sábado, outubro 06, 2007

Festival do Rio – Dias 11 e 13

Pulei a terça-feira para comemorar os 10 anos de vida ao lado de minha Clarissa. Poder celebrar esse dia com ela foi viver o melhor filme que o festival nunca poderia passar. Agora, basta de intimidade.

DIA 11

Paranoid Park - Gus Van Sant




É padrão bastante recorrente no mundo do rock que bandas que sentem ter dominado um determinado gênero (e, normalmente, tenham sido bem sucedidas nele) alcem vôos tortuosos em discos movidos pela dissonância, pela necessidade de provar versatilidade e amadurecimento musical (ambas coisas bastante discutíveis, mas parto, aqui, do que me parece o ponto de vista desses artistas nesses momentos específicos). Podemos pegar os exemplos mais diversos; de Face to Face a Radiohead, de Yellowcard a Get Up Kids, de Cardigans a Saves the Day - é extremamente comum vermos compositores bem sucedidos (em especial, na música pop) abandonarem a base evidente de suas carreiras por essa auto-afirmação artística (por vezes sinal de liberdade; por outras, evidência de que a “maturidade” é conceito tão definido e previsível quanto o seu oposto). Mais comum ainda é que esses discos mais “autorais” provoquem uma cisão bastante clara com os antigos fãs, e que os mesmos artistas que haviam promovido essa mudança sintam a necessidade (e não discuto motivações) de retornar àquilo que os fez populares. Em alguns casos, esse suposto retorno vem com sabor de ressaca, e parece apenas mimetizar trejeitos do passado com a esperança de recuperar algo perdido no processo. O acesso de liberdade se torna, portanto, raiz de uma irremediável perda. Um velho em roupas de jovem. A morte da inocência. Em outros casos (e são esses que mais me interessam), o retorno se completa melhor etimologicamente, e vem temperado pelo aprendizado proporcionado pela guinada anterior. A vida como círculo, não como linha reta. Um tempo canino, diria. Uma vez que não exista mais o que provar a si mesmo, a liberdade de escrever boas canções retorna com uma força impressionante. Saem daí, comumente, os melhores trabalhos das carreiras desses artistas.

Em torta analogia, esse me parece o caso de Gus Van Sant. Após mergulhar de olhos bem abertos na frieza encantada do cinema de dispositivo da trilogia “Gerry”, “Elefante” e “Os últimos dias”, o que haveria ainda a ser provado? Uma vez que a exploração dos cruzamentos possíveis entre tempo e espaço tenha sido praticamente esgotada pelo diretor, como continuar? Que disco fazer? Gus Van Sant fez “Paranoid Park”; posivelmente, sua obra-prima.

Havia cortado “Paranoid Park” de minha lista de intenções ao saber que o filme seria exibido no festival em cópia digital. Conhecendo as condições de projeção do circuito digital carioca, preferi aguardar para ver o sempre estupendo trabalho fotográfico de Chris Doyle (provavelmente o melhor fotógrafo em atividade no mundo, só encontrando paralelo em outros gênios da luz como Roger Deakins e Lee Ping Bing) em condições mais apropriadas, quando o filme fosse lançado (pelo que sei, já está comprado para exibição) com cópias em 35 mm. Até que um acidente com a cópia digital impediu sua exibição, e a distribuidora enviou para o Rio uma bela cópia em película (e, reza a lenda, a circulação comercial, sim, será feita somente em digital). Essa mudança de planos obrigou-me a, com muito gosto, alterar meu roteiro e abrir um espaço para, a tempo, pegar a última exibição de “Paranoid Park” no festival. Ah, as linhas tortas!

