segunda-feira, outubro 01, 2007

Festival do Rio - Dia 8

Tirei a quinta-feira de folga do festival, então deixo o dia 8 sozinho. Não só porque o filme visto nesse dia merece todas as linhas que eu puder lhe oferecer, mas também porque o 10 tem um ciúme doentio do 9.

DIA 8

Cristóvão Colombo – O enigma – Manoel de Oliveira




Entre eu e meus amigos uso uma designação para certos textos que batizei como “a verticalidade de Nova York”. O título saiu de uma crítica publicada sobre o segundo “Homem Aranha” na ótima Contracampo, onde o autor despendia vários parágrafos falando sobre como o filme era revelador da verticalidade de Nova York. Pelo que me lembro (e não vou reler a crítica agora para não correr o risco de me sentir eticamente obrigado a jogar esse parágrafo pelo ralo – pro bem ou pro mal, jogo a culpa na memória), pouco se falava sobre o filme. Falava-se muito, porém, da tal verticalidade de Nova York. Ela estar ou não presente no filme de Sam Raimi nunca foi a minha questão. O que me dava urticária na tal crítica é que o autor caía na comum arapuca de se deixar levar por uma idéia que surge a partir do filme, e neglicenciava todas as outras questões propostas pelo filme (e, em se tratando de “Homem Aranha 2”, elas são muitas) por estar extremamente orgulhoso desse seu dispositivo. Não acredito que a crítica deva se render às receitas de bolo dos quadradinhos de jornal, tampouco que recortes mais originais não devam ser encorajados na atividade. Acredito, porém, que também já condenei alguns de meus textos a esse mesmo mal, e por isso uso a tal “verticalidade de Nova York” como uma forma de auto-controle. Um freio para quando a vaidade de quem escreve começa a fazer sombra sobre quem assiste filmes, ouve discos, lê livros e, vez por outra, se vê apaixonado por uma outra obra.

E aí me pego entortado pela cadeira do Estação Botafogo 1, vendo esse “Cristóvão Colombo – O enigma”. Na minha cabeça, um pensamento retornava em cada corte: Manoel de Oliveira fez, de fato, um filme sobre a verticalidade de Nova York. Faço, portanto, a única coisa que me parece honesta agora: desvencilho-me das teias (valeu trocadilho!) da verticalidade de Nova York de “Homem Aranha 2” e escrevo sobre a verticalidade de Nova York que o mais novo filme de Oliveira insistiu me mostrar.

“Cristóvão Colombo – O enigma” é uma adaptação de “Cristóvão Colón era Português”, livro que, como deixa bem claro o título, pesquisa as raízes portuguesas do descobridor da América. No filme, acompanhamos três momentos da vida de Manuel Luciano da Silva, um jovem português curioso sobre as raízes do navegador: a sua ida para a América ao lado do irmão; o sucesso de sua carreira médica nos Estados Unidos e seu casamento em Portugal; e uma última busca, ao lado da esposa (e nessa terceira parte é o próprio Manoel de Oliveira quem encarna o personagem), pelos EUA e em Portugal pelas raízes portuguesas de Cristóvão Colón. Ocasionalmente, uma jovem vestida de verde e vermelho e com uma espada em punho acompanha a cena, em aparição muito semelhante à mulher de branco/morte em "A última noite", mas sem interagir verbalmente com os personagens como no filme de Robert Altman. Mas se a personagem do filme de Altman trazia o último suspiro a personagens tradicionais da iconografia norte-americana, no filme de Manoel de Oliveira ela vem apreciar a pesistência do espírito português em um de seus filhos. Essa misteriosa personagem, que observa Manuel em sua busca, é tão passivamente presente nessa jornada quanto Portugal, a terra. A necessidade de Manuel em buscar a história do descobridor é uma necessidade de compreender sua terra e, assim, compreender a si mesmo.

Esse processo de investigação de uma identidade portuguesa ganha tons mais distintos justamente pelo contraste com a terra descoberta: além de Portugal, é a América que serve de segundo lar para o filme, seus personagens e a figura histórica que lhe confere nome. Quando Manuel e seu irmão pisam pela primeira vez em Nova York, uma imediata decepção: um nevoeiro encobre a cidade, e impede que eles vejam os famosos arranha-céus que fazem a paisagem da cidade. Essa primeira oposição de signos se confirmará ao longo de “Cristóvão Colombo”: Portugal é horizontal, enquanto a América é essencialmente vertical. Enquanto a paisagem portuguesa é desvendada por belíssimos movimentos panorâmicos, a paisagem metálica das pontes nova iorquinas não cabem no quadro, e tudo que se vê é uma parte delas, pela janela de um táxi.

Estaria Manoel de Oliveira usando essa oposição de formas como transcrição visual das ambições de dois grandes impérios? Afinal, estamos falando de Portugal à época do tratado de Tordesilhas; Portugal dona de meio mundo, como é ressaltado no próprio filme. Seria a expansão portuguesa de ambições essencialmente horizontais, enquanto a expansão norte-americana é de cunho vertical (basta lembrarmos de toda a corrida espacial durante a guerra fria)? Podemos pensar em ambições horizontais como um interesse pelo plano humano, enquanto as verticais estariam tentando criar uma nova metafísica? Será mera coincidência que o jovem português que é apaixonado pela História de Portugal vá construir sua vida na América?

Todas essas perguntas se tornam constatações na parte final do filme. Entre os planos mais sintéticos de “Cristóvão Colombo – O Enigma”, está uma visita do já idoso Manuel e sua esposa ao monumento em homenagem ao descobridor que enfeita uma praça de Nova York. Filmada em um contra plongé de angulação extrema, a estátua é engolida por dois gigantescos prédios ao fundo. Não seria próprio à América o sonho de construir um presente que pareça capaz de esmagar seu passado, sua história? Cristóvão Colombo chegou à América pelo mar. Hoje - diz Manoel de Oliveira interpretando Manuel - só se pode ver um pedacinho do mar de onde, antigamente, ficava uma torre de observação. Os prédios encerraram o mundo, e para se enxergar o horizonte é preciso praticamente molhar os pés na água salgada. Não é à toa que o retorno de Manuel a Portugal seja feito pelo ar – vemos seu avião aterrissar frente a um letreiro que diz Porto Santo. O nome da cidade, nós sabemos. Mas, curiosamente, é o mesmo letreiro que reaparecerá no último plano do filme, escrito no casco de um barco que corta, horizontalmente, toda a tela do cinema.

1 comentários:

Anônimo disse...

Eu sempre gostei de Manuel de Oliveira desde que vi "Non, ou a vã glória de mandar"; depois vi outros, inclusive, o conhecido no Brasil, " Um filme falado", mas quero dizer que seu comentário chamou minha atenção pelas "metáforas" da verticalidade e da horizontalidade, que, no sentido em que você usa, eu acho que vêm a calhar ( estou um pouco lusitana, rs).
Gosto do seu texto, você escreve diretamente para o leitor como se falasse com ele , mas na norma culta e sem pedantismo.
Os seus textos são sempre interessantes.