quinta-feira, janeiro 25, 2007
Postado por Fábio Andrade às 8:43 PM
Melhores de 2006
04 - Volver - Pedro Almodóvar
Se assumir a canastrice textual não deixa de ser uma forma de assimila-la, faço logo o inevitável comentário: "Volver" é o retorno de Almodóvar. Não que o diretor houvesse tomado desvios de sua mais alta forma - muito pelo contrário - mas o retorno é empregado, aqui, em sentido múltiplo. É o retorno de Carmem Maura, mas também da inconográfica Chus Lampreave (atrizes que compartilharam cenas memoráveis em "O que eu fiz para merecer isso?", de 1986, só lançado por aqui no ano que passou); o retorno do humor (que não tomava seus filmes com tamanha intensidade desde "Kika"); o retorno da figura materna como pilar da narrativa. "Volver", porém, não retorna de forma reacionária ou medrosa. Retorna como o filho que saiu para conhecer o mundo e acredita ter aprendido uma coisa ou outra lá fora que podem servir à sua terra natal.
Se o talento do diretor para o melodrama lhe rendeu três obras-primas em seqüência (de "Carne trêmula" a "Fale com ela" - até hoje não vi "Má educação", inevitável lacuna neste texto), o gênero parecia atingir o paroxismo em "Fale com ela". Até onde Almodóvar conseguiria estender o peso solar dos filmes de sua maturidade? "Volver" é um retorno por provar que o peso é irmão mais que próximo da leveza, e que os dois elementos podem conviver em encantadora harmonia. Há, sim, peso em "Volver". Por duas horas carregamos, junto com suas personagens, o peso dos mortos nas costas. Peso de uma criação orgânica demais para ser ignorada; peso da percepção da impossibilidade de se livrar das lembranças e viver sem ser puxado pelo passado. A formação familiar (aqui essencialmente matriarcal) em Almodóvar parece indestrutível, como os "dogmas da infância" de Salinger. "Volver" é, sim, um filme que olha para trás. Mas se há peso, há também sol (ressaltado pela envolvente mistura de temperaturas de cor da fotografia de José Luis Alcaine). Pois trata-se, principalmente, de um filme que reconhece no passado um valor (que, como todo valor, é atemporal) a ser aplicado no presente para permitir a chegada do futuro. Ignorar o que te puxa não ajuda a supera-lo. Negar a vida do passado não faz dele morto, e é por esse caminho que as mulheres de "Volver" nos conduzem.
O filme começa - como não podia deixar de ser - suando óbito. Algumas das mortes tornam-se problemas a serem resolvidos (problemas que trazem, porém, soluções para outros); outras levantam questões que há muito esperavam ser respondidas. Resistindo a uma tentativa de estupro, Paula (Yohana Cobo) mata seu suposto pai. Raimunda (Penélope Cruz), sua mãe, assume a responsabilidade pelo acontecido (o ato tendo decorrido de uma escolha passada sua, não de sua filha) e esconde o corpo do marido no freezer (problema que, cedo ou tarde, teria de ser resolvido). No enterro de Tia Paula (Chus Lampreave), Sole (Lola Dueñas) reencontra Irene (Carmem Maura), sua falecida mãe que teria "retornado dos mortos" para se reconciliar com as filhas. Apesar de tudo, a morte em "Volver" parece sempre ter, sobre os vivos, um efeito reconciliador. Seja entre as matriarcas da pequena cidadezinha que fazem de cada enterro um encontro social, ou pelas relações familiares que se estreitam (entre Raimunda e sua filha; entre Irene e Sole, que depois se estenderá também a Raimunda e Paula, conectando três gerações em torno de um só destino, de uma só tradição), a morte nunca é destruição. É evidência do passado que ressalta o presente. Sole acolhe sua mãe com um mínimo de estranhamento inicial, mas não deixa que o lado sobrenatural de seu retorno seja empecilho para abriga-la novamente em sua vida. São esses personagens de extrema fé - na vida - que povoam a obra de Almodóvar, e é justamente essa fé que faz com que eles sigam em frente e superem as adversidades do convívio. E justamente por isso seus filmes são tão inspiradores.
Se "Volver" é mais um discurso que se põe a desconstruir a idéia de aparência - seja pela questão principal da trama, pelas paternidades mal resolvidas, ou mesmo pela convivência de gêneros que poderiam se anular mutuamente - é também um dos filmes que melhor trabalha a idéia da transformação pelo retorno. Em uma cena chave do filme, a personagem de Penélope Cruz assiste, na televisão, a "Belíssima", de Lucchino Visconti. A cena sintetiza a idéia de dupla identificação que é espinha dorsal em "Volver": ao ver a personagem de Anna Magnani tentando defender a filha da indústria cinematográfica no filme de Visconti, Raimunda se percebe tanto filha quanto mãe. Ao mesmo tempo que se vê como Anna Magnani (assumindo a responsabilidade da filha no assassinato de seu marido), compreende sua mãe (Raimunda também nutria, quando criança, sonhos de seguir carreira artística - paixão evocada na cena, tipicamente almodovariana, em que ela canta a música que dá nome ao filme). É só após essa percepção que Raimunda é capaz de se reconciliar com sua mãe (encarnação de um passado de omissão quando Raimunda fora, também, estuprada pelo próprio pai), enterrar o corpo do ex-marido e seguir com sua vida.