Muitos dos dispositivos que marcavam a trilogia anterior (os longos planos de caminhada, a manipulação do tempo narrativo, o estado flutuante da mise-en-scène) estão presentes em “Paranoid Park”. A grande diferença, porém, é que se em “Elefante” – por exemplo – a dramaturgia nascia a partir dos dispositivos, em “Paranoid Park” são eles que estão a serviço da dramaturgia. Depois de tanto explorar as esquinas dissonantes da composição, nada mais reconfortante do que simplesmente sentar e escrever canções pop novamente, certo? Em termos, sim. “Paranoid Park” é tão interessante estética e dramaturgicamente quanto os filmes imediatamente anteriores de Van Sant, com a diferença de que sua fruição imediata me parece muito mais suave (ainda encontro pedaços de “Elefante” entalados em minha garganta sempre que sinto sabor semelhante em outras obras). O último filme de Gus Van Sant é tão próximo de “Os últimos dias” quanto de “Drugstore Cowboys”, e ao mesmo tempo parece trazer a seu cinema elementos absolutamente novos. Filme síntese como poucos o são.

Paranoid Park é o nome de um mítico skate parque em Nova York, uma espécie de Moby Dick para jovens skatistas. Construído e habitado por tipos tidos como marginais, Paranoid Park é o misto perfeito de sonho e pesadelo de garotos de classe média. Uma espécie de ritual de iniciação, mas também a evidência da entrada em um mundo menos seguro, menos previsível. “Ninguém nunca está preparado para o Paranoid Park”, diz um dos garotos do filme. Tomado pela curiosidade que o medo aguça, Alex dribla todas as suas relações (família, namorada, amigos e, posteriormente, a lei) em nome de uma primeira noite no Paranoid Park. Não vemos Alex andando de skate; sabemos que seu interesse no parque é mais mítico do que prático. É preciso estar ali. Tornar-se um deles. Passar da infância para a vida adulta. Passagem importante mas que, como os acidentados retornos das bandas do primeiro parágrafo, sempre ocasionam a perda de alguma coisa. Alex é aceito pelos locais do Paranoid Park, mas, no processo (e, definitivamente, é assim que o filme encara o acontecimento), mata uma pessoa (muito propriamente representada no filme por um segurança – figura bastante clara de autoridade, de limites).

Alex passa a ser procurado em sua escola (signo também bastante claro das amarras da infância) por um detetive que investiga o crime. Para compreender seu trauma, segue o conselho de uma amiga e escreve sobre o que aconteceu. Não conta seu segredo a ninguém; apenas escreve sobre ele. Não basta viver, é preciso contar, reinterpretar, reorganizar. É o texto de Alex que nos guia. Não seria ele, também, o filme que Gus Van Sant vem fazendo desde sempre? Não estaria o cinema de Gus Van Sant ancorado na necessidade de dar conta dessa transição da infância para a vida adulta? Não seria Gus Van Sant (e, ora, todos nós) irremediavelmente marcado pelo rompimento dos dogmas da infância (se aproximando muito, curiosamente, do universo de J.D. Salinger), e seu cinema não mais que a tentativa de extrair algum sentido desse choque pela ficcionalização? Com “Paranoid Park”, o diretor parece dar mais um passo nesse sentido. Poucos artistas olharam para o universo jovem com a generosidade e o interesse de Gus Van Sant. A tentativa de perceber o que se perde na adolescência (e seu cinema também fala muito sobre o que se ganha) pode estar fadada ao fracasso, mas Van Sant – como as expressivas correções de diafragma que Doyle explora maravilhosamente no filme – nos lembra que é preciso sempre reajustar o olho para olha-la melhor. Em algum momento, talvez enxerguemos, de fato, alguma coisa nova, e tudo passe a fazer um pouco mais de sentido.

DIA 13

Go Go Tales - Abel Ferrara



Todo ano me percebo inabalado por uma obra que parece ter tocado grande parte da crítica que mais me interessa. Ano passado foi a exibição de “O hospedeiro” no Festival do Rio (o filme foi exibido comercialmente este ano, e certamente acabará em várias listas dos melhores de 2007), de Bong Joon-ho, que me chegou de maneira diferente. Onde muitos viam um sopro de vida no cinema de gênero eu percebia uma certa falta de fé; nos momentos em que muitos riam de uma sátira política supostamente bem elaborada, sentia um nariz em pé, um deboche meio feio e ineficiente. Este ano, “Go Go Tales” acabou sendo a minha ilha de desapontamento.

