sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Melhores de 2006


03 - O homem urso - Werner Herzog

"Cada um projeta no vulcão a quantidade de raiva, de cumplicidade com a destruição, de ansiedade quanto à capacidade de sentir que já existe na sua cabeça".

"Amar realmente alguma coisa é desejar morrer dela.
Ou viver apenas nela, o que é a mesma coisa. Subir e nunca precisar descer".
(citações de "O amante do vulcão", de Susan Sontag)

Durante 13 anos, Timothy Treadwell passou seus verões isolado no território dos ursos pardos, no Alasca. O intermitente convívio chegaria ao fim em 2003, ano em que Treadwell e sua namorada (a também ativista, Amie Huguenard) foram devorados por um dos ursos locais. Até o momento de sua morte, Treadwell registrara em vídeo mais de 100 horas dos cinco anos finais dessa relação, afim de tornar conhecido um mundo que estava sendo, aos poucos, extinto.

É desse material bruto que Werner Herzog constrói a maior parte de seu "O homem urso" (Grizzly Man). O filme começa, porém, com uma visita de Herzog - ao lado do piloto de avião responsável por transportar Treadwell em suas temporadas no Alasca - ao acampamento onde o ativista e sua namorada teriam sido atacados. Embora Treadwell tenha sempre feito suas expedições sozinho, ele morre justamente no ano em que está acompanhado - "É natural que os amantes da música gostem de colaborar, de tocar juntos. Extremamente não natural colecionar em conjunto. Cada um quer possuir (e ser possuído) sozinho". Enquanto a exuberante paisagem contrasta com as descrições da cena pelo piloto, um onipresente som de insetos toma a banda sonora. É dessa natureza incômoda e impiedosa que Herzog tratará em seu "O homem urso". Uma natureza diferente daquela matizada pelo olhar de Treadwell. Uma natureza que se devora em crueldade - como diz o próprio diretor, na narração em que ele se coloca a respeito das imagens - e que não parece trazer em si um sinal sequer da compaixão não-humana que Treadwell enxergava nos olhos de seus amigos ursos, impressão de que "Amar alguém é tolerar imperfeições que nunca desculparíamos em nós mesmos".

Começamos a conhecer Treadwell pelos olhares alheios. Assim como ouve seus amigos e familiares, Herzog dá voz aos homens que mataram o urso assassino (em um dos mais atordoantes dos vários paradoxos de toda a situação - a morte do defensor dos ursos acaba provocando o assassinato de dois de seus protegidos) e ao médico que tirara os restos mortais do casal de dentro do estômago do animal. O choque das opiniões divergentes dos que o amavam e dos que o chamavam de louco - ""Louco por quadros", um amigo da juventude o chamava - a natureza de um sendo para outro a idéia da loucura; do desejo imoderado" - é lacuna que Herzog nunca tentará preencher: seu Treadwell não é louco nem deus, é um olhar sobre o mundo. A oposição dos discursos parece apenas indicar os ângulos possíveis de se deter sobre uma paixão; paixão essa que nunca parece poder ser compreendida por qualquer pessoa que não seu próprio portador.

Na primeira metade do filme, a paixão de Treadwell se mostra como coleção. Suas imagens dos ursos impressionam por uma proximidade física destemida - "Nunca se aproximava da cratera sem apreensão - em parte medo do perigo, em parte medo da decepção" - mas determinam um recorte que não sai da superfície física do foco de sua paixão. As imagens "oficiais" de Treadwell exibindo seu objeto de fascínio não revelam a natureza de seu amor (escondida pelo ativista, mas mais tarde reconstruída por Herzog), mas sim o foco momentâneo de uma coleção mais ampla. "As coleções unem. As coleções isolam. Elas unem os que amam a mesma coisa (Mas ninguém ama como eu; o bastante). Elas isolam dos que não compartilham essa paixão (Infelizmente, quase todos). Então vou tentar não falar sobre o que mais me interessa. Falarei sobre aquilo que interessa a você. Mas isso me fará lembrar, muitas vezes, daquilo que não posso compartilhar com você. Ah, escute. Pois então você não vê? Não vê como é bela?". É fugindo da inebriante paisagem do Alasca e reconstruindo o passado de seu personagem que Herzog busca compreender uma condição, mais abrangente, onde os ursos - a coleção - são apenas um detalhe.

