sexta-feira, setembro 28, 2007

Festival do Rio – Dias 3 e 4

DIA 3

Sempre bela (Belle Toujours) – Manoel de Oliveira



Um dos processos inevitáveis de se assistir filmes em seqüência (e um festival se torna terreno fertilíssimo para isso) é a busca de paralelos, de relações entre os filmes que se tornam mais evidentes pela proximidade em que são assistidos. Assim como outro veterano com filme na mostra – Claude Chabrol e seu “Moça dividida em dois”, abordado no post passado – o português Manoel de Oliveira também traz a moralidade para o centro de discussão de seu “Sempre Bela”. No caso de Oliveira, a fonte de inspiração tem endereço: “Sempre bela” é uma livre continuação de “A bela da tarde”, filme realizado por Luis Buñuel em 1967. O reencontro de Henri Husson (Michel Piccoli, em ambos os filmes) e Séverine Serizy (antes Catherine Deneuve, agora reencarnada por Bulle Orgier) é pretexto para que Oliveira depure ainda mais sua rigorosíssima mise-en-scène, e seus pequenos toques mágicos que fazem brotar exuberância de cenas incrivelmente simples.

Essa simplicidade, nunca simplista, é o que mais emociona em “Sempre bela”. Embora a promoção do reencontro de dois personagens célebres na história do cinema não deixe de ser um fetiche para o espectador (e Manoel de Oliveira é bastante econômico nessa relação, trazendo elementos do filme de Buñuel que sejam apenas suficientes em situar o espectador no universo de “Sempre bela”), é na habilidade de narrar do diretor que se escondem os grandes momentos do filme. Sim, pois quando se chega perto dos 100 anos de idade em plena atividade – como é caso de Oliveira – é a agudez desenvolvida pelo olhar que impressiona olhos ainda jovens como o meu (o plano do cão amarrado ao barco em “Um filme falado” talvez seja o mais claro exemplo disso). Trabalhando as particularidades narrativas de uma arte pouco mais velha que ele mesmo, Manoel de Oliveira cria pequenos momentos de deslumbramento onde outros diretores talvez vissem apenas mais um cenário, um diálogo, um gesto, um enquadramento.

Dois momentos chamam atenção particular nesse sentido: quando Husson e Séverine finalmente trocam suas primeiras palavras, o diretor desmonta a onisciência da captação de som e, num plano médio, acompanhamos visualmente o diálogo enquanto, na banda sonora, ele é absolutamente devorado pelos ruídos do ambiente. Essa estratégia já havia sido usada por Oliveira no primoroso “Vou pra casa” (com o mesmo Piccoli), mas reaparece aqui saudavelmente zombeteira, jogando com a relevância cinéfila das primeiras palavras trocadas por personagens eternos após 38 anos de separação. É quando, finalmente, Husson e Séverine conversam sobre o passado que Manoel constrói outro momento que parece chegar à tela já eternizado. Depois de uma longa e silenciosa refeição, presenciamos os dois personagens-lenda conversando em um ambiente iluminado apenas por velas que, ao longo da conversa, apagam-se, uma a uma. Os personagens se perdem no negro do primeiro plano e a cidade, ao fundo, enche o quadro pela janela. Com um recurso simples de fotografia prática, Manoel de Oliveira constrói um dos mais belos planos já feitos sobre a velhice e a passagem do tempo.

Essa economia extrema e absolutamente eficiente (o filme tem apenas 68 minutos!) conferem a “Sempre bela” uma fluidez impressionante. Manoel de Oliveira conduz o espectador por seus ambientes sem nunca esbarrar em um móvel, ou apertar a passada. O tempo das coisas é o tempo das coisas, parece nos dizer. Com mais esse belo filme, um dos mestres maiores do cinema me manteve contando nos dedos os dias para assistir “Cristóvão Colombo – O Enigma”, seu mais novo filme que estréia hoje no Festival.

