segunda-feira, setembro 01, 2008

Contrabando de formigas

3. The Dust Jacket

Perto da ida, abandonei O Processo – que lia sem nunca faltar entusiasmo – e decidi reservar algumas horas dos dias pré-partida para a escolha de bons companheiros de viagem em uma livraria. Que Kafka me perdoe, mas não consigo dormir fácil quando tomado por ansiedade. Embora suas páginas sejam convite que estou sempre pronto a aceitar, a idéia provável de passar as 14 horas de vôo com a cabeça enterrada em sua prosa não me pareceu preságio de boas férias. Não sou superticioso, mas zelo ferozmente por meus bons tempos.

Tento sempre me dar chances de comprar amigos novos. O Juliano havia me recomendado ler o Ask The Dust, do John Fante, antes de ir para Los Angeles. A certeza por trás da dica me pareceu ainda mais digna de confiança por ele nunca ter se sujado com o pó de lá: Fante construíra a imagem da cidade que existe em sua cabeça, e entendi a recomendação como um desejo de que eu pudesse passar minhas férias nesse espaço imaginário. Uma franca vontade de companhia e um sincero aceno de boa viagem: aceitei-os prontamente. Em uma das prateleiras, achei um pocket em inglês por um preço decente – não para um pocket, mas sim para o inglês. A capa trazia imagens de palmeiras esbranquiçadas – as mesmas que veria em todas as ruas da cidade, duas semanas depois. Comprei também o Na América, da Susan Sontag, para provar que eu poderia levar o humor de minhas obsessões temáticas a novos índices de ridículo.

Como a tensão já havia anunciado, quase não preguei os olhos no vôo de ida. Afoguei-me, em pleno ar, nas palavras de Fante, com sede reveladora do vulto de seu talento: bom o suficiente para merecer viver à sombra de Henry Miller. Depois de Miller, apenas João César Monteiro conseguiu me derrubar com equivalente fome artística. Fante e Bukowski são sujeitos bacanas, mas não passaram fome, e é isso que seus livros gritam: palavras extremamente bem nutridas. Eu estava voando, e meus olhos roncavam acordados.

Apaguei minha luz de bordo quando percebi que era a última a permanecer acesa em todo o avião – a primeira classe, invisível, vivia vôo onde se lê em sono suave. Descansei por umas horas, e logo os selos das pálpebras foram novamente rasgados pelo dia que nascia lá embaixo. Bati a primeira foto da viagem e voltei a Fante. Chegado em terras outras, parei a leitura apenas para experimentar os rituais de imigração; Ask The Dust me acompanharia pelas horas rodadas no aeroporto em Atlanta, entre um vôo afogado pela chuva que atrasara a primeira decolagem, e a incerteza de ser encaixado no seguinte. Poucos minutos antes de decolar dali, a certeza da partida interrompeu minha leitura: ver meu nome anunciado na tela de confirmed da Delta foi mais intenso do que encontrá-lo nas páginas da Folha Dirigida, à época do vestibular. Às vezes canso-me da vida como espera para um começo; só queria começar logo, de uma vez. Queria ir logo pra casa.

De Atlanta para Nova York, sentei na poltrona direita da trinca que forma a fileira central. Ao meu lado, uma jovem de traços do oriente se fragilizava sob o ar condicinado em short e chinelos. Um espirro parecia capaz de quebrá-la em mil pedaços. E na cadeira esquerda, uma adolescente estadunidense típica, se típicos existissem: ruiva, com bochechas rosadas e uma cara de criança que saltava do moletom, cheia de preguiça de mudar para a fase seguinte da vida.

Voltei-me ao Fante, esperando terminar o volume antes de pousar. Passei mais um par de horas por ali quando, com olhos cheios da vontade de passeio que forçam o pescoço a girar em busca do entorno, vi a ruiva da cadeira direita com o rosto desconfortavelmente apoiado em suas coxas, contorcendo-se em nome da curiosidade que cismara descobrir o livro em que seu quase-vizinho de poltronas mergulhara sem desejo de volta. Sem tirar a capa do livro da perna cruzada, observei-a em torção, tentando imaginar seus motivos para tamanha curiosidade. Pensei se ela pensava nos primeiros parágrafos deste contrabando, sabendo que minhas projeções nunca completariam a imagem daquela esfinge entortada. Até que seus olhos deixaram a capa do meu livro e se cruzaram com os meus, flagrando-a naquele estranho ritual de invasão. As bochechas gordas queimaram juvenis, enquanto o corpo se destorcia, e os olhos buscavam algo novo que pudessem fingir buscar.

Retornei às últimas páginas de Ask The Dust, ainda flutuando naquele estranho incidente. Enquanto recomeçava a leitura, com a mão esquerda inclinei levemente a capa do livro, na esperança de ajudar a quase-vizinha de poltronas, caso – em outro espasmo de curiosidade – ela tentasse novamente ler o título de minha leitura.

2 comentários:

Helio Roberto Oliveira disse...

gosto muito desse cara ai, mesmo os livros dele sendo quase todos "iguais".

Anônimo disse...

Minha história com Fante faz parte das minhas invariações: também um presente querido, dado por querido em uma viagem esperada.

Sua dicção de prosa é intrigante; o que de representação caímos gera, mesmo vividas, auto-ficções fecundas. Não. Geram, antes, o que da vida, eu chamo de "ficção possível".

A generosidade do oferecimento da capa é tocante.