino de Luana Piovani, o GNT exibiu hoje - na tal faixa de filmes femininos - "Todas as mulheres do mundo", obra-prima de Domingos Oliveira. "Todas as mulheres do mundo" é o tipo de filme que pega o espectador de uma forma muito visceral, e espanta por emanar uma força que não sabemos precisar de onde vem. Tudo passa a fazer sentido quando descobrimos que Domingos Oliveira fez o filme justamente como uma forma de superar o término de seu casamento com a atriz Leila Diniz (que, nada por acaso, protagoniza o filme ao lado de Paulo José, à época um dos melhores amigos do diretor). Para além do texto excepcional de Domingos e de uma leveza que raramente se viu no cinema brasileiro, "Todas as mulheres do mundo" encanta por ser um filme feito com o olhar apaixonado de um diretor por sua musa (só encontrando paralelo no olhar de Godard por Anna Karina em "Uma mulher é uma mulher"). O GNT ainda reprisa o filme no próximo fim de semana, sábado (13) às 13h, e domingo (14) oito e meia da manhã.

sábado, abril 29, 2006



Hanson - Underneath

Há muito venho fazendo uma defesa pública do Hanson. Passada uma rápida rejeição inicial pelo excesso de execução da simpática "Mmm Bop", comecei a perceber a injustiça feita pela imprensa musical em vender a banda como mais uma das boy bands que estavam tão em voga à época. Se não fosse o fato de ser um banda composta realmente por garotos, os pontos de convergência entre Hanson e os milhares de N Syncs se limitaria simplesmente ao público consumidor. Se em um primeiro momento a banda foi vendida visando justamente um público adolescente feminino (escolha duvidosa, pois era exatamente o tipo de banda que poderia agradar famílias inteiras), aos poucos tornaram-se perceptíveis intenções de real amadurecimento musical por parte dos três irmãos, coisa que sempre passou à margem do universo das boy bands.

Não que esse amadurecimento fosse de fato necessário. Desde "Mmm Bop" e "Where’s the love" o Hanson já aparecia como uma simpática versão caucasiana do extraordinário Jackson 5, coisa que ficava clara até mesmo nas canções da banda (seria forçar muito a barra imaginar o jovem Michael Jackson cantando "Mmm bop"?). Ainda assim, os três irmãos de Oklahoma pareciam teimar em deixar de lado a co-autoria de canções ao lado de compositores de renome para buscar um caminho mais pessoal. Aos poucos a ingenuidade calculada do primeiro momento começou a ceder espaço a canções pop mais maduras, e de single para single víamos os três garotos crescendo diante de nossos olhos.

A minha simpatia se tornou admiração à época do disco This time around (2000), principalmente por conta do single "If only". Lembro-me de ouvir a canção no rádio pela primeira vez e ter a nítida sensação do amadurecimento da banda toda condensada no ótimo refrão da canção (que depois viria a ser não tão discretamente surrupiado pelo Offspring em "Want you bad", justamente por essa safadeza uma das melhores canções da banda nos últimos anos). "If only" passou a figurar minhas coletâneas, e foi prontamente executada nas poucas vezes que fui convidado para discotecar em festas. Ainda assim, a admiração pelos Hanson era freada pela falta de interesse no material da banda para além dos singles. Embora "If only" e "Save me" tivessem me impressionado enquanto canções, só fui ouvir o This time around anos depois, quando já havia decidido colocar meu dinheiro em meu discurso e comprar, finalmente, um cd do Hanson.

Encontrei Underneath (2004) em um desses saldões de cd onde sempre me enfurno em busca de ar fresco barato. Mais uma vez os singles já haviam me interessado, e o bom gosto evidente em toda a parte gráfica do cd me convenceu a, definitivamente, abrir a carteira pelos rapazes. Embora Underneath não seja um disco perfeito, todo o seu contexto faz dele uma experiência extremamente agradável. Em primeiro lugar, trata-se de um disco de maturidade. Após o relativo fracasso de público de This time around, a banda rompeu com a gravadora Geffen e decidiu lançar seu novo disco de forma independente. Se a produção de Underneath ainda soa muito limpa para ouvidos roqueiros, já é possível perceber nas entrelinhas uma vontade de romper com a esterilidade pop e buscar sonoridades mais humanas, mais acústicas. Se somarmos a isso a bela predominância dos tons pastéis da arte, e até mesmo o caprichado trabalho de fotografia dos clipes desse álbum (em especial o de "Penny and me") começa a ficar clara a intenção da banda de se dissociar da imagem descartável do passado e de redirecionar seu trabalho para um público jovem-adulto. Em vez da ingenuidade das letras de outrora temos a rica criação de atmosfera em canções como a estonteante "Penny and me", que evoca imagens já de um universo adulto. Saem as harmonizações vocais em excesso para dar lugar a canções individuais dos três irmãos, deixando o evidente talento vocal familiar conjunto aparecer discretamente em refrões ou pontes.