DIA 4

A floresta dos lamentos (Mogari no Mori) – Naomi Kawase




Assim como a rotina do Festival traz novos filmes à lista de interesses, alguns são riscados – em alguns casos com certo pesar – da lista por motivos externos. Foi o caso de “Silenciosa luz”, filme de Carlos Reygadas que o cansaço me impediu de emendar em “A floresta dos lamentos”. Fiquemos, porém, no que foi visto; e, nesse caso, “A floresta dos lamentos” é experiência digna de várias notas. Despertando paixões como poucos filmes conseguem, esse último trabalho da japonesa Naomi Kawase pareceu polarizar as opiniões de todos que saíam da sala.

Em “Shara”, seu majestoso longa anterior, Naomi Kawase construiu uma das mais impressionantes seqüências de abertura do cinema contemporâneo: dois irmãos brincavam juntos, correndo pelas ruas da cidade, até que, em um “descuido” no enquadramento, um dos irmãos sai de quadro e desaparece, de fato, por todo o resto do filme. Esse irmão desaparecido não será mencionado após essa seqüência, mas sua ausência se tornará dado influente em tudo que nos é mostrado ao longo de “Shara”. Embora em “Floresta dos lamentos” não exista um prólogo como o do filme anterior, Naomi Kawase mais uma vez trabalhará a partir de ausências. Os personagens de “Floresta dos lamentos” estão reunidos em uma espécie de retiro de luto; um lugar onde as pessoas vão para aprender a lidar com perdas passadas – recentes ou não – e restabelecer um contato com o mundo vivo.

A ausência, porém, é confirmada nos diálogos: sabemos que Machiko está ali por ter perdido seu filho, e logo descobrimos que Shigeki tenta, há 33 anos, ficar em paz com a morte de Mako, sua esposa. O impacto de luto tão duradouro faz que Machiko se aproxime de Shigeki, para que ambos possam superar suas perdas juntos. A partir daí, “A floresta dos lamentos” sai do retiro e entra na floresta de fato; momento que também marca o mergulho do filme em um simbolismo bastante definido, mas sempre muito impressionante.

As chaves para o filme de Kawase são bastante visuais: a floresta como luto (e a vontade de Shigeki de se perder nessa floresta, de não mais sair dela), a pesada mala que Shigeki carrega sozinho, sem deixar que Machiko o ajude (assim como em “O sabor da melancia”, de Tsai Ming-liang, a “bagagem” aparece mais com o peso do termo em inglês do que com uma suposta “sabedoria” trazida pela palavra em português), a água como vida (Shigeki luta contra a enxurrada, não deixando que a vida o curso da vida o tire de seu luto) e a terra como mãe, como útero (a seqüência final do filme – em que Shigeki deita junto ao solo e diz se sentir bem ali – é a manifestação clara do desejo de retorno ao útero materno, ao ambiente de maior proteção).

A verdadeira batalha de Machiko e Shigeki contra o luto é, porém, entrecortada por belíssimas pausas para a interação com a vida. Em uma canção que tocam juntos ao piano, ou em uma brincadeira de esconde-esconde nos jardins do retiro (ou, mais tarde, em um campo de melancias), Machiko e Shigeki parecem ainda se maravilhar com a vida, e encontram, ali, os parceiros ideais na jornada pelo fim do luto (a presença do marido de Machiko, em uma cena em que culpa a mulher pela morte do filme, é especialmente esclarecedora em sua pontualidade).

É sobre a vida que sobrevive à morte que Kawase se interessa, e é aí que “A floresta dos lamentos” se aproxima muito de “Shara”. Após acompanharmos a exaustiva caminhada pela floresta de dois corpos ainda encharcados de vida, somos presenteados com uma seqüência tão impressionante quanto o sumiço do irmão em “Shara”: quando Shigeki deita-se à terra junto ao túmulo de sua esposa, o verde resplandecente de um jovem broto insiste tomar o primeiro plano, apesar do reenquadramento constante da câmera solta de Kawase. A floresta, o luto, talvez de fato insuperáveis; mas que também são fontes de uma vida nova. O túmulo que também é útero. A vida a partir da morte.

0 comentários: