domingo, setembro 09, 2007

O mesmo ar



Deixando uma margem para possíveis exceções apagadas pela seletividade da memória, nunca gostei de discos ao vivo. A maior parte deles sempre pareceu morrer em um limbo entre a eternidade das gravações em estúdio e a instantaneidade insubstituível das apresentações ao vivo. O estúdio é ambiente naturalmente assombrado pela idéia de permanência; o dever de transformar aquele momento no mais representativo possível, pois ele será, de fato, a representação daquela obra. Já o palco não; é o espaço do momento, da partilha. As gravações de shows sempre me pareceram um híbrido fraco das duas pontas; o equívoco de se transformar em definitivo algo que encontra beleza justamente na efemeridade. Em vídeo, esses registros ganham outras camadas. O simulacro permanece simulacro, mas se torna mais rico à medida que incorpora novos elementos (a imagem, a presença, claro, mas também a decupagem, o enquadramento, a montagem). Ainda assim, são raros os vídeos de shows que se tornam extraordinários para além do registro. U2 Go Home: Live from Slane Castle é agradabilíssimo, mas muito mais por registrar um evento extremamente feliz (do setlist à locação) do que por ser um registro criativo desse evento. O dvd de Jeff Tweedy que apareceu em um dos meus tops semanais é o flagrante de um artista extremamente interessante em plena atividade, mas não existe nada em sua maneira de lidar com esse material que torne o registro, em si, também extraordinário. Um vídeo pirata do Face to Face que copiei da falecida Spider permanece, ainda hoje, como um dos melhores shows que já vi – embora tenha sido filmado com uma câmera VHS, frontal, que às vezes ainda arriscava com texturas e efeitos duvidosos, feitos na própria câmera. Já filmes como Don't Look Back (de D.A. Pennebaker) ou Gimme Shelter (dos irmãos Maysles) são obras-primas em seus registros, mas parecem transitar com maior conforto nas filmografias de seus realizadores do que entre as obras musicais de seus protagonistas (Gimme Shelter ou Cocksucker Blues, de Robert Frank, foram, vale lembrar, prontamente enxotados pelos Stones de sua história).

Não seria descabido dizer que o Guster é a melhor banda pop em atividade. Enquanto nomes como Teenage Fanclub ou mesmo Belle & Sebastian deixam impressos em cada acorde seus esforços em alcançar o pop perfeito (muitas vezes – façamos justiça – alcançado), o Guster consegue, por vias muito menos referenciais, realiza-lo sem nunca lascar o acabamento. Em álbuns como Lost And Gone Forever e, principalmente, a obra-prima Keep It Together, o Guster alcança a perfeição inúmeras vezes, mas sempre parecendo chegar lá quase que por acidente. Não sei se o segredo está na formação pouco ortodoxa da banda (até Keep It Together o Guster nunca havia gravado uma faixa com bateria tradicional – substituída sempre pelo kit de percussão de Brian Rosenworcel) ou na falta de referências diretas das composições de Ryan Miller e Adam Gardner (sim, até pensamos em Big Star ou Violent Femmes, mas nunca com a intensidade que as influências afloram no Teenage Fanclub ou no Belle & Sebastian – para ficar nas bandas já citadas), mas o que parece fazer do Guster uma banda extraordinária é justamente sua capacidade de universalidade. Suas canções não são destinadas a nenhum público especial; estão aí para quem quiser ouvi-las. E quando uma banda consegue aperfeiçoar sua proposta no cume absoluto que é Keep It Together (sem dúvida um dos melhores discos da última década), só resta registrar esse momento especial de todas as maneiras imagináveis.

Guster On Ice é o primeiro registro ao vivo da banda. Gravados em Portland, Maine, os primeiros shows (duas noites consecutivas) em que o trio se torna oficialmente um quarteto (com a entrada de Joe Pisapia – até então presente como músico de apoio) foram lançados em um cd, que trazia como suposto bônus um registro em dvd dessas mesmas noites. E, embora eu até hoje não tenha tido interesse em ouvir o cd, o vídeo dirigido pelo talentoso fotógrafo Danny Clinch reina, soberano, sobre todos os outros dvds de música que já se hospedaram em meu player.

