sábado, setembro 29, 2007

Festival do Rio – Dias 5 e 6

DIA 5

O estado do mundo – Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz, Aiysha Abraham, Wang Bing, Pedro Costa e Chantal Akerman




Filmes coletivos são via de mão dupla. Por um lado, temos a linha que forçosamente os conecta, adequando os projetos individuais a um projeto de produção maior, externo. Por outro, temos a chance de ver pequenas amostras de trabalho de diferentes realizadores, aumentando a chance (e isso se torna especialmente importante em um festival) de que a sessão não seja um desastre completo. Quando um filme coletivo traz, porém, nomes como Apichatpong Weerasethakul, Pedro Costa, Wang Bing e Chantal Akerman, a chance de pequenas epifanias individuais cresce exponencialmente. São eles, confirmo após assistir o filme, que dão as cartas em “O estado do mundo”, jogando para o limbo os fracos episódios de Aiysha Abraham e do brasileiro Vicente Ferraz (ao lado de trabalhos tão interessantes, seu “Germano” chega a ser francamente constrangedor).

“Luminous People”, o filme de Apichatpong Weerasethakul, abre o coletivo com um misto de ânimo e desapontamento. Ânimo por usar a textura do vídeo digital de maneira bastante expressiva (e o digital é uma questão importante em “O estado do mundo”), gerando alguns belos momentos visuais. Desapontamento por Apichatpong rezar, aqui, uma cartilha de cinema experimental muito definida, pouco ousada. Se em seus longas o diretor tailandês promove um choque desconcertante entre o cinema narrativo e o francamente experimental, em “Luminous people” ele cai para a seara das vídeo-instalações (nicho em que Apichatpong, inclusive, trabalha com freqüência), o que não seria problema se o diretor não se limitasse ao protocolar. Trouxe-me à mente uma fala de Jeff Tweedy (o homem das palavras do Wilco) em entrevista à Pitchfork, em que dizia que a música experimental é, de fato, o estilo que menos se transformou ao longo do tempo. Experimenta-se sempre de maneiras semelhantes, gerando o paradoxo da música (ou do cinema) experimental enquanto gênero.

“Brutality Factory” de Wang Bing começa com o balançar de uma câmera que sobe as escadas. Pouco depois observamos um homem dormindo em uniformes militares. No contracampo, vemos que uma mulher é torturada por oficiais chineses. Essa primeira seqüência resume bastante bem o que interessa no curta de Wang Bing: o uso do extracampo. Com um processo constante de seleção e reenquadramento, Wang Bing usa o tema da tortura para falar sobre a tirania do enquadramento, nos lembrando que a possibilidade de mostrar alguma coisa é, sempre, também a possibilidade de esconder uma outra coisa. Exercício que já gerou belos longas metragens (em termos de extracampo, “O buraco”, de Tsai Ming-liang, vem à mente como obra-prima do cinema recente) e que sustenta a curta duração de “Brutality Factory” sem nunca parecer uma simples operação de questionamento de registro.

Não assisti ao supra-comentado “Juventude em marcha”, de Pedro Costa, exibido no Festival do Rio do ano passado. Do diretor, conheço “Ossos” e “Casa de lava”; filmes que me interessam até certo ponto, mas nunca chegam a me arrebatar. Ainda não tinha, portanto, presenciado a guinada do diretor português em direção ao vídeo digital, e seu episódio em “O estado do mundo” acabou me impressionando muito mais que os longas do parágrafo anterior. A beleza e inventividade que Costa arranca do vídeo digital – tanto nos enquadramentos quanto na maneira de iluminar as cenas – é realmente desconcertante, e o universo que ele explora em seu “Tarrafal” – os estrangeiros exilados e marginalizados na Europa – foge habilmente da arapuca dos grandes temas. “Tarrafal” é uma belíssima pequena peça de cinema, e faz com que minha curiosidade por “Juventude em marcha” só aumente. Mais que tudo, é exemplo de um diretor que parece só ter ganhado na transição da película para o vídeo digital. Como acontece com Jia Zhang-ke, a proposta de Pedro Costa parece mais particular quando vista através dos pixels, e aquilo que me parecia um cinema de planos médios meio standard (caso de “Ossos”) ganha uma expressividade única no novo formato.

