quinta-feira, janeiro 25, 2007

Melhores de 2006


04 - Volver - Pedro Almodóvar

Se assumir a canastrice textual não deixa de ser uma forma de assimila-la, faço logo o inevitável comentário: "Volver" é o retorno de Almodóvar. Não que o diretor houvesse tomado desvios de sua mais alta forma - muito pelo contrário - mas o retorno é empregado, aqui, em sentido múltiplo. É o retorno de Carmem Maura, mas também da inconográfica Chus Lampreave (atrizes que compartilharam cenas memoráveis em "O que eu fiz para merecer isso?", de 1986, só lançado por aqui no ano que passou); o retorno do humor (que não tomava seus filmes com tamanha intensidade desde "Kika"); o retorno da figura materna como pilar da narrativa. "Volver", porém, não retorna de forma reacionária ou medrosa. Retorna como o filho que saiu para conhecer o mundo e acredita ter aprendido uma coisa ou outra lá fora que podem servir à sua terra natal.

Se o talento do diretor para o melodrama lhe rendeu três obras-primas em seqüência (de "Carne trêmula" a "Fale com ela" - até hoje não vi "Má educação", inevitável lacuna neste texto), o gênero parecia atingir o paroxismo em "Fale com ela". Até onde Almodóvar conseguiria estender o peso solar dos filmes de sua maturidade? "Volver" é um retorno por provar que o peso é irmão mais que próximo da leveza, e que os dois elementos podem conviver em encantadora harmonia. Há, sim, peso em "Volver". Por duas horas carregamos, junto com suas personagens, o peso dos mortos nas costas. Peso de uma criação orgânica demais para ser ignorada; peso da percepção da impossibilidade de se livrar das lembranças e viver sem ser puxado pelo passado. A formação familiar (aqui essencialmente matriarcal) em Almodóvar parece indestrutível, como os "dogmas da infância" de Salinger. "Volver" é, sim, um filme que olha para trás. Mas se há peso, há também sol (ressaltado pela envolvente mistura de temperaturas de cor da fotografia de José Luis Alcaine). Pois trata-se, principalmente, de um filme que reconhece no passado um valor (que, como todo valor, é atemporal) a ser aplicado no presente para permitir a chegada do futuro. Ignorar o que te puxa não ajuda a supera-lo. Negar a vida do passado não faz dele morto, e é por esse caminho que as mulheres de "Volver" nos conduzem.

O filme começa - como não podia deixar de ser - suando óbito. Algumas das mortes tornam-se problemas a serem resolvidos (problemas que trazem, porém, soluções para outros); outras levantam questões que há muito esperavam ser respondidas. Resistindo a uma tentativa de estupro, Paula (Yohana Cobo) mata seu suposto pai. Raimunda (Penélope Cruz), sua mãe, assume a responsabilidade pelo acontecido (o ato tendo decorrido de uma escolha passada sua, não de sua filha) e esconde o corpo do marido no freezer (problema que, cedo ou tarde, teria de ser resolvido). No enterro de Tia Paula (Chus Lampreave), Sole (Lola Dueñas) reencontra Irene (Carmem Maura), sua falecida mãe que teria "retornado dos mortos" para se reconciliar com as filhas. Apesar de tudo, a morte em "Volver" parece sempre ter, sobre os vivos, um efeito reconciliador. Seja entre as matriarcas da pequena cidadezinha que fazem de cada enterro um encontro social, ou pelas relações familiares que se estreitam (entre Raimunda e sua filha; entre Irene e Sole, que depois se estenderá também a Raimunda e Paula, conectando três gerações em torno de um só destino, de uma só tradição), a morte nunca é destruição. É evidência do passado que ressalta o presente. Sole acolhe sua mãe com um mínimo de estranhamento inicial, mas não deixa que o lado sobrenatural de seu retorno seja empecilho para abriga-la novamente em sua vida. São esses personagens de extrema fé - na vida - que povoam a obra de Almodóvar, e é justamente essa fé que faz com que eles sigam em frente e superem as adversidades do convívio. E justamente por isso seus filmes são tão inspiradores.

