domingo, setembro 23, 2007

Festival do Rio – Dias 1 e 2

Estava tentando evitar a idéia de fazer uma cobertura filme a filme do festival por aqui. O problema é que saio de cada sessão cheio de idéias sobre o que vi, e tomado pela vontade de organizar essas idéias de maneira mais sólida e coerente. A única forma que conheço de fazer isso, porém, é escrevendo. Começo, então, esse diário de bordo (embora já traia, de cara, seu título, ao acumular dois dias em um só, e jogar o hoje para amanhã) com essa finalidade. Apenas impressões sobre filmes que acabei de ver e que gostaria de compartilhar com vocês.

DIA 1

Uma moça dividida em dois (La fille coupée en deux) – Claude Chabrol



Claude Chabrol está entre os diretores da nouvelle vague francesa que menos conheço. Assisti a alguns de seus filmes mais recentes, mas nada que me ajudasse a configurar uma idéia mais ampla de qual seria seu projeto estético, suas questões. Confesso, porém, que não havia me encantado com nenhum dos filmes que assisti. Seu lançamento anterior – o elogiado “A comédia do poder” – sustentara meu interesse em ondas bastante irregulares e, embora o considere um bom filme, sua morosidade não me era convite tentador para investidas futuras.

Mas a conveniência propiciada pelo Festival de poder emendar seu novo filme em “Síndromes e um século”, em um cinema que fica literalmente em frente à minha casa, acabou me seduzindo à sala, e me convencendo a começar o Festival por um filme que sequer constava em minha lista de intenções.

“Uma moça dividida em dois” começa com um cromatismo já impressionante: um passeio de carro onde toda a imagem é tingida de vermelho, enquanto, na banda sonora, ouvimos uma peça de música erudita. Logo que as cores tomam seus lugares tradicionais, o carro pára e continuamos ouvindo a música que nos acompanhou pelos créditos iniciais. Uma mão entra em quadro e, pacientemente, espera que a música acabe para que possa desligar o rádio. É com esse pequeno gesto – uma mão esperando uma música acabar, não querendo ferir a diegese criada por aquela música junto àquele passeio de carro – que Claude Chabrol, nos primeiros minutos de “Uma moça dividida em dois”, me ganha por completo. Alguns filmes correm horas sem conseguirem sequer sentar ao meu lado. Em um bom filme, como é o caso de “Uma moça dividida em dois”, um pequeno gesto de identificação (parar uma música antes de ela chegar ao fim me é experiência dolorosíssima) pode ser a chave que o leva ao espectador.

“Uma moça dividida em dois” divide Gabrielle (Ludivine Sagnier) entre o amor incondicional pelo escritor Charles Saint-Denis (François Berléand) e o galantismo do playboy Paul Gaudens (Benoît Magimel). Jovem jornalista com carreira em lenta (mas promissora) ascensão, Gabrielle é, ao mesmo tempo, cortejada pela sofisticação sedutora (embora um tanto cafajeste) de Charles, e a inconseqüência brincalhona (mas, como toda inconseqüência, desmedida e um pouco assustadora) de Paul. Charles tem uma carreira de extremo sucesso e um casamento que não demonstra intenções de abandonar. Paul vive das rendas da família – que é dona de um grande laboratório – e sente ódio mortal, embora pouco explicado, por Charles.

Se a trama traz à discussão uma certa ilusão de moralidade sabiamente problematizada por Chabrol, são os pequenos gestos – como o do início do filme – que fazem de “Moça” um belo filme. Gestos que denotam um controle exímio de mise-en-scène: não há, em todo o filme, um corte que não seja de absoluta expressividade; um movimento de câmera que não tenha um significado dramatúrgico bastante claro; duas seqüências que não sejam conectadas pelo ponto de corte que parece o mais preciso possível. É nessa carpintaria de mise-en-scène que Chabrol me conquista; carpintaria que, embora extremamente eficiente, nunca se perde em descabida exuberância.