O melhor, porém, foi guardado para o final. “Tombeé de nuit sur Shanghai”, da cineasta belga Chantal Akerman, é um verdadeiro monumento. Com uma abordagem absolutamente minimalista – uma câmera digital em um tripé apontada para partes da cidade – Chantal consegue repensar toda a história do cinema em meia-dúzia de planos. Filmando objetos triviais que foram reconfigurados pela tecnologia (o barco e os prédios cobertos por telões luminosos), Chantal explora as propriedades do digital à cor e à luz com resultados semelhantes às telas de Turner ou Monet. Além de interessar pela maneira de olhar, o filme de Chantal Akerman traz à superfície da imagem muitas das intenções primeiras do cinema: várias das imagens projetadas nos telões dos prédios do plano final, por exemplo, são imagens da natureza (pássaros voando, peixes nadando, etc). Se nos lembrarmos que o cinema foi criado, antes de qualquer coisa, como registro de estudo da natureza, uma imagem como a do barco-tela se torna absolutamente sintética: o barco, produto humano que traz em si a imitação de habilidades animais, se torna também tela, e reflete imagens ligadas muito intimamente à essência de sua criação. É com esse filme circular e infinito que Chantal Akerman faz com que o “O estado do mundo” deixe de ser apenas interessante e se torne absolutamente obrigatório.

Contos de terramar (Gedo Senki) – Goro Miyazaki



“Contos de terramar” conta a história de um parricida. Se pensarmos que estamos diante do primeiro longa metragem do filho de Hayao Miyazaki, um dos mais essenciais artistas de nosso tempo, a opção de se começar a partir do assassinato do pai é bastante animadora. Infelizmente, o parricídio é exatamente o que não se confirma nesse primeiro longa de Goro Miyazaki (e meu gosto por piadas fáceis me obriga a chamar o rapaz de Gozo Miyazaki).

A adaptação de uma história em quadrinhos do pai (por sua vez realizada a partir da obra de Ursula K. Le Guin) traz um traço de honestidade naquilo que ficará cristalino ao longo de “Contos de terramar”: ao contrário de seu protagonista, Miyazaki filho é extremamente influenciado pelo trabalho de Miyazaki pai. Não seria problema algum se o diretor conseguisse criar algo novo a partir disso ou, no mínimo, realizar um filme tão interessante quanto os trabalhos de seu pai. “Contos do terramar” lembra obras-primas como “A viagem de Chihiro” ou “Porco Rosso” no que eles têm de mais evidente: o traço e a mitologia. Por conta disso, o filme acaba sendo uma mimese desconjuntada do estilo de Hayao Miyazaki, sem os toques de graça que fazem de seus filmes obras essenciais.

Se a sombra do pai é inevitável no traço e na ambientação, é aí que a opção por adaptar uma de suas história se torna imperdoável. Se nem mesmo os aprendizes do mestre da animação caíram nesse mesmo erro no belo “I can hear the ocean” (filme realizado por jovens animadores do estúdio Ghibli que demonstra um vigor enorme na simples mudança do eixo dramático para os relacionamentos de adolescentes), esse primeiro tropeço de Goro Miyazaki se tornou o filme menos interessante que vi no festival. Se não chega a ser propriamente uma decepção (que expectativas poderia eu ter?), é justo coloca-lo como uma curiosidade frustrada. Resta torcer para que ele realmente mate o pai em uma próxima vez.

DIA 6

Eu não quero dormir sozinho (Hei yan quan) – Tsai Ming-liang



Mesmo chegando com um ano de atraso (assim como “Síndromes e um século” e “Sempre bela”, o último filme de Tsai Ming-liang foi exibido na Mostra de São Paulo no ano passado), a chance de ver o último filme de um de meus realizadores favoritos já conferia uma excitação extra ao Festival desse ano. Embora algumas aproximações tenham sido feitas por críticos entre esse filme e seu trabalho anterior menos inspirado (“Goodbye Dragon Inn” , de 2003), recebi “Eu não quero dormir sozinho” com bastante animação.

Logo no início do filme, uma pequena mudança: após consolidar toda sua carreira em Taiwan, Tsai realiza sua primeira obra situada na Malásia, seu país natal. Esse pequeno deslocamento faz uma diferença enorme na composição visual do filme: saem a exuberância de tons de “O sabor da melancia” ou “A passarela se foi”, entra a sujeira e a paleta em tons de cinza da Malásia; troca-se as composições amplas, porém milimétricas, de seus melhores filmes pela desestabilização visual dos cortiços malaios.

