segunda-feira, fevereiro 26, 2007
Postado por Fábio Andrade às 8:14 PM
Melhores de 2006 - Discos
07 - Bob Dylan - Modern times
Foi lugar mais que comum na imprensa musical a afirmação de que Modern times seria o retorno de Bob Dylan a seus melhores dias (além de a surpresa geral pela menção a Alicia Keys, em um dos primeiros versos do disco, ter rendido mais pautas que a qualidade das canções). Embora o disco mostre, decerto, o compositor em grande forma, Modern times é o passo natural de Dylan após o também ótimo Love and theft, de 2001. Dar o passo mais natural não significa, porém, repisar pegadas recentes: se o blues cafeinado que era predominante em Love and theft ainda rende boas canções em Modern times, o gênero é usado estrategicamente em faixas esparsas, conferindo à fruição do disco um ritmo quase respiratório. Pois entre horas de dentes trincados, Bob Dylan adoça o álbum com uma mão cheia das melhores baladas de sua carreira.
"Thunder on the mountain", a tal canção sobre a Alicia Keys, abre com um pé no disco anterior. Mas se a canção parece pedir o andamento acelerado de "Summer days" - ou mesmo do clássico maior "Subterranean homesick blues" - Dylan segura o compasso pela coleira fazendo a canção deslizar por quase 6 minutos, e desenrola suas palavras com uma voz mais paciente do que em qualquer gravação passada. Essa leve distorção, impressa pelo autor, das convenções do gênero se repete na balada seguinte: "Spirit on the water" parece combinar "Bye and bye" e "Moonlight" como base musical para sua poesia; mas a belíssima segunda faixa de Modern times alcança, na repetição exaustiva de duas linhas melódicas apenas, mais que a soma dos minutos das duas canções de Love and theft que toma como inspiração. A duração das músicas em Modern times (oscilando, em geral, entre os 5 e os 8 minutos - ultrapassados na última faixa) é apenas evidência mais concreta de uma das intenções primordiais do disco: trata-se de um tratado sobre o tempo.
Essa intenção se dá em todas as esferas principais da obra. Dono de métrica sempre desafiadora, Bob Dylan parece especialmente solto com as palavras em Modern times. Enquanto sua banda de apoio o confina em bpms, sua voz entorta pronúncias, espreme 15 palavras em um verso composto para cinco, termina uma frase antes que a melodia se desenhe por completo. Dylan está em descompasso com o título de seu disco: diante de olhos tão serenos, o mundo moderno passa em velocidade grande demais para ser percebido com clareza. Em um disco que comenta a velocidade da vida, as mais inspiradas canções de Modern times não poderiam ser outras que não as baladas.
A já falada "Spirit on the water", conduzida por sua frágil linha de guitarra, flutua por quase 8 minutos que só são percebidos quando a canção acaba e, por hábito, tornamos a conferir o relógio. E, enquanto ela parece buscar uma leveza transcendente, Dylan não a deixa terminar sem um arranhão de auto-ironia ("I wanna be with you in paradise / And it seems so unfair / I can't go back to paradise no more / I killed a man back there"). "When the deal goes down" ressucita o esquecido compasso 3x4, e se aconchega, melódica e liricamente, próxima ao universo de Tom Waits. Embora os dedos em riste insistam armarem-se com a cronologia (o fato de que Waits não seria quem é se Dylan não tivesse sido quem foi), o trabalho artístico de Bob Dylan (assim como o de Scorsese, no cinema) permite tais inversões de forma legítima. Sua obra é o andamento de uma tensão entre amor e roubo, seja do passado ou de seus próprios frutos. O artista constrói canções reinterpretando frases (verbais ou melódicas) e idéias que pertencem ao mundo. Se a voz de Tom Waits é hoje aceita a ponto de ser imitada em comerciais de tv (processo de redefinição da figura do artista pop iniciado - caso encerrado – quando um jovem anasalado do Minnesota ganhou mundos com "Blowin’ in the Wind"), Dylan não se constrange em retirar imagens do universo particular de Waits – as orações invisíveis que flutuam como nuvens, na quinta linha de "When the deal goes down", por exemplo. O tempo, mais uma vez, aparece como dado constrangedor, e a bela melodia da canção espreita por trás de fragilidade semelhante à das flores e das horas, exposta em um dos mais belos versos do disco ("More frailer than the flowers, these precious hours / That keep us so tightly bound / You come to my eyes like a vision from the skies / And I'll be with you when the deal goes down).
Os pontos em que Modern times se aproxima de Love and theft são essenciais para a compreensão de um projeto artístico autofágico como o de Dylan. Não existe obra fechada, pois o mundo seria uma obra maior em eterna transformação, e o artista é justamente aquele que percebe os caminhos abertos, no passado, e faz deles estrada para algum lugar. A obra de Bob Dylan segue sendo contada e reinterpretada pelo próprio artista, e uma canção como "Beyond the horizon" (quase uma terceira parte de "Spirit on the water" – que por sua vez já parecia derivada de canções anteriores) é a exploração de uma possibilidade antes já esboçada, mas não levada a cabo. O que limita o artista diante da obra aberta do mundo é sua mortalidade, e por isso o tempo é tão importante em Modern times. Não à toa Dylan canta, em uma das melhores letras do disco, que além do horizonte (metáfora clara para a morte) a vida teria apenas começado, e que lá seria fácil amar (amor que espera por todos, cantaria alguns versos depois). Agir sobre o mundo é, portanto, uma tentativa de transcender a morte ("Beyond the horizon the night winds blow / The theme of a melody from many moons ago").
A força da percepção da finitude coloca Modern times ao lado de "2046 – Os segredos de amor", e do último Altman, como as três mais contundentes obras sobre o tempo e a memória lançadas em 2006. E se Dylan batiza seu mais novo disco com o nome de um dos clássicos maiores do cinema, sua cena-síntese é "Workingman’s blues #2". Em um vôo pela História, ele narra pequenos contos de trabalhadores que, em épocas mais diversas, viram a função que lhes dá nome (o trabalho) ser transformada pelo tempo. A sensação de ter sido esquecido (que na canção se multiplica em sujeitos possíveis: uma amante, a História, Deus) em um corte seco da vida sintetiza o sentimento de beleza (do que foi vivido) e melancolia (o que não será vivido) que faz de Modern times um disco tão forte. "There's an evenin' haze settlin' over the town / Starlight by the edge of the creek / The buyin' power of the proletariat's gone down / Money's gettin' shallow and weak / The place I love best is a sweet memory / It's a new path that we trod / They say low wages are a reality / If we want to compete abroad "; começa a canção, pensando sobre um mundo onde a vida social imediatamente se confunde com a particular. Uma vida onde o sono é uma "morte temporária", e o amor só pode se confirmar na memória (que também é morte). É em relação a esse mundo moderno que Dylan desacelera a passada. Pois uma vez que o fim se torna uma certeza desafiadoramente nítida, tudo que acontece até lá não é mais que um borrão.
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