Underneath não é um disco perfeito por dois motivos interligados: nem todas as canções são igualmente boas, o que faz o disco ser longo demais (passando de uma hora de duração, embora tenha algumas surpresas escondidas no final). Se em vez das 13 canções do disco tivéssemos dez, Underneath seria, sem muita dificuldade, um dos discos pop mais coesos dos últimos anos. "Strong enough to break" abre com ecos de Goo Goo Dolls e outras bandas competentes de rock de rádio. "Dancin’ in the Wind" e a dançante "Get up and go" fazem pensar em Superdrag, enquanto a balada "Misery" lembra os melhores momentos do Coldplay. As ensolaradas "Penny and me" e "Deeper" impressionam não só pelos inspiradíssimos refrões, mas também pelo cuidado de fazer música e letra trabalharem em harmonia. Além disso, temos "Lost without each other", canção composta junto com Gregg Alexander (do finado New Radicals), irresistível convite para dançar que traz à cabeça as canções mais inspiradas do Pretenders.

Embora exista em mim uma calculada preocupação em defender quebra de preconceitos artísticos, Underneath se sustenta tranqüilamente sozinho, para além de qualquer intenção ou discurso. Se artistas como Guster, Fountains of Wayne, Ben Lee, Goo Goo Dolls e Ben Kweller têm garantido que os últimos anos sejam futuramente lembrados por bons discos pop, o Hanson engrossa a lista trazendo consigo o charme de serem garotos que conheceram o sucesso muito cedo e, ainda assim, não se acomodaram com a fôrma. Underneath é a prova do triunfo da inquietação de jovens artistas que acreditam na música que possuem dentro de si, e - dentro de certos limites, reconheço - decidem driblar as imposições da indústria e investir o dinheiro que ganharam nas canções que queriam fazer.

segunda-feira, abril 24, 2006

Piovani, Demy e a canção da semana

Há algum tempo venho acompanhando, com algum interesse, as mudanças de direcionamento do canal GNT. Embora num primeiro momento as tais mudanças (até onde sei para tentar aumentar a audiência do canal) tenham sido anunciadas como "imperceptíveis para o espectador" pelo canal, aos poucos começamos a notar que a intenção transcendia a saudável troca das vinhetas de jornalismo duro por um visual mais clean e moderno. Aos poucos, as vinhetas passaram a ser tomadas por silhuetas femininas a la propaganda de sabonete, programas de temáticas Marie Claire começaram a pipocar pela grade do canal, e, mais recentemente, abriu-se até uma faixa para filmes que "abordassem a temática feminina". As tais mudanças imperceptíveis fizeram da Globo News Television (sim, o GNT já se chamava Globo News antes da existência da Globo News) "o canal da mulher".

Apesar de uma segmentação por meio de uma generalidade sempre me parecer duvidosa, admito (de forma bem otimista!) não ser isso o determinante da qualidade da programação do canal. Bons programas como "A cozinha de Oliver", a faixa fixa de documentários (que várias vezes pende para o jornalismo duro de outrora, mas vez por outra passa boas jóias) e até mesmo o "Marília Gabriela Entrevista" (aproveitei a chance de fazer publicidade do meu programa aqui no blog!) apontam para um lado, enquanto que os documentários caça-níqueis sobre paparazzis, e o desserviço de programas como "Superbonita", "Nós & Eles" e "Mulher Solteira Procura" (sem dúvida o pior dos três) constroem uma visão no mínimo questionável do tal "universo feminino". Esse mesmo olhar que move revistas como "Capricho" ou "Marie Claire", que é pseudo-intelectualizado por programas como "Sex and the city", que ilude-se de uma intenção feminista e acaba por exaltar um machismo consentido, parecia comer um dos melhores canais da tv brasileira pelas beiradas. Não à toa, assim que o GNT se admitiu como "o canal da mulher", não tardou a ser criado o FX, "o canal do homem".

Tenho sobrevivido bem a essa mulher que o GNT tenta agradar/construir/promover, embora mantenha com ela uma relação estritamente televisiva (quando muito). Até que na última semana, enquanto alternava entre um sofrível jogo do Flamengo na Globo e a versão brasileira do "American Idol" no SBT (combinação que só perde em inusitado para o dia em que emendei uma sessão de "Nascido para matar" com "Queer eye for the straight guy"), dei um pulo no 41 para espiar o que a diversidade feminina discutia no "Saia Justa". Se a hostilidade velada (porém visível) entre Fernanda Young e Marina garantia um mínimo de interesse no elenco passado, com a reformulação da equipe o "Saia Justa" caiu de vez na completa irrelevância. E quando ia retornar para os comentários do Miranda, Luana Piovani perguntou a suas colegas (cito de cabeça): vocês ficam muito decepcionadas quando pegam um cara que tem o pau fino? .

Juro que até em meus momentos mais pudicos fujo do moralismo, portanto não entrarei (já entrando) no mérito de que a frase de Luana Piovani foi o que de mais grosseiro ouvi na televisão (em horário nobre, ainda por cima) em um programa que parece se levar com um mínimo de seriedade. O que me surpreendeu, após os minutos de incontornável constrangimento que tive como espectador, foi perceber que nunca tinha ouvido um homem falar de forma tão desrespeitosa sobre uma mulher. Até mesmo em programas chauvinistas como "It’s a man’s world", ou nas conversas menos dignas que já entreouvi nessa vida, não me recordo de já ter ouvido um homem associar uma particularidade estritamente anatômica com performance, ou algo do tipo. As proporções podem agradar mais ou menos, mas limitam-se enquanto preferências. Afinal, o contrário seria como zombar do aleijado!

Luana Piovani - que até então eu acreditava ser somente burra, mas desde então estou convencido ser pessoa da pior categoria - chegou ao ponto de dizer que avisava as amigas quando pegava um cara de pau fino! "Iiihhhh, não pega ele não porque o cara tem pau fino!". Beth Lago, a inteligência descolada do programa, admitiu ter terminado um relacionamento com uma pessoa (afinal, quem é da televisão sempre diz ter um relacionamento com uma "pessoa", porque definir seria preconceito, mesmo quando o assunto é o pau da "pessoa") "super bacana" (as pessoas da tv também adoram falar "super") por conta do diâmetro. Atordoado com Luana, a discussão sobre covinhas no "SuperBonita", as solteironas que sempre terminam seu dia flertando em uma happy hour no Outback no "Mulher Solteira Procura" (que, pouco depois, exibiria um episódio sobre uma mulher cuja maior satisfação era sentar numa livraria, pedir um café, acender um cigarro e ler um livro fazendo ar blasé - palavras dela!), o enrustido "Contemporâneo", nada disso me pareceu mais abjeto, e sim simples futilidades. Obrigado Luana, por ter tornado todo o resto da programação do "canal da mulher" menos ultrajante.

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Por outro lado, é claro que só escrevi tudo isso porque eu tenho pau fino...


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Quem mora no Rio não pode perder a oportunidade de assistir no cinema Pele de Asno, clássico de 1970 dirigido por Jacques Demy e relançado em circuito na cidade pelo Grupo Estação. Além de o trabalho de cor absolutamente extraordinário de Demy (que atingira o ápice com "Os guarda-chuvas do amor", filme que ficou famoso por ter rigorosamente todos os seus diálogos musicados) brilhar de forma mais impressionante na película estalando de nova (fujam das salas exibindo o filme em projeção digital!), e das músicas sempre cativantes de Michel Legrand (que consegue fazer uma receita de bolo - literalmente: ovo, leite, farinha, etc - soar encantadora na boca de Catherine Deneuve), é extremamente curioso ver como um diretor ligado às vanguardas - no caso, a nouvelle vague francesa - trabalhou um gênero tão difícil - aqui, a fábula infantil. Jacques Demy foi um esteta muito particular, e "Pele de Asno" antecipa traços que seriam aprofundados pelo cinema posteriormente, ecoando em especial no trabalho de Tim Burton.

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"Quando deus te desenhou, ele tava namorando".