Se "Volver" é mais um discurso que se põe a desconstruir a idéia de aparência - seja pela questão principal da trama, pelas paternidades mal resolvidas, ou mesmo pela convivência de gêneros que poderiam se anular mutuamente - é também um dos filmes que melhor trabalha a idéia da transformação pelo retorno. Em uma cena chave do filme, a personagem de Penélope Cruz assiste, na televisão, a "Belíssima", de Lucchino Visconti. A cena sintetiza a idéia de dupla identificação que é espinha dorsal em "Volver": ao ver a personagem de Anna Magnani tentando defender a filha da indústria cinematográfica no filme de Visconti, Raimunda se percebe tanto filha quanto mãe. Ao mesmo tempo que se vê como Anna Magnani (assumindo a responsabilidade da filha no assassinato de seu marido), compreende sua mãe (Raimunda também nutria, quando criança, sonhos de seguir carreira artística - paixão evocada na cena, tipicamente almodovariana, em que ela canta a música que dá nome ao filme). É só após essa percepção que Raimunda é capaz de se reconciliar com sua mãe (encarnação de um passado de omissão quando Raimunda fora, também, estuprada pelo próprio pai), enterrar o corpo do ex-marido e seguir com sua vida.

É com essa idéia do eterno retorno das condições (essencialmente familiares, mas que no fundo trabalham sempre uma idéia de identidade social) que Almodóvar se reconcilia, também, com seu passado. Se "Volver" é, de fato, um retorno ao pequeno povoado da infância, é um retorno de quem partiu em direção a alguma outra coisa. E se isso significa andar em círculos, tudo bem. Até mesmo em um círculo existe uma trajetória, um caminho de experiências onde o destino pode ser o mesmo que o local de partida, mas que garante que aquele que segue de um ponto ao outro retorne, de alguma maneira, transformado.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Melhores de 2006


05 - Amantes constantes - Philippe Garrel

Diante de qualquer filme, evito fazer comparações que, por algum critério, me pareçam por demais óbvias. Com "Amantes constantes" (Les amants réguliers) - primeiro longa metragem de Philippe Garrel (veterano que possui outros 26 filmes no currículo) a ser lançado comercialmente no Brasil - a comparação óbvia se torna inevitável por se tratar de um filme-resposta. Em determinado momento das quase 3 horas de "Amantes constantes", a co-protagonista Lilie (Clotilde Hesme) se vira para a câmera e, em tom ao mesmo tempo hilário e despudorado, acusa o culpado: "Bernardo Bertolucci". Apesar da conversa se justificar diegeticamente por "Antes da revolução", Garrel se refere claramente a "Os sonhadores" - desastrosa tentativa de revisão crítica, por Bertolucci, dos eventos de Maio de 1968. O filme de Bertolucci, que se mantinha à mente toda vez que François (Louis Garrel - filho de Philippe e protagonista, também, de "Os sonhadores") entrava em quadro, seria um oposto simétrico a "Amantes constantes", embora ambos tenham intenções históricas (mas não estéticas) parecidas.

Tanto Garrel quanto Bertolucci participaram dos acontecimentos que marcaram Maio de 1968 nos calendários da História. O abismo que os separa na tela é apenas reflexo de duas revisões distintas: a de Garrel, de apaixonada auto-crítica; a de Bertolucci, amargurada em saudosismo. Embora a idéia de filme-resposta possa parecer reducionista (e o filme de Garrel sobrevive muito além disso), é curioso perceber onde as diferentes abordagens bifurcam, e o efeito de tais bifurcações nos filmes. Ambos partem de uma aproximação ao documentário, porém a intenções quase opostas dentro da própria tradição documentarista. Enquanto Bertolucci se aproxima da escola inglesa de John Grierson com a adição de imagens de arquivo à sua reconstituição do episódio da cinemateca francesa (aproximação que será constantemente refletida na ausência de naturalidade das conversas entre os personagens principais - quase discursos oniscientes em off do diretor), Garrel se aconchega ao lado do cinema direto (e do verité francês) construindo uma narrativa de imersão. A declaração feita com essa aproximação é clara: Garrel viveu os momentos que retrata, mas não os viveu de forma imparcial, externa ou soberana. Seu olhar é construído de dentro do momento, e a única maneira justa de conduzir o espectador por essa experiência é colocando-o ao seu lado, no tempo e no espaço (mesmo que recriados). Resta-nos, portanto, viver o filme.

A proximidade, com efeito, é um dado essencial em "Amantes constantes". Seja nas barricadas ou na república onde boa parte do filme se dá, a câmera se coloca como mais um daqueles jovens. E, assim como eles, apaixona-se, entedia-se, olha para o lado (como nos vários belos momentos das barricadas, onde em vez de olhar para o conflito ela dedica atenção a casais que se beijam - a política e o amor são uma só coisa), olha para dentro de si (ato que o preto e branco da fotografia deixa muito claro; o olhar do diretor só pode ser romantizado, e é importante que o espectador tenha clareza sobre isso). E, aos poucos, vamos conhecendo aqueles jovens, entendendo tanto suas paixões quanto suas dúvidas, e experimentando uma época que antes de ser histórica era vivida - facetas que não devem se excluir. O amor não é ato; é sentimento aplicável a potências tão distintas (e, por conta disso, tão iguais) como uma garota, uma causa política, um estilo de vida, uma canção. Um filme. E por isso a política (ou a garota, o cinema, a canção, a vida) extrapola uma mínima necessidade de existência. A presença não existe sem a intensidade. A revolução, para Garrel, não era pragmaticamente social; era necessária enquanto garantia da realização de sonhos inadiáveis. Da fome da existência, tão grande que te mantém acordado durante toda a noite.

Para Garrel, Maio de 1968 não seria o conforto da percepção de que o resto do mundo escrevia por linhas tortas (como o caminhar contra o sentido da multidão, do plano final de "Os sonhadores"), mas sim de que as diferenças entre aquelas pessoas eram, todas, movidas pela paixão. E o fim do sonho não é a queda de uma utopia prática; é a vida em um mundo que impede que o amor se manifeste como bem quer. Por isso a inevitável invasão pragmática que separa Lilie e François - já no pós-revolução - é assassina. Pois Lilie é, para François, manifestação de um sentimento mais amplo que o mantém vivo. E quando razões externas impedem que esse amor (idéia) ganhe presença (concreto), a morte não é caminho ou solução, pois já é fato consumado. O instante se foi, e o que morre não é a memória. O que morre é o amor, puro e simples, e sem ele não há sentido em continuar vivendo.

Se muitos desses dados parecem fomento de pessimismo, o amargor passa longe de "Amantes constantes". Pois se a mudança é inevitável e a memória infiel, o amor é constante. Maio de 1968 seria uma manifestação coletiva desse sentimento (ou essa seria uma interpretação apaixonada dos eventos?), mas a realização do passado não é ponto final. Afinal, o amor é manifestação que se basta, e que não se completa no outro, mas dentro de quem ama. A morte pelo amor não seria mais que uma última liberdade, um ato de entrega final por aquilo que, concordando com a inevitabilidade de si mesmo, se tornou sinônimo da vida.


segunda-feira, janeiro 22, 2007

Melhores de 2006


06 - Dália negra - Brian De Palma

Em ano em que grandes diretores americanos - ou que tiveram suas carreiras estabilizadas por lá - lançaram belos filmes (não só Scorsese, Altman e Shyamalan, mas também Spielberg - especialmente com "Munique" - Bryan Singer e seu "Superhomen", Spike Lee com "Plano perfeito", etc), é curioso que Brian De Palma tenha lançado justamente o melhor deles. Curioso por De Palma não ter o destaque dos outros diretores junto a uma certa crítica cinematográfica. Curioso por ser um artista que se entrega mais abertamente ao gênero (terror, no início da carreira; mas, posteriormente, um passeio por todo cinema norte americano), esbaldando-se em suas convenções e potências estéticas. Curioso por, aparentemente, não ser autor de uma obra tão estável quanto as de Scorsese ou Spielberg - o primeiro com intenções freqüentemente vistas como mais "artísticas"; o segundo como um diretor mais comercial (ambas afirmações complicadíssimas) - muitas vezes lançando trabalhos que não são identificados pelo público como parte de um projeto autoral mais amplo (como "Missão impossível" ou "Missão Marte"). Curioso por ser um artista reconhecido popularmente por trabalhos - "Os intocáveis" e "Scarface" - que não necessariamente representam o melhor de sua obra.

Muitos desses fatores parecem estar por trás da resposta negativa generalizada a seu "Dália negra" (The Black Dahlia). Uns diziam que o roteiro do filme era mal resolvido. Outros que o filme era extremamente belo, porém visceralmente fraco. Terceiros, pior, rebateriam com o castigado "o livro é melhor". Tais afirmações me parecem dizer pouco a respeito do filme de Brian De Palma, e muito das expectativas equivocadas de um público que talvez nunca compreendera bem a obra do autor. "Dália negra" é mais um ponto alto na carreira do diretor (que já assinou obras-primas como "Carrie, a estranha" , "Um grito na noite" , "Olhos de serpente" e "Pagamento final" - tradução genérica do título que homenageio no batismo deste blog), sempre buscando explorar faces ainda obscuras da linguagem cinematográfica.

"Dália negra" é um filme que permite várias leituras. Se na superfície é mais uma bela estilização sobre as bases do cinema noir (gênero que é inspiração mais que freqüente no cinema contemporâneo), seu roteiro escancara as estruturas da indústria cinematográfica hollywoodiana à época que o noir se definia como gênero (mesmo que não conscientemente). O gênero, portanto, deixa de ser uma opção somente estética, e se coloca como dado de coerência temporal. O noir em "Dália negra" - cinema movido pela descrença do pós-guerra - não é superficial como o carrinho de bebê que referencia a escadaria de Odessa de "O encouraçado Potemkin" , em "Os intocáveis"; é elemento essencial de construção narrativa e climática, pois expressa cinematograficamente o sentimento do tempo diegético (trazendo para "Dália negra" uma camada não existente em outros neo-noir, como "O homem que não estava lá" , "Corpos ardentes" ou mesmo "Blade Runner, o caçador de andróides" ). Se a reapropriação de gêneros é constante na obra do diretor, é justamente quando ela ganha esse tipo de densidade que rende filmes mais interessantes. Quando o dispositivo é repensado enquanto estrutura, e não só aparência.

O romance de James Ellroy - que não li - é base para que Brian de Palma prossiga com sua pesquisa das potencialidades do cinema enquanto articulação do tempo e do espaço. Se o diretor redefinira o espaço como elemento de construção narrativa na magistral seqüência do baile de formatura em "Carrie, a estranha", ele parecia atingir o paroxismo em "Olhos de serpente". O uso dos falsos planos-seqüências como exploração da visibilidade das informações (tudo era mostrado, mas nada era visto no filme de 1999) chegava a um estágio onde o que importava não era a ausência do corte, mas a aparência da ausência. O visível se limita à aparência, não à existência de fato (solução visual coerente à trama de "Olhos de serpente"). Em um dos momentos mais deslumbrantes de "Dália negra", o plano-seqüência não mais tenta disfarçar o corte: a câmera sobe pelo telhado para mostrar uma moça assassinada nos fundos do prédio, e gira pelo espaço buscando um casal que caminha pela rua. Antes que o plano se estruture de fato como seqüência, o diretor corta para um rápido insert, mais próximo do casal, para logo em seguida retornar ao plano anterior. É como se De Palma chamasse à atenção o princípio de que um plano-seqüência não é somente um plano sem cortes (não é a duração do plano ou a ausência do corte que o define como seqüência), fazendo um insert pouco sutil - ou mesmo necessário - que desestabiliza a expectativa de quem vê o filme.

A imagem, em "Dália negra", comunica ao espectador os sentimentos dos personagens; fragmenta-se em espelhos e projeções como a relação de "Bucky" Bleichert (Josh Hartnett) com o sistema de estúdios (à época em seu auge) que constrói e despedaça sonhos e histórias que eventualmente reaparecem por debaixo das engrenagens (como os estúdios abandonados que guardam a solução do crime, no final do filme). É desse mundo com algum encanto, mas pouca esperança, que De Palma fala com suas imagens. Imagens, essas, que não seriam mais que a cristalização - tempo - de tudo que Hollywood - espaço - constrói, com a capacidade de fascinar típica de uma femme fatale, para depois desestabilizar (como a própria carreira do diretor) em nome de uma nova construção. Uma indústria cujos principais nomes podem, hoje, parecer distantes; mas que, sob a aparência de novidade, ainda mantém uma mesma estrutura em funcionamento.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Melhores de 2006


07 – Os infiltrados - Martin Scorsese

"Os infiltrados" (The Departed), seguramente, não é o melhor filme já feito por Martin Scorsese (demérito nenhum, considerada a relevância constante de toda a sua obra); mas talvez seja o filme que melhor sintetiza sua trajetória como artista. De um lado temos a intenção de investigar as fundações da América - intenção que foi a tônica de seus dois trabalhos anteriores (os ótimos "Gangues de Nova York" e "O aviador" ). Do outro, o retorno ao cinema de gênero (em especial aos filmes de máfia) que ele ajudara a redefinir com seus primeiros clássicos. O retorno, porém, evidencia um terceiro ingrediente: "Os infiltrados" é uma refilmagem de Infernal Affairs , produção de Hong Kong dirigido por Andrew Lau, nunca lançado no Brasil.

O dado é relevante por reforçar uma das características mais importantes do cinema de Martin Scorsese. Se o diretor foi um dos principais nomes da renovação de Hollywood dos anos 70 (a saber, uma primeira geração oriunda das escolas de cinema nos EUA - e que tentava trazer para o cinema norte-americano as inovações dos cinemas novos - e que incluía nomes como Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Brian de Palma) e redefiniu os filmes de gangster com "Caminhos perigosos", em 1973, seu cinema acabou sendo influência marcante para uma nova geração de cineastas que percebiam na obra de Scorsese um potencial ainda inexplorado para uma radical transformação do cinema de gênero. A influência de "Caminhos perigosos" ressoou de forma particularmente impressionante no cinema de ação asiático (Hong Kong em especial, porém não somente), gerando novos estetas do gênero como John Woo, Johnnie To, Andrew Lau, e influenciando até mesmo a primeira fase de Wong Kar-wai (lembrando que Andrew Lau trabalhou com Kar-wai em dois de seus filmes - incluindo aí As tears go by, flerte mais evidente do diretor com o seminal filme de Scorsese).

Retomar Infernal affairs é o reconhecimento, por parte de Scorsese, da transformação de seu legado. É a percepção de que o gênero que ele ajudara a redefinir continuou sendo trabalhado de forma relevante por outros artistas, e que ele - bom autofágico que sempre foi - tem interesse em dar sua visão sobre esses novos códigos. O cinema pelo cinema continua o interessando como no princípio de sua carreira (ao lado da nouvelle vague francesa, a nova Hollywood foi um dos movimentos cinematográficos que mais apaixonadamente assumiu o cinema como sua própria fonte de renovação), e agora ele tem a seu favor uma indústria gigantesca (em contraponto ao baixo orçamento dos anos 70) que aguarda seus trabalhos como campeões de indicações ao Oscar em potencial. Ainda assim, a trajetória de Martin Scorsese na indústria sempre pareceu funcionar como uma colaboração mútua, nunca uma assimilação; de "Cabo do medo" a "Os infiltrados", suas intenções artísticas nunca aparecem submissas aos projetos que aceita fazer.

Sua pesquisa da estrutura da sociedade americana (raciocínio que pode ser resumido no último plano de "Gangues de Nova York", onde o sangrento campo de batalha dos Five Points evolui até as torres do World Trade Center) considera, em "Os infiltrados", um novo personagem. Se em "Gangues de Nova York" temos a divisão do país em honrados grupos rivais, e em "O aviador" ganha foco o empreendedorismo sem limites, em "Os infiltrados" surgem os párias. Os ratos. Os que buscam atalhos. Tendo "Rei Lear" como molde, Scorsese conta a estória do chefe mafioso Frank Costello (Jack Nicholson - em seu melhor trabalho em bons pares de anos), que precisa repassar seu reino para um de seus "filhos" (Billy Costigan - Leonardo DiCaprio; e Colin Sullivan - Matt Damon). A diferença entre Costello e o velho rei shakespeareano é que ele sabe que algo o impede de fazer a escolha certa: ela não existe. A ética é personagem terminal, e Costello tem consciência disso. Tanto Costigan como Sullivan respondem a códigos novos, muito diferentes dos seus. Seu mundo está fadado a desaparecer com os grupos de "Gangues de Nova York". É com esse novo andar na fundação que Scorsese se aproxima politicamente, de maneira bastante improvável, do cinema de David Lynch; o plano final do filme parece sintetizar - em dialética dentro do próprio plano - a magistral seqüência de abertura de "Veludo azul": por baixo de toda cerca branca existe alguém fazendo um trabalho escuso para mante-la. O final, aberto, indica um herdeiro; só não saberemos de quem.

Acima de tudo, porém, "Os infiltrados" é uma jornada cinematográfica intensa e divertida. Seja pelo auto-humor do personagem de Jack Nicholson, pela precisão da mise en scène de Scorsese, pelo esvaziamento da violência como choque moral (mas suas infinitas possibilidades estéticas) - seja a violência física, de fato, ou a estética (como a montagem sempre agressiva de Thelma Schoonmaker) - Scorsese repensa o cinema em cada plano, em cada corte. E, como o cinéfilo que sempre foi, parece ainda se divertir intensamente com tudo isso.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Melhores de 2006


08 – A dama na água - M. Night Shyamalan

A trajetória de M. Night Shyamalan é das mais curiosas no cinema atual: lançado ao mundo como talentoso "estreante" em seu terceiro filme (ao contrário da crença popular, antes de "O sexto sentido" Shyamalan já havia lançado Praying with Anger - que ainda não vi - e "Olhos abertos" - filme que não tem o