É com essa idéia do eterno retorno das condições (essencialmente familiares, mas que no fundo trabalham sempre uma idéia de identidade social) que Almodóvar se reconcilia, também, com seu passado. Se "Volver" é, de fato, um retorno ao pequeno povoado da infância, é um retorno de quem partiu em direção a alguma outra coisa. E se isso significa andar em círculos, tudo bem. Até mesmo em um círculo existe uma trajetória, um caminho de experiências onde o destino pode ser o mesmo que o local de partida, mas que garante que aquele que segue de um ponto ao outro retorne, de alguma maneira, transformado.
11 comentários:
Mais um que não vi...
Caído.
tenho dúvida se tu ia curtir o "amantes constantes", mas o "volver" é tiro mais que certo. se não me engano, ainda tá em cartaz.
ah, queria opiniões sobre o layout novo. sempre achei o branco cansativo pra leitura, então fiz as mudanças que vcs podem perceber. alguém preferia o antigo?
Bem, pra falar a verdade, a mudança de cores não provocou nenhuma mudança significativa. O branco não me incomodava e o amarelo também não.
E sim, o Volver está na minha lista de filmes pra ver. Mas, no momento, aguardo ansioso pelo Dália Negra em dvd.
Falando em dvd, tu viste o Miami Vice? O que achou?
Acho o "Miami Vice" muito bom. Conheço poucos filmes do Michael Mann, mas já tinha ficado impressionado com o "Colateral" e o "Miami Vice" só confirmou que é um diretor a se prestar atenção. Esqueci de coloca-lo na lista dos bons filmes de diretores americanos lá no post do "Dália negra", mas é certamente mais um dos filmes que se embola ali com os que quase entraram na minha lista ("Plano perfeito", "Superhomem"...). Curtiste?
Cara, eu até achei o filme bom, mas por ter o nome Miami Vice, ele meio que frustou minhas expectativas. Apesar de nunca ter sido um grande fã da série, achei que se tratou de um filme completamente diferente do espírito do seriado.
Se o filme se chamasse Dois Policiais Muito Loucos, acho que eu teria gostado mais.
Aliás, não dá pra não gostar de filme que tem policial de bigodão.
Não rolou de ir lá ontem... Foi mal... Como foi o show?
E final de semana? Vão ficar no Rio?
E a última notícia: Viu que fizeram uma banda chamada "PAGODA"?
Quero entrar na conversa das comadres:
1) prefiro o amarelo apastelado; contudo concordo com o Rubinho, não muda significativamente.
2) não vi o Almodovar, mas tb tá na lista... fácil.
3) Miami Vice gostei bem... e gosto exatamente pelo conflito com o seriado; menos solar e mais neônico o filme me agradou.
4) Vai rolar post pros contos? hehehehe
concordo com sua leitura de Volver. Vc não acha que tanto neste filme quanto no Hable con ella, Almodóvar está trabalhando com uma nova idéia de ética? Porque não há culpa nos atos que são feitos por amor, e que terminam por gerar coisas positivas, como vc. mesmo diz, transforma as pessoas.
a partir de má educação, eu acho que tenho uma hipótese confirmada sobre Almodóvar: ele trata bem as mulheres e mal os homens..
é isso, por ora..
http://www.youtube.com/watch?v=yyrAXV333qI
miami vice - rubinho, na verdade eu não tinha expectativa nenhuma porque nem me lembro de já ter assistido à série. acho que nesse ponto o michael mann radicaliza a investigação estética que ele começara com o colateral... o roteiro não diz muito coisa, é mais desculpa pra pensar em como fazer. e nisso acho o filme genial... os enquadramentos são muito interessantes, a exploração do vídeo como potência estética (adoro o excesso de ganho nas cenas noturnas que muita gente reclamou, falando que era ruído demais), de filmar com um mínimo de luz não-ambiente (o que é essencial na deslumbrante cor de neon que o capilé também curtiu)... se no "colateral" o roteiro ainda tinha uma importância maior, o "miami vice" tem muito mais de pesquisa... ele não mais filma algumas cenas em película porque o roteiro pedia situações de luz complicadas... chuta o balde mesmo, puxa o vídeo quando não tem luz, decupa na câmera (acho a câmera correndo no meio da matança genial... parece que os personagens esperam a câmera chegar para morrerem em quadro hehe). acho que a série meio que nem é um dado... ele faz o filme que quer fazer, pelos motivos dele. pra mim isso não é frustrante pq eu não tinha expectativa quanto à série, mas sim quanto ao trabalho dele... mas entendo a frustração de quem tem uma relação com a série.
carmem maura - engraçado, não tinha pensando por esse ângulo (e você, como musa, tem propriedade para pensar isso). mas acho que tens razão. é uma idéia que não existia num "carne trêmula", por exemplo, e que de fato aparece nesses dois filmes. não vi o "má educação" ainda, mas acredito sim que a figura masculina seja sempre problematizada na obra dele (basta lembrar do "tudo sobre minha mãe"). só que no "fale com ela" acho que os homens entravam na esperança dele, enquanto no "volver" eles realmente só fazem cagadas (embora essas cagadas não deixem de ser sementes - esterco? - pras moças se resolverem). enfim, sei lá.
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