Síndromes e um século (Sang Sattawat) – Apichatpong Weerasethakul



Embora tenha chegado ao Rio com um ano de atraso (o filme foi exibido na Mostra de SP do ano passado), “Síndromes e um século” era um dos títulos que mais ansiava poder ver nesse festival. Não é todo dia que temos a chance de ver, em película, um novo filme de um jovem realizador vindo de um canto do mundo sem grande tradição cinematográfica no ocidente (no caso de Apichatpong, a Tailândia) e que, com apenas 37 anos, já tenha realizado ao menos duas obras absolutamente determinantes para o cinema de sua época (“Eternamente sua” e “Mal dos trópicos” – os únicos filmes de Apichatpong que já tive chance de assistir).

O que tanto impressiona no cinema de Apichatpong (ou Joe, como é muitas vezes referido por ocidentais) é que, embora ele seja um cinema de enigmas (as viradas radicais de ambientação e roteiro em “Mal dos trópicos” e “Síndromes e um século” não me deixam mentir), a racionalidade pouco serve como ferramenta de solução. Seus filmes pedem um embarque do espectador, mas é um embarque essencialmente emocional; diria até sensorial. Filmes que entortam tempo, espaço, tradição, movimento, misticismo, narrativa; tudo isso para construir um universo maravilhoso e novo, que Apichatpong nos convida a experimentar por pouco menos de duas horas (mas que desejaremos durar para sempre).

Difícil encadear em texto, portanto, impressões de um filme que desconstrói a própria idéia de encadeamento. Após um plano de copas de árvores que posam frente ao céu (seria uma forma de Apichatpong conduzir o espectador da mata que toma a segunda parte de “Mal dos trópicos” para um novo ambiente, como o corpo encontrado nos primeiros planos de “Mal dos trópicos” parecia vir de “Eternamente sua”?), “Síndromes e um século” começa em um hospital rural. Uma médica entrevista um ex-soldado que quer trabalhar no hospital. Aos poucos descobrimos que, entre outras coisas, o candidato tem pavor de ver sangue. São desses extraordinários questionamentos de figura que nascem os personagens de “Síndromes e um século”: um médico que tem medo de sangue, um dentista que gostaria de ser cantor, um velho monge que maltrata galinhas e tem sonhos que se tornou uma delas, um florista que criou uma orquídea que brilha no escuro, um jovem monge que gostaria de ser dj e compreende sua santidade como a obrigação de vestir trajes açafrão, o paciente que joga tênis sozinho no corredor, a médica que esconde garrafas de bebida em próteses ocas. Personagens tão interessantes e pouco-explicáveis como a antológica cena do aparelho hospitalar que suga fumaça do ambiente, e aos poucos parece também ir sugando o espectador para um outro mundo.

Apichatpong parece, o tempo todo, querer nos dizer que a vida é bem mais complexa do que nossa simples razão pode compreender. Essa reconfiguração completa acontece tanto em termos narrativos (a história que, até a metade do filme, habitava um hospital campestre, migra-se para o ambiente urbano com a falta de consideração de um corte seco) como de linguagem (basta um pad grave de sintetizador tomar a banda sonora para que o iluminado hospital da cidade ganhe um ar de mistério, de suspense). Mais impressionante, porém, é que “Síndromes e um século” nos diz isso com um humor e uma leveza raríssimos no dito cinema “de arte” contemporâneo (talvez só encontrando paralelo em Tsai Ming-liang). Sim, pois parte do discurso de Apichatpong é que o mundo é maravilhoso em seu enigma, e que devemos receber esse enigma com um sorriso, e nos deixar levar. Nada mais apropriado que essa celebração termine como o faz: em uma extraordinária sessão coletiva de aeróbica em praça pública, onde um garotinho transita em meio aos adultos, e imita seus movimentos. Movimentos gratuitos, que, enquanto aeróbica, tem como único fim o próprio ato de se movimentar.

DIA 2

À prova de morte (Death Proof) – Quentin Tarantino



Embora eu costume evitar filmes já comprados para exibição comercial durante os festivais, “À prova de morte” me parecia inadiável. Apesar de o lançamento no Brasil tenha optado pelo desmembramento de “Grindhouse” em suas duas partes (a saber, essa de Tarantino e “Planeta Terror”, de Robert Rodriguez), a possibilidade de se assistir a um novo trabalho de Quentin Tarantino nunca deve ser deixada para depois. Felizmente, “À prova de morte” vem comprovar minhas fiéis expectativas: Tarantino é um dos diretores mais talentosos, originais e envolventes do cinema mundial, e seu último filme (que dava a impressão de ter nascido como um projeto menor) é tão bom quanto qualquer um de seus predecessores.

Desde “Cães de aluguel”, Tarantino vem filmando o cinema. A cada novo trabalho, o diretor adiciona uma nova camada de exploração do meio cinematográfico (enquanto linguagem, arte, comunicação, iconografia, mitologia moderna), e o díptico “Kill Bill” parecia levar esse projeto ao quase paroxismo. Se, em princípio, “À prova de morte” aparenta chover no molhado (o jogo de referências e auto-referências aparentemente esgotado pela exuberância de seu par de filmes anterior), em poucos segundos de projeção entendemos qual é o novo dado adicionado por Tarantino em seu último filme: a experiência cinematográfica do espectador.

Se, de certa forma, todos os seus trabalhos anteriores já tinham essa preocupação, nunca ela chegou tão à superfície (e nunca foi tão complexa) quanto em “À prova de morte”. Superfície de fato: uma das preocupações de Tarantino em seu último filme é com a relação do espectador com a celulóide, a película que carrega as imagens que são projetadas na tela do cinema. Uma primeira questão de “À prova de morte” é a influência cultural do artefato visual que é a película cinematográfica. Os primeiros rolos do filme são propositadamente sujos, riscados, com fotogramas faltando (e o urro da platéia masculina com a interrupção brusca da lap dance de Butterfly foi uma das mais impressionantes manifestações de interatividade com um filme que já vi), com grosseiras orientações de troca de rolos, e incluem até mesmo um acidente de projeção (a inclusão de um rolo preto e branco no meio do filme, como que enviado para exibição por uma distribuidora pouco cuidadosa). Muito mais que um jogo com o espectador, Tarantino traça um quase tratado sobre a percepção do espectador em relação ao papel afetivo da materialidade do cinema (como a inevitável estranheza pela ausência de batimento da legenda em projeções digitais, por exemplo), e como o meio material influencia na fruição artística dos filmes.

A segunda, e mais profunda, camada de análise do espectador em “À prova de morte” está na maneira de se filmar. Tarantino filma toda e qualquer coisa com envergadura de fetiche. Os pés das atrizes, os carros, as canções, o uniforme de cheerleader, os diálogos, as bundas, os amarelos, o sangue, as cenas de ação; tudo que vai à tela em “À prova de morte” é filmado como iconografia já consolidada. Impressionante, portanto, essa capacidade de Tarantino de conferir às imagens um estatuto que, a princípio, só o tempo e a memória afetiva pareciam capazes de conferir. O mais assustador de “À prova de morte” (mais que em qualquer outro de seus filmes) é a percepção de que a história da iconografia contemporânea está sendo escrita às suas vistas, e de que tudo que vemos na tela será tomado como referência de nossa época com o passar do tempo (as várias referências a “Kill Bill” são prova irrefutável de que Tarantino é, realmente, tomado por essa crença). Pretensão maior que o mundo, mas que é executada de forma leve e natural, como se fazedores de imagem produzissem imaginário como os pedreiros empilham tijolos.

2 comentários:

Anônimo disse...

O site do DVM tá uma lindeza, cara. Parabéns pra você e pra Cacá.

Agora eu quero comprar minha camisa!

Anônimo disse...

Os posts sobre cinema sempre me trouxeram o desejo de assistir os filmes. não foi diferente com os atuais posts. ando gostando da sua volta ao abuso dos parênteses.

o site não tem aberto. tentei em duas circunstâncias diferentes, em máquinas diferentes, nada.

abraço