O que faz de Guster On Ice especial é uma idéia anterior à realização do vídeo em si. O registro proposto por Clinch se destaca de toda a pasteurização corrente, gerada por anos de padrão Mtv, justamente por perceber o que faz de um show uma experiência especial: a possibilidade do encontro. É claro que estamos todos lá para ver a banda, mas a percepção de Clinch é a de que, independente disso, um show é algo muito maior que uma banda no palco. On Ice começa com um passeio de carro. Ao lado de um fã, deslizamos pelas ruas nevadas de Portland enquanto ouvimos “Careful” – uma das melhores canções da banda – no rádio. Corte para o Guster tocando a mesma canção, no que parece ser uma performance rápida em uma loja de discos (ou seria a apresentação que ouvimos no estúdio de rádio?). E, entre relatos locais do dia em que Elvis tocou no mesmo teatro que abrigará o show e o aquecimento vocal da banda no backstage, o dia se torna noite, e a fila de fãs à porta do teatro começa a aumentar. Uma rádio local entrevista fãs que declaram seu amor pelo Guster, enquanto um outro saca o violão e, ali na fila, puxa a introdução de “Fa fa”. Corte para a banda iniciando o show em raccord da mesma música tocada pelo fã do lado de fora.

Esse prólogo parece condensar tudo que guiará o interesse de Danny Clinch pela próxima hora e meia: o momento (pré e pós incluídos) em que todas aquelas pessoas – banda, platéia, roadies, câmeras – respiram um mesmo ar e vivenciam um encontro. Não à toa, Clinch não hesita em cortar da banda para um casal que se beija na platéia, para pessoas que cantam e outras que não sabem as letras, para os cartazes levados pelos fãs e a réplica de Adam Gardner pedindo para que os cartazes sejam abaixados, para que as pessoas que estiverem atrás também possam ver o show. A multiplicidade de experiências que marca Guster On Ice – assumindo que, para banda e platéia, o show é apenas uma parte de várias noites individuais, construídas por cada uma daquelas pessoas – é visualmente realçada pela variedade de texturas de captação (que vão de micro câmeras de vídeo a variadas bitolas de película). E, se Clinch realmente acredita no show como parte, e não integralidadade, daquela noite, nada mais justo que acompanhemos a banda no backstage, nas ensolaradas caminhadas pelas ruas da cidade, na passagem de som (e o corte do ensaio de “So long” para sua execução no show é especialmente ilustrativo), na repetição das músicas (“Careful”, que abriu o vídeo, reaparece em sua versão noturna pouco antes do final) no whisky com gelo (para aliviar as mãos do percussionista) após o show. Curiosa também a capacidade do vídeo de gerar perguntas no espectador: como a banda soa tão cheia com tão poucos instrumentos? De onde sai o som do baixo em “I Spy”? O som de bateria de “Careful” é, na verdade, percussão?

Musicalmente, On Ice acaba gerando um paradoxo interessante: embora valorize o instante qualquer em sua noite, escolhe aquilo que poderíamos chamar do instante pregnante da carreira da banda (e, como Clinch é fotógrafo fixo de ofício, o paralelo com Cartier-Bresson se torna inevitável). A profusão de canções de Keep It Together entre os hits incontestáveis de Lost And Gone Forever (basta lembrar das versões gloriosas de “I Spy” ou “Happier”) fixa a banda em seu melhor momento, que só seria confirmado pelo anticlimático álbum seguinte (o correto, mas pouco inspirado Gangin’ Up On The Sun). E, se o híbrido que questionei no primeiro parágrafo retorna para fechar o texto, é porque Danny Clinch compreende o meio que está carregando sua obra como poucos outros diretores já o fizeram. Em vez de contraria-lo, usa-o a seu favor. O registro de shows é sim o parodoxo do eterno e do instante, e ignorar esse instante apenas gera um eterno incompleto. Em Guster On Ice, Danny Clinch compreende o lado orgânico dos shows que os agressivos braços esticados com celulares e máquinas digitais insistem ofuscar. E, com esse pequeno deslocamento, assina uma obra-prima justamente ao assumir a instabilidade do terreno; ao se jogar na areia movediça onde todos seus outros pares parecem morrer tentando sair.

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