quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Melhores de 2006


01 - 2046 - Os segredos do amor - Wong Kar-wai

O mais novo filme de Wong Kar-wai é a síntese metalingüística de sua obra. Trata-se da suposta terceira parte de uma trilogia acidental que o diretor começara 15 anos antes, com "Dias selvagens" (finalmente em cartaz no Rio). Concebido como um díptico sobre a década de 1960, "Dias selvagens" inaugurou a carreira de fracassos locais do diretor (até hoje seus filmes amargam magérrimas bilheterias em Hong Kong, e só um deles foi lançado na China continental), e sua segunda parte acabou nunca sendo realizada (daí o enigmático plano final da única parte realizada). Alguns dos rostos do filme de 1991 retornariam, 9 anos depois, em "Amor à flor da pele", gerando especulações de que o filme seria, na verdade, uma continuação de "Dias selvagens". A chave, porém, só viria em seu trabalho seguinte: se "Amor à flor da pele" trazia tantas relações quanto rupturas com "Dias selvagens", "2046" confere à trinca um status de trilogia de pontas soltas (uma trança, diria). Segundo o diretor, a idéia de fazer de "Amor à flor da pele" uma continuação de "Dias selvagens" veio de uma dificuldade no set: quando a atriz Maggy Cheung disse estar tendo problemas para se projetar na época do filme, o diretor pediu que a interpretasse como uma progressão da personagem que encarnara no filme de 1991 (mesmo que a cronologia diegética dos dois filmes não seja exata). Já "2046" (filme originalmente concebido para falar sobre o último ano em que a organização político-econômica atual de Hong Kong será mantida pela China) teria se tornado uma continuação por estar sendo rodado simultaneamente a "Amor à flor da pele". Kar-wai dizia que filmar duas estórias diferentes ao mesmo tempo seria como ter duas namoradas, e por isso aproximou os dois filmes.

"2046" (que para o diretor nasce tempo mas se torna espaço - de um ano para um quarto de hotel - mas para seu personagem principal faz o trajeto inverso) se torna síntese por revelar, em sua própria feitura, todas as principais características da arte de Wong Kar-wai. Seu cinema do improviso (Kar-wai filma uma quantidade enorme de material, sem um roteiro exatamente definido - ao contrário de diretores que conectam fotogramas como engrenagens, ele filma baseado em idéias e improvisos, para só depois "encontrar" o filme de fato na ilha de edição) repisa a sensação de que existe uma continuidade (os atores - e muitas vezes os personagens - que reaparecem a cada trabalho) em sua obra, mas que essa continuidade é fluida (muitos dos personagens retornam com características antagônicas às suas aparições passadas). Aos poucos, começamos a perceber a obra do artista como uma contundente declaração sobre o mundo. Se isso pode parecer indispensavelmente óbvio para qualquer trabalho consistente, o que salta aos olhos nesse caso é a maneira que discurso e obra se articulam. Sim, pois a construção dos filmes de WKW reflete um olhar muito particular sobre o mundo contemporâneo (mesmo em seus filmes "de época"), e esse olhar é tanto político quanto estético (por ser a estética também uma política, e vice-versa). Para ele, trata-se um mundo onde as pessoas estão escrevendo, constantemente, sua própria história, mas essa história é guiada pelo acaso. Um mundo onde as pessoas se encontram com a mesma facilidade que se desencontram, e cujos destinos são traçados justamente pela gratuidade desses encontros. Os significados são frutos do acaso, parece dizer Kar-wai. O mundo, em si, não significa nada; mas é potência para que possamos injetar paixões e desejos. O mundo é neon.

As remanescências de "Dias selvagens" e "Amor à flor da pele", portanto, vêm guiadas por esse sentimento. Pois se o mundo está em constante movimento, só é possível conferir sentido aos acontecimentos uma vez que eles se tornam passado. E o fruto disso é uma grande celebração (com tons de melancolia, só que uma melancolia que é mais leve que o ar) da habilidade humana de completar internamente lacunas deixadas pela vida externa. Se muitos encaram os filmes de Wong Kar-wai como o triunfo da impossibilidade do amor, é por se endereçarem ao amor com olhos por demais práticos. Quando Chow Mo Wan (Tony Leung) se lembra da mulher que mais amou na vida, é justamente um amor que nunca foi consumado. Mas ao chamá-lo de amor, o personagem de Tony Leung o encara como sentimento, que, como tal, é consumado no sujeito, nunca no outro. A fabulação em "2046" não vem chorar cinzas, mas sim promover, no presente, encontros que não se deram em presentes passados.

