sábado, fevereiro 03, 2007

Melhores de 2006


02 - O sabor da melancia - Tsai Ming-liang

Nos primeiros planos de "O sabor da melancia" (Tian bian yi duo yun), Hsiao-Kang (protagonizado por Lee Kang-sheng - rosto costumeiro dos filmes de Tsai Ming-liang) está deitado na cama com uma mulher que traja metade (a de cima) de uma fantasia de enfermeira. A dinâmica do plano mimetiza preliminares sexuais, mas, entre as pernas, a mulher se esconde atrás de uma melancia partida ao meio. A cena prosseguiria como uma típica encenação sexual cinematográfica, não fosse a melancia que media (e impede) o contato do casal. Alguns minutos depois, uma outra garota (Shiang-chyi - nome tanto da atriz quanto da personagem) abraça, com as pernas (aperna?!?), uma almofada em formato de flor enquanto assiste televisão. O telejornal dá as regras do jogo: Taiwan estaria passando por um enorme período de seca, e a falta de água teria feito o consumo de melancia aumentar exponencialmente. Como a oferta da fruta era enorme, o preço havia caído muito, e ela acabara se tornando um novo signo de comunicação entre as pessoas: quando os jovens mais tímidos queriam se aproximar de uma garota, davam uma melancia de presente para indicar o desejo de intimidade.

Se as regras do jogo são dadas, é preciso aceitá-las para seguir viagem. Ao declarar novos símbolos como guias do trajeto (a água que está em falta, sendo substituída pela melancia - água que se tornou carne - não só para matar a sede, mas também para que as pessoas possam se relacionar - como na cena de sexo que abre o filme), Tsai Ming-liang pede que abramos mão de todas as convenções que carregamos conosco para a sala de cinema. Os signos serão redefinidos no decorrer da obra, portanto é mister abandonar códigos de qualquer mundo onde a água não falte, e a melancia não signifique mais que - ora - uma melancia. A oposição entre água - uma essência que estaria em falta - e melancia - fruto que trás água em si, mas que não substitui a água em toda a sua plenitude - é a chave para começar a se compreender mais esse enigma criado pelo artista de origem malaia, radicado em Taiwan. "O sabor da melancia" é um grande jogo de tensões. Líquido e sólido. Essência e carne. Origem e derivação. Música e silêncio. Drama e comédia. Reta e círculo. Espírito e corpo.

O filme se concentra em dois personagens principais (retirados, a propósito, de filmes anteriores do diretor). Hsiao-Kang é um ex-vendedor de rua que se tornara ator de filmes pornográficos; Shiang-chyi mora sozinha no mesmo prédio em que o último filme de Hsiao-Kang está sendo produzido, e passa boa parte do tempo estocando garrafas d’água e tentando abrir uma mala cuja chave foi acidentalmente prensada no asfalto da rua em frente ao prédio. A geografia de Tsai, porém, é a do isolamento. A plasticidade de seus corredores e passarelas - sempre filmados com grande-angular - separa as pessoas, o que só faz destacar os momentos onde as personagens se encontram. E é quando Shiang-chyi reencontra Hsiao-Kang, e passa a carregar para todo lado uma melancia como se fosse um bebê, que começamos a entender o filme de Tsai Ming-liang. A pornografia, em "O sabor da melancia", não é gratuita. Está lá como contraponto (como melancia) à relação que começará a ser desenvolvida por Hsiao-Kang e Shiang-chyi. O sexo não é visto de maneira depreciativa; apenas anda sendo tomado por algo que não é (ou por uma parte do todo). É necessário restaurar o contato, a proximidade, pois as pessoas se tocam sem realmente encostarem umas nas outras. E é exatamente nessa relação que o filme floresce.

Apesar de o simbolismo causar uma curiosa estranheza visual (ainda mais por estar reconfigurando signos que têm um significado no mundo fora da tela), duas pessoas que se apaixonam, se apaixonam sempre da mesma maneira. As cenas do casal (tomadas por uma leveza que não encontramos, sequer, nas mais convencionais comédias românticas hollywoodianas - sem falar nos encantadores números musicais) são infiltradas por esses objetos que, uma vez assumidos como signos, ganham uma expressividade acachapante. Cenas como a que Shiang-chyi serve suco de melancia (melancia em formato líquido - corpo travestido de espírito - sexo que tem aparência de amor) a Hsiao-Kang, ou a que ele consegue tirar a chave dela do asfalto (fazendo jorrar água do buraco deixado pela chave no pavimento - chave de uma mala que ela trancou e não mais tem a ferramenta para abrir) se tornam tão mais belas por sua visualidade simbólica. Em todos os momentos onde o sexo é explícito (em um deles o casal de atores faz uma cena no banheiro, e um contra-regra joga água suja sobre os atores para fingir que o chuveiro funciona - simulando também o amor, mas um amor que não é real, não é cristalino, um simulacro), os corpos aparecem frios, desanimados. A sexualidade não é questão de visualidade, mas sim de intenção. As longas cenas de sexo nunca trazem o calor do copo de suco oferecido por Shiang-chyi (que Hsiao-Kang joga pela janela, pois, como ator pornô, não agüenta mais ter melancia como se fosse água), e essa capacidade de reorganizar o mundo é o que mais impressiona em "O sabor da melancia".

Essa reorganização, porém, demanda um pacto. O filme de Ming-liang conta com uma entrega voluntária do espectador, e isso explica o número alto de pessoas que não conseguem chegar ao final do filme (mesmo ele não tendo sequer duas horas). Se Ming-liang chama o amor de água e a paixão de melancia, é porque andamos fazendo uma bagunça enorme com termos tão abstratos. É preciso torná-los concretos para resgatar seus significados. A radical reconfiguração proposta pelo diretor chega ao ápice na cena final do filme. Pois só quando despimos as essências de todas as suas aparências uma cena de quase necrofilia (que chega perto de ser fisicamente insuportável de se assistir) pode guardar o mais puro final feliz que passou pelas telas da cidade em 2006. O encontro final de Hsiao-Kang com Shiang-chyi acaba sendo o primeiro encontro de fato do casal: o amor rompe as limitações físicas (sensação criada pelo quase split-screen da janela na parede do quarto), as convenções impostas pela aparência, e Shiang-chyi - a garota que guardava dúzias de garrafa d’água na geladeira, mas continuava servindo suco de melancia a seu amado - deixa escorrer uma lágrima. A água revela sua fonte, e, no meio disso tudo, aprendemos a amar novamente.


4 comentários:

Anônimo disse...

"aperna" é uma boa opção, mas eu usaria "emperna"...
de todos os posts sobre os filmes, esse, definitivamente, é o que mais cria vontade no leitor de assistir.

Anônimo disse...

THE TASTE OF THE WATERMELLOW!!!!

Desde Batman e Robin eu não tinha tanta vontade de sair no meio de um filme, como eu tive neste!

O filme iria ser muito melhor se o ator que faz o ator pornô fosse o Peter North!

Mas realmente entendo porque você gostou do filme. Só não é pra mim.

Rafael disse...

Tá aí um filme que nunca irei ver.
Sou mais ver Apocalypto de novo.

Fábio Andrade disse...

quem perde é você, ora...