quarta-feira, janeiro 30, 2008

Melhores de 2007

04 – Em Busca da Vida (Sanxia haoren) – Jia Zhang-ke



Desde meu primeiro encontro com Plataforma – segundo longa-metragem do chinês Jia Zhang-ke – fiquei absolutamente embasbacado com seu olhar. Não exatamente por uma originalidade estética acentuada, pois a câmera de Jia parecia somar ao pulsante ir e vir de corpos de Hou Hsiao-hsien um certo gosto pelo estaticismo de Tsai Ming-liang. O que mais me impressiona, ainda hoje, em Plataforma é sua capacidade de criar imagens que sempre se equilibram entre a melancolia e o movimento, o desencanto e o fascínio, a morte e a vida.

No filme de 2000, Jia Zhang-ke observava a vida de um grupo de jovens artistas em uma pequena cidade chinesa (mais exatamente Fenyang – local onde o próprio Jia nasceu), e acompanhava as mudanças de curso provocadas pela progressiva abertura cultural da virada da década de 1970 para 1980. Os integrantes de um grupo de teatro folclórico financiado pelo governo vão, aos poucos, descobrindo dados culturais aos quais, antes, não tinham acesso: a calça boca-de-sino, a música pop, a vida longe da cidadezinha onde nasceram, a relativa independência de um sistema social opressor. Plataforma trazia nos planos médios de Jia um distanciamento de impressionante e(a)fetividade: da mesma forma que muitos liam o filme como um manifesto contra a globalização, sempre vi como possibilidade mais apaixonada o encantado brilho nos olhos daqueles jovens que, aos poucos, tinham chance de, apesar das perdas, escolher outros significados para suas vidas. Além disso, o filme trazia um dos meus planos favoritos do cinema recente (que ainda me parece um plano-síntese para o cinema de Jia): observamos uma das dançarinas que abandonara o grupo pela segurança de um trabalho nos correios aproveitar um momento de solidão para, subvertendo o confinamento do trabalho, dançar para si mesmo.

Depois de Plataforma, Jia Zhang-ke realizou o belo Prazeres Desconhecidos, e as obras-primas O Mundo (que, assim como Prazeres Desconhecidos e o longa de estréia de Jia, está na programação da rede Telecine) e In Public - os dois últimos marcando a conversão, até hoje vigente, de Jia Zhang-ke para o vídeo digital. E aí chegamos em Em Busca da Vida – Still Life, como é conhecido internacionalmente – e vemos os signos que aproximavam Jia de Hou e Tsai se dissiparem em nome da cristalização do desejo que fazia de O Mundo um filme tão especial: se em Plataforma Jia Zhang-ke procurava as marcas do tempo nas pessoas, em seus filmes posteriores seu olhar se volta para o espaço. As pessoas continuam lá; mas nos aproximamos delas sempre por meio do espaço, de uma relação com a paisagem que as acolhe.

Nesse sentido, não me parece descabido interpretar esse leve desvio como um amadurecimento: se Plataforma ainda me toca como poucos filmes são capazes, tenho plena consciência de que o caminho consolidado por Jia Zhang-ke em Em Busca da Vida questiona estruturas que o cinema recente parecia não estar tão interessado (ao menos não com a profundidade que é alcançada aqui). Se Plataforma exaltava a doçura do desencanto, Em Busca da Vida joga com peões bem estabelecidos, e passa a pensar a partir deles. O mundo muda muito rápido, e em países como a China – países que apertam o passo para descontar o retardamento gerado por anos de isolamento voluntário – a velocidade do processo é absolutamente devastadora. A paisagem não tem tempo de fixar, os espaços se ampliam em direções nunca antes imaginadas (lembremos da construção do espaço virtual buscada pelas animações em Flash de O Mundo, concretizando o espaço onde circulam as mensagens de texto enviadas com telefones celulares), e o homem chinês se vê se equilibrando entre passado e presente, ruína e construção, e, aqui também, vida e morte. Pois se o cinema de Jia Zhang-ke sempre foi ambivalente, em Em Busca da Vida as vidas e mortes do mundo vão para o centro da narrativa: um prédio é implodido enquanto outro é construído, uma cidade inteira é inundada para a construção de uma represa, uma ponte ostenta o brilho de estrelas decaídas que refletem na água que afoga um lar. Ao homem cabe transitar por esse espaço de referências instáveis e fugidias. Cabe a ele se acostumar com uma paisagem em estado de transformação tão intenso que, assim como um prédio vai ao chão em segundos, um monumento de concreto pode revelar-se um foguete que parte rumo ao céu.

Se existe algo, porém, que se põe no caminho de Em Busca da Vida para se firmar como mais uma obra-prima do jovem diretor (pois, que se trata de um grande filme, não há dúvidas), é que não sinto nesse filme a ambigüidade do olhar que era determinante em Plataforma e O Mundo. Em seu estudo geográfico sobre a nova ordem do mundo, Jia Zhang-ke parece chegar a conclusão de que até mesmo a beleza tem um quê de opressora. E, embora isso não me pareça nada distante da forma como as coisas parecem caminhar, não deixa de ser um pouco triste ver o cinema de Jia percorrer as estradas que levam para as beiradas extremas do mundo. Triste porque, embora tenha girado seus olhos do passado para o presente, tudo que parece enxergar é uma paisagem que encerra os olhos. Triste porque ele parece estar plenamente ciente de que frear não é uma possibilidade.

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