Treadwell nascera em uma família de classe média norte americana bastante convencional. Muito antes de se apaixonar pelos ursos, fora apaixonado por esportes. Depois, tentara construir uma carreira de ator (fazendo um teste para o papel que viria a ser de Woddy Harrelson, na série "Cheers"). Com a ruína da crença em uma carreira artística, apaixonara-se pelo álcool e pelas drogas. Só aí vieram os ursos. "Não existe colecionador monógamo. A vista é um sentido promíscuo. O ávido olhar sempre quer mais". A parte do material filmado por Treadwell que parece mais interessar a Herzog não é dedicada aos ursos; são os momentos em que o ativista usa a câmera como confidente, e fragmentos desse passado começam a surgir como aparições de uma vida não de todo abandonada. A paixão que Treadwell oficializa diante da câmera parece encantada e pró-ativa, mas esconde seus momentos de mais intensa manifestação."Ele apenas relata; e, ao relatar, o caráter odioso da coisa vai diminuindo e se torna uma narrativa, nada que perturbe demais. (...) Já que ele tem apenas palavras para contar, pode então explicar (...), pode condescender, pode ironizar. Pode ter uma opinião (não consegue descrever sem tomar partido sobre o que está descrevendo), e essa opinião já terá se mostrado superior aos fatos dos sentidos, já os terá descorado, desodorizado, abafado seu vozerio". Uma coleção, de fato.

O que Herzog busca é o sentimento por trás do objeto. A fonte. São as palavras que saem pelas beiradas quando Treadwell parece menos vigilante. São os impropérios, as inseguranças, as frustrações, os motivos. Os ursos parecem apenas estar no lugar certo, na hora certa. Mas não parecem nada de especial. O que parece especial - e admirável - é o sentimento que conduz até os ursos. É o que diferencia um colecionador de um amante. "O envolvimento do amante com os objetos é o oposto do envolvimento do colecionador, cuja estratégia consiste numa ardorosa auto-anulação. Não olhe para mim, diz o colecionador. Eu não sou nada. Olhe o que eu tenho. Não é belo, não são belos? O mundo do colecionador fala da existência esmagadoramente grande de outros mundos, energias, esferas, épocas diversas daquela em que ele vive. A coleção aniquila a pequena fatia de existência histórica do colecionador. A relação do amante com os objetos aniquila tudo exceto o mundo dos amantes. Este mundo. Meu mundo. Minha beleza, minha glória, minha fama". São esses dois personagens que convivem dentro de um mesmo Treadwell. O personagem que ele gostava de encarnar - aquele que queria, e por fim consegue, virar urso, desaparecer, fundir-se com seu objeto amado - e o outro que teima em reaparecer aqui e acolá, sempre falando em voz alta, com gestos maiores que o mundo, e que não hesita em sentar sobre a mesa bem no meio do jantar.

Mas quando exatamente as duas coisas se misturam? Quando o colecionador e o amante se tornam um só Treadwell? Quando o homem se torna urso? Em um polêmico momento do filme, Werner Herzog se põe frente à câmera, ao lado de uma amiga do casal de ativistas. Essa tal amiga dá a Herzog uma fita que, diz ela, nunca tivera coragem de assistir. Trata-se do último registro feito por Treadwell ainda enquanto homem; registro que é apenas sonoro, pois ele não tivera tempo de tirar a tampa da lente da câmera. Herzog põe um par de fones de ouvido e ouve a gravação que o homem fizera da própria morte. Embora estivesse sendo atacado pelo urso, Treadwell apertara o REC da câmera para atestar sua própria destruição ("(...)a maioria das imagens que mostram as estranhas figuras e mutações produzidos pela atividade vulcânica contêm figuras humanas: um espetáculo exige a representação de um olhar"). Herzog ouve a fita, mas decide não incluir o conteúdo em seu filme. O que parece importante não é exatamente o que foi registrado, mas o simples fato de o registro existir. Se o colecionador exclui a si mesmo e o amante exclui a todo o resto do mundo, os dois personagens só podem se encontrar quando o colecionador se torna sua própria coleção. "Todo colecionador é também um cúmplice do ideal da destruição. Pois o próprio caráter excessivo da paixão por colecionar também faz do colecionador um homem que despreza a si mesmo. Cada paixão de colecionador contém em si a fantasia da sua própria abolição". Treadwell não se torna urso ao ser devorado por um, mas sim ao final de uma cadeia de eventos que começa quando ele registra sua própria morte. Embora a oposição assumida entre documentarista e personagem provoque em muitos a leitura do filme de Herzog como obra depreciatória, trata-se, na verdade, de uma parceria que transcende o espectador. Pois se Treadwell é autor da maior parte das imagens do filme de Herzog, é o perfil construído pelo diretor que permite que colecionador e amante se tornem um só. É Herzog quem faz de Treadwell "O homem urso".

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