quinta-feira, agosto 07, 2008

Contrabando de formigas

Tentei escrever um poema quando uma formiga atravessou o papel em branco. Nada escrevi, posto que o misterio da natureza por ali havia passado. (Mário Quintana).

1. Magic Kingdom

- Have you found what you were looking for? - perguntou-me um brooklyniano gente boa, depois de me ver passar um ou dois minutos com meus olhos colados no mapa do Prospect Park.

Ele tinha longos cabelos grisalhos presos em um rabo-de-cavalo, parecia ter passado as duas últimas horas correndo pelo parque e, como manda a etiqueta nova iorquina, estava louco para encerrar o dia demonstrando seu conhecimento geográfico local.

- Not really – respondi – I’m looking for the bandshell.
- The bandshell? Easiest thing in the world! – disse ele, feito um personagem tipificado em algum esquete do SNL. Como em um carteado de verbo e gesto, abriu à mesa cinco ou seis maneiras diferentes de se chegar à concha acústica do parque, sendo que todas elas poderiam ser resumidas em “escolha um desses caminhos e siga em frente que você chegará lá”. Agradeci e ele me pareceu querer fazer o mesmo.

- Who’s playing tonight?
- Feist.
- Five?

Abri um sorriso (que não fecharia pelo resto da noite) ao lembrar da banda que cantava “Everybody Get Up” e “Keep On Moving”. Pareceu-me uma boa maneira de começar uma nova amizade.

- No, Feist. The canadian singer.

Com o rosto, deixou claro que nunca tinha ouvido aquele nome antes.

- She’s really good - continuei.
- Really? Well, unfortunately, I already have plans for tonight. But have a good show!

Segui pela ciclovia que se espichava ao lado da estrada principal, no sentido contrário dos carros e ciclistas. O asfalto cortava o verde enquanto, às margens, um número descomunal de vaga-lumes acendia um prenúncio de noite que ainda tardaria a cair. Não via vaga-lumes há alguns anos, mas naquela caminhada acreditei ter esgotado os créditos para as próximas duas ou três vidas.

Peguei meu ingresso na tenda da Ticketmaster (“You look scared”, comentou a moça ao ver a foto do meu visto), comprei uma camiseta que dizia (e diz) “The limit to your love” e, imitando todos que não estavam nas filas dos bares ou dos banheiros químicos, sentei-me na grama, como que esperando por um piquenique. Logo, subiu ao palco Juana Molina (“it rhymes with Argentina” – disse ela, ao se apresentar), com um violão, dois teclados e uma quantidade estonteante de pedais. Levantei-me e segui para as fileiras da frente, já que ali se concentravam os poucos pingados afim de ver o show de pé.

Com riffs e ritmos minimalistas, Juana sobrepunha camadas sonoras gravadas on the fly, rodando em loops hipnóticos, em playbacks gravados ao(s) vivo(s olhos da platéia), em performance que talvez seduzisse mais pelo malabarismo de engenhocas do que por sua real musicalidade. Conforme os nativos iam amolecendo com seu sotaque, a organicidade (Indígena? Japonesa? Inca?) da música de Juana se acumulava em um transe crescente, com todo o contágio que o equilibrado empilhamento sonoro de vozes, violões, teclados e sintetizadores almejava promover. Até que o dia resolveu ratificar meu óbvio desejo de Shara, caindo com um extrovertido temporal sobre os corpos que pesavam sobre a grama. Os sentados levantaram-se em direção ao palco, tentando se abrigar sob o resto de teto que protegia da chuva as primeiríssimas fileiras. Seco por levantar-me cedo, mas com algum desejo de me molhar também, permaneci em local marcado pela queda d’água. Juana se foi, com aplausos.

Se o show de abertura embaçara a fronteira sonora entre o vivo e o simulacro, o de Feist mergulharia no mesmo processo, mas em sua natureza visual. Um biombo branco é colocado em frente ao microfone. As luzes se apagam, e apenas um contraluz projeta a sombra do microfone sobre a tela branca. Feist entra no palco pelas laterais, carregando uma lanterna de fazenda na mão e um chapéu meio ridículo na cabeça. A pessoa, vista aqui tantas vezes como imagem, aparece, ali, real. Anda até o outro lado do palco, fingindo procurar algo com sua lanterninha. E pára ao centro, voltando a ser imagem, em silhueta que faz lembrar a capa de The Reminder. Canta, sozinha, que a ajuda já está a caminho. A banda entra em palco, toda de branco, enquanto o biombo é retirado e voltamos a vê-la novamente.

“When I Was A Young Girl”, “Mushaboom” e “My Moon, My Man”. O som é límpido e maravilhosamente baixo. As palavras vêm bater à porta dos lábios, mas o desejo de cantar junto é quase sempre calado pelo medo de que uma voz estrangeira possa quebrar aquela atmosfera tão delicada. Sobre o fundo do palco, duas artistas projetam intervenções plásticas realizadas sobre um retro-projetor. Um vaga-lume ocasional cruza o palco, em apropriado lampejo de espontaneidade. Feist tem gestos afetados o suficiente para seus amantes considerarem adoráveis, e seus detratores, enervantes.

Lembro que, fora 3 ou 4 que eu desconhecia, de Let It Die foram cinco (“Gatekeeper”, “Mushaboom”, “Let It Die”, “When I Was A Young Girl” e “Inside And Out”), e oito de The Reminder (“I Feel It All”, “My Moon, My Man”, “The Water”, “The Limit To Your Love”, “Sea Lion”, “1234”, “Honey, Honey” e “How My Heart Behaves”). Alguns dias depois, veria “Brandy Alexander” na voz do parceiro Ron Sexsmith, em uma memorável noite de voz e violão. Lembro também de, em dado momento, ouvi-la dizer “Sincerity is the new irony, guys”. E de, ironia das ironias, a frase ter realmente soado sincera. E lembro de, após o fim do show (“slow dance the way back home” com “Let It Die”) ter olhado para o palco já vazio e visto, lá em cima, vaga-lumes que acendiam e apagavam e acendiam e apagavam novamente.


Os sentados.


O chapéu e as franjas.


O sorriso sob o óculos familiar, entre o indie cabeçudo e a menina loira de blusa azul.

Fotos: Brooklyn Vegan

6 comentários:

Anônimo disse...

Ia ser muito melhor se o show tivesse sido do Five mesmo.

Anônimo disse...

Eu ia fazer um comentário sobre o belo texto, mas, depois de ler o genial comentário do Rubinho, isso me pareceu impossível.

Welcome back, by the way.

Anônimo disse...

Dois Buerentos.

juliano disse...

voltando em grande estilo. que beleza

Anônimo disse...

Feist é bem pior que eu pensava. Ela estava com otite no dia????

Fábio Andrade disse...

labirintite, besta de mau gosto.