quarta-feira, junho 18, 2008

Melhores de 2007

01 – Feist – The Reminder


Quem acompanha o blog com mínima regularidade já deveria intuir que, no trono do ano que passou, não se sentaria um rei, mas sim uma rainha. Afinal, quantas vezes uma artista ainda tão jovem (em carreira, não em idade) lança o melhor disco do ano, faz os melhores clipes e, logo em seguida, confirma shows pelo Brasil? Mas, por uma labirintite chamada Saturday Night Live, a Feist resolveu, na última hora, não vir, sendo imediatamente desclassificada (W.O.) dessa lista. Até que comecei a programar minha viagem de férias e, feito corno manso, reservei minha cadeirinha para nosso encontro de reconciliação, deixando de lado o ressentimento para fazer pazes com o óbvio: 2007 foi mesmo o ano da Feist.

É claro que, quando Wilco e Bruce Springsteen nos dão grandes álbuns, sou o primeiro a desconfiar de afirmações com vocação ao absoluto. Acontece que Wilco e Bruce já são mais do que veteranos, e grandes discos com suas assinaturas tocam a superfície do esperado (que sempre chega com vestes diferentes). Mas quem – e incluo aí os que, como eu, já eram viciados em Let It Die – quem imaginaria que Leslie Feist poderia lançar um disco tão apaixonante? The Reminder tem a seu favor a leveza inegável das doces surpresas, das companhias agradáveis que vão se alojando em nossos dias, tomando-os pouco a pouco sem nunca exigir, em troca, comprometimento que não venha de voluntário bom grado.

A surpresa é asfixiante por The Reminder ser, a rigor, o oposto de tudo que podíamos esperar de Feist: enquanto Let It Die (sim, estou, conscientemente, passando batido por Monarch e os remixes de Open Season) era um disco de estúdio, repleto de arranjos sofisticados e uma riqueza sonora exuberante, The Reminder é seco, cru, quase um rascunho. A variedade instrumental que sublinhava o disco anterior é trocada por um violão sem graves, uma bateria sem ataque e um punhado de belos arranjos de pianos e sopros. Existe um senso de intimidade fascinante no disco, e o fato de Feist ser mulher faz isso ser ainda mais interessante: ao ouvido masculino, The Reminder é como mergulhar na alteridade sem provocar respingos. Feist compõe como a menina que escreve para si, e que, no fluxo de sua intimidade, desenha um punhado de versos geniais sem nunca tomar conhecimento de qualquer traço de vaidade.

“So Sorry”, faixa que abre o disco, é quase uma parte 2 de “Gatekeeper” (primeira de Let It Die): pouca coisa parece ter mudado, embora letra e música tenham, já aqui, uma força que poucos momentos em seu outro belo disco conseguiam produzir. Como “Son of a gun”, dos Vaselines (popularizada pela ótima versão do Nirvana), é canção feita para se cantar no eco dos passos que levam a pessoa amada. Mas, logo em “I Feel It All”, adentramos os quartos do desconhecido com maior afinco: uma levada de bateria quase punk rock, baixo presente em ausência, três notinhas de piano mixadas no talo, e uma dinâmica crescente de vocais de inegável força. A letra repete um mesmo refrão por quase toda a canção, mas quando ela se desprende de seu próprio círculo, Feist acerta em versos aparentemente desconexos (“Put your weight against the door / Kick drum on the basement floor”) que ganham uma força impressionante pela métrica em que são cantados, pelas respirações, pelos estalos de língua. O baixo volta marcando passo em “My Moon, My Man” – canção marcial onde uma melodia vocal à Suzanne Vega, combinada à batida cravada ao chão por baixo e bateria, nos conduz a um dos refrões mais marcantes de todo o disco (melodia ainda mais forte quando solada pela guitarra afogada em reverb).

“The Park”, a quarta faixa do disco, traz Feist despida de todos os seus ornamentos, com os dedos dos pés enfiados na terra, e o canto em coro com o chiado da fita rodando e os pássaros que harmonizam ao fundo. Em um triste e belíssimo número, seu magro violãozinho passa a canção inteira encolhido em um canto da cama, esperando que o arranjo de trompas venha, de manso, lhe cobrir. O piano pinga, ao fim da canção, como se gotas d’água caíssem sobre as teclas. Com meia dúzia de canais, cria-se uma atmosfera de complexidade que pouquíssimas produções souberam, até hoje, construir na música pop. E ainda sobra espaço para, ao menos, duas estrofes devastadoras: “With sadness so real that it populates / The city and leaves you homeless again”; e a conversa com o passado em “Why would you think your boy could become / The man who could make you sure he was the one?”.

“The Water” reergue as pontes com Let It Die - em especial, o miolo central do disco (com “When I Was A Young Girl” e “Lonely Lonely”), marcado mais pela construção climática do que pela predominância melódica – levando The Reminder para banhos mais pantanosos, em melodia difícil de se prender entre os dedos. “Sealion” é uma recriação quase hardcore de “See-Line Woman”, a imortal canção de Nina Simone. A introdução – com palmas, chocalhos, moog fazendo barulhinhos e uma dobra vocal de grande efeito – prepara o arranjo em plena fermentação, crescendo fora de controle à medida que a canção avança. É como se a melodia de “See-Line Woman” fosse incorporada pelo transe de “Sinnerman”, com a diferença de que o transe, aqui, é de uma garota branca.

“Past In Present” retoma a estrutura de arranjos de “I Feel It All”: a bateria semi-nervosa, o riff de piano remontado pela slide guitar, e um refrão fortíssimo que mistura as palavras como passado e presente se tornam um na letra da canção. Após o vácuo de exceção criado por “The Water” / “Sealion”, “Past In Present” começa a estabelecer o padrão de tecelagem de todo o disco: a alternância entre momentos fortes, e pontuais tempos mortos que se penduram em uma frágil, mas eficiente construção climática. “The Limit To Your Love” é a balada mais bonita já escrita por uma moça canadense: uma linha absurdamente marcante de piano e baixo no refrão, uma construção dinâmica precisa, e um verso de abertura de simplicidade cativante (“Clouds part just to give us a little sun”). A estupenda “1234” reforça a curiosidade masculina com os olhos de mulher madura que versam sobre a adolescência. Uma melodia pueril vai ganhando corpo com a entrada de cada instrumento, até explodir na exuberância da vida adulta, cantando “For the teenage boys / They're breaking your heart”.

“Brandy Alexander” é uma bem dosada parceria com Ron Sexsmith (de quem Feist já havia gravado a belíssima “Secret Heart”). A letra mistura, sinestesicamente, o nome de um drink com o de um rapaz, em ambigüidade que, curiosamente, faz lembrar Cole Poter. “Intuition” e “Honey Honey” criam a segunda bolha climática de The Reminder: canções de belezas particulares, em equilíbrio de minimalismo instrumental e um vocal que ecoa em lagos de reverb. E, por fim, temos outra linda balada: “How My Heart Behaves”, canção de sobriedade cinzenta em que o coração se põe em harmonia com o mundo, e a natureza manifesta os estados de maior intimidade. Esse sentimento rende alguns versos belíssimos (fico particularmente impressionado com “On the ferry / That's making the waves wave”), e um dueto de gêneros vocais que encerra o disco com um de seus mais preciosos momentos. 12 canções que pedem parágrafos próprios, pois só passando por cada uma delas chegamos um pouco mais perto do brilho desse pequeno e belo disco.


For Dummies
Álbuns da Feist recomendados em ordem decrescente de interesse

01 - The Reminder (2007)
02 - Let It Die (2003)
03 - Monarch (1999)

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