Nesse sentido, Chow Mo Wan é o alter ego estético do diretor. O texto de ficção científica que ele cria com lembranças de sua própria vida é análogo ao quê o diretor faz com seus personagens (e a personagem herda, do diretor, a capacidade de dobrar todo e qualquer gênero a uma visão de mundo - antes os filmes de ação, a comédia, o melodrama, o wuxia, e agora a ficção científica). Assim como ele mistura futuro com passado para conferir sentido ao presente (presente que é muito efêmero, pois a compreensão só é possível em retrocesso), Wong Kar-wai costura os cotovelos de seus personagens uns nos outros, com linhas frágeis o bastante para se partirem com facilidade, mas grossas o suficiente para deixarem marcas que nunca cicatrizam. E ter contato com obras de arte que refletem tamanha fé do realizador em seu próprio estatuto é, no mínimo, acachapante.

Não à toa, a carreira de WKW é idêntica à sua obra (e por isso "2046" é síntese estética de uma percepção prática). Pois sua crença no acaso e na ficção como organizadora (nunca censora, sempre complementar - são olhos que pertencem a um outro tempo) desse acaso é tão grande que seu método de produção (realizar metade de um díptico que, quinze anos depois, se tornaria a primeira parte de sua mais célebre trilogia - reorganizando o passado, portanto) nos parece o único coerente. Porque assim como Wong Kar-wai não poderia criar de outra maneira que não com o acaso, sua obra toda depende que significado e significante se tornem uma só coisa. Por isso o comentário, tão comum, de que ele seria responsável por alguns dos melhores enquadramentos do cinema contemporâneo é redutor (embora certamente justo); pois significar, para seus quadros, é verbo intransitivo. Suas imagens não funcionam para ou a partir de sua narrativa, suas imagens são a sua narrativa. Não se trata, portanto, de um cinema calcado em roteiro, mas também não é um cinema que exclui o roteiro para resgatar a pureza das imagens: suas imagens são seu roteiro, e seus roteiros vêm de suas imagens. O resultado (de precisão e riscos impressionantes nesse último filme) atinge um equilíbrio deslumbrante (pleonástico, de fato) entre a complexidade do discurso artístico e o diálogo com o público.

Muito desse equilíbrio parece vir de uma crença anterior que é essencial: não existe cineasta antes do artista. É por isso que suas obras-de-arte são a confluência de todas as outras artes (confluência essa que está na gênese do cinema). A arquitetura sempre presente, mas levada a novo patamar nos cenários futuristas do livro dentro do filme (com a parceria inestimável de William Chang, diretor de arte e montador de confiança de Kar-wai); o texto precioso que ele espalha na boca de seus personagens e em suas particularíssimas cartelas; o design (sua primeira formação acadêmica) de seus enquadramentos e da paleta de Christopher Doyle (que rompe uma parceria de longa data com o diretor ao lançamento do "2046"); a plasticidade de rostos e corpos que circulam pelo outro lado do mundo, mas que já nos são tão íntimos por conta de seus filmes; e a música, aqui ressucitando Nat King Cole e a onipresente "Perfídia", que reflete (tratando-se de Kar-wai, em espelho enferrujado) um mundo que não acredita em fronteiras, pois coisas tão importantes como a arte e o ser (e tudo que surge do encontro dessas duas coisas; encontro de dois seres; amor, afinal) não podem ser subjugados a meras formalidades geográficas. E todos esses elementos refletem uma única visão, porque essa visão não é a de um cineasta, mas a de um artista. É uma posição sobre o mundo, não sobre um meio.

"2046" é mais uma obra-prima de um artista que quase só lançou obras-primas. Filmes que - como seus próprios personagens - se esbarram e se separam ao sabor da lembrança do espectador, e cujos planos também são potência, esperando uma dose diferente de significado e afeto. Os rostos que se misturam, os nomes que reaparecem, os adereços que trocam de corpos, tudo isso é a reticência que o diretor se permite colocar em uma obra onde não cabem pontos finais. Pois somos como seus personagens, e Wong Kar-wai tem plena consciência que seus filmes também se tornam memórias a serem reorganizadas e completadas pelos criadores que, diariamente, somos.

5 comentários:

Anônimo disse...

que bonito. não é por nada não, mas gosto mais do que a monografia, acho que aqui estás falando do que gostas do jeito que gostas.
e o pior é que o filme é tão foda, que a gente acaba de ler e pensa: não acredito que o fábio não falou disso! é... o filme nunca acaba.

abraço,

juliano

Fábio Andrade disse...

concordo, meu caro. na monografia eu tinha que comprovar academicamente uma impressão técnica. aqui é falar sobre o que me emociona mesmo. e mesmo assim tive que me segurar, senão saía um blog inteiro só de kar wai.

Atmosfeerica disse...

belo texto!
ainda não vi o 2046, só os anteriores. quem sabe hoje..

mario
cinepucbro

Anônimo disse...

Belo texto para um belo filme. Muito boa sua lista dos 10+ (não vi todos, mas uma boa parte, hehe). Aguardo agora a lista dos melhores discos.
Abraços.

Anônimo disse...

Adoraria ler sua monografia.