O último filme de Abel Ferrara se parece, em alguns sentidos, com “A última noite”, filme de Robert Altman que reevoquei ao falar de “Cristóvão Colombo – O Enigma”. Enquanto os travellings de “A última noite” nos conduziam por um fascinante balé dos mortos, em “Go Go Tales” esses mesmos travellings nos revelam carnes bastante vivas. Se no filme de Altman a Prairie Home Companion encarnava a resignação diante da morte, no filme de Ferrara a boate Paradise insiste não deixar que fechem o caixão. O fatídico dia que a câmera decide mostrar traz uma sucessão de infortúnios: Ray Ruby (o dono do clube, interpretado pelo sempre interessante Willem Dafoe) não tem dinheiro para pagar suas dançarinas, seu sócio está decidido a retirar seu dinheiro do clube, a proprietária do imóvel diz não mais aceitar o atraso no aluguel. É nesse mesmo dia, porém, que Ruby ganha 18 milhões em uma trapaça na loteria, comprando um número absurdo de bilhetes. O bilhete premiado, porém, desapareceu.

“Go Go Tales” circula nessa alegoria do empresário de show business como o apostador que compra o maior número de bilhetes possível, trapaceia para ganhar na loteria e, como vemos ao final, continua não tendo dinheiro suficiente para tirar o pé da lama. De certa forma, Ray Ruby é representação viva do empresário, do produtor, da stripper que consegue produzir seu roteiro dançando para um figurão, da indústria do disco que trabalha com margem de 90% de fracasso, esperando que os 10% de sucesso cubram seus gastos.

O problema é que, depois de dadas as cartas, o filme vai ficando meio aborrecido, o desenrolar das situações nunca foge do previsível, e a curiosidade em relação àquele universo logo se transforma em tédio. Tirando alguns bons personagens – cozinheiro de hot dogs orgânicos – e um par de seqüências mais interessantes, o filme de Ferrara me fez pensar em todas as outras coisas que deixei de ver para estar naquela sessão. Sentir frieza de um filme que parece tratar sobre a pulsação da carne me parece, no mínimo, bem estranho. Sensação nunca bem-vinda, mas ainda mais angustiante quando o número de coisas a se ver é muito maior do que o tempo que temos para dividir entre elas.

4 comentários:

Anônimo disse...

opa fabitão,
colocarei aqui no comentário conteúdos pessoais que muito bem poderiam ser mandados por emelho, mas faço cá só pra descer um sarrafo no andré.

primeirissimo de tudo, parabéns pra clarissa! dá um abração nela.

segundo de tudo, quase chorei com tua mensagem naquele dia. só pelo recordo. já me vale muito. mesmo.

parabéns pelo driving music. tá lindo. até a patroa curtiu. mando comentos depois que sentar, catar tudo, ouvir com cuidado. fazer aquele faixa-a-faixa.

de resto, correria. to pra te mandar uma carta. vê se não faz como o andré e me responde - nem que seja um email.

tá?


abraço rapaz.
te amo,
jorgim.

Anônimo disse...

Fábio,

uso o espaço só pra comentar o comentário malvado do Jorge: tá um inferno aqui. os selos estão guardados. sua carta chega, assim que conseguir reunir alguns dos meus outros pedaços.

sei que devo, nunca que neguei.

mas há os que hás... e isso dá um trabalho terrível.

quanto do texto do fábio: rara maturidade nos media blogueiros.

Anônimo disse...

lido.

Anônimo disse...

Tenho a impressão de que não só vimos os mesmos filmes, como também os vimos nas mesmas sessões...

Mas conseguiu pegar o "I'm Not There"? Comente-o aí.