Essas pequenas mudanças fazem com que o espectador suspeite, também, de uma mudança narrativa: ao colocar Lee Kang Sheng – ator presente em todos os filmes de Tsai – em dois papéis diferentes, o diretor dá falsas pistas ao espectador (seria esse o primeiro filme não-linear de Tsai Ming-liang? Estamos vendo uma estória, ou duas ou três que correm paralelas?). Esse acúmulo de pequenas mudanças leva a uma mudança mais essencial para a estratégia narrativa de Tsai Ming-liang: se em seus filmes passados o diretor confirmava, a cada plano, a interpretação do plano anterior, adicionando um detalhe à estória, em “Eu não quero dormir sozinho” as peças só encaixam nos últimos minutos. O resultado disso tudo é um filme mais árido, mais denso (e a ausência do extraordinário humor que entoa seus melhores filmes é bastante sentida), aparentemente mais difícil de se compreender. Por conta disso, passei a maior parte de “Eu não quero domir sozinho” oscilando entre a entrega total e o desinteresse. Até que chega o arrebatador plano final (um dos mais belos já filmados pelo cineasta) e tudo passa a fazer um sentido danado.

A estória é simples: Hsiao Kang está com Shiang Chyi (os mesmos personagens de tantos outros filmes de Tsai) na Malásia. Após uma tentativa de ganhar dinheiro fácil, o rapaz é agredido e largado na rua. Ele é acolhido por um grupo de malaios que carregava um velho colchão para o cortiço que dividem. Um deles passa a cuidar de Hsiao Kang, e desenvolve uma notável afetividade pelo chinês. Do outro lado da trama, Shiang Chyi trabalha como ajudante de restaurante. Divide seu tempo cuidando do filho doente (também interpretado por Lee Kang Sheng) da dona do restaurante, e divide seu espaço com essas mesmas pessoas (ela mora no sótão da casa, em cima do quarto do filho).

Mais uma vez, Tsai Ming-liang usará esses fiapos de trama para discorrer sobre o amor e a relação entre as pessoas. A água mais uma vez aparece como representação do afeto: enquanto o jovem malaio passa boa parte do seu tempo lavando Hsiao Kang (e seu colchão, suas roupas, seu apartamento), Shiang Chyi cobre o corpo do rapaz doente de cremes e talcos, em momentos que o afeto flerta constantemente com a violência. A mãe, como os personagens de “O sabor da melancia”, confunde sexo com carinho: obriga Shiang Chyi a masturbar o filho doente, pouco depois de se oferecer para Hsiao Kang num beco ao lado do restaurante.

Todos esses pequenos episódios são somados ao longo do filme, até que, na seqüência final, os elos se tornem claros: depois do acesso de ciúmes do protetor de Hsiao Kang ao vê-lo deitado com sua namorada em seu colchão, um plano cuidadosamente iluminado mostra o casal favorito de Tsai deitado no quarto de Shiang Chyi. Depois de alguns minutos, vemos uma terceira pessoa – até então escondida fora da área de sensitometria da película – se mover no fundo do quadro: é Rawang, o protetor de Hsiao Kang, que divide, agora, a cama com o casal. Por uma fresta no chão, vemos o jovem doente deitado no quarto de baixo. Com um corte de ambientes, agora vemos os olhos do jovem doente, que observa o que acontece no andar de cima. Estaria ele vendo a plenitude do afeto que nunca recebera? Em corte de diegese, Tsai mostra um trecho alagado do prédio em construção que Rawang e Hsiao Kang trabalham. Aos poucos algo surge no topo da imagem: um colchão que flutua sobre a água. Nele estão deitados Hsiao Kang, Shiang Chyi e Rawang. Flutuando ao lado deles, um abajur colorido que Hsiao Kang comprara para sua namorada. É com três corpos que flutuam sobre o afeto que Tsai Ming-liang encerra mais um belo filme, e mostra que seu cinema ainda está longe de se esgotar.

1 comentários:

Diogo Sequeira disse...

excelente blog Fábio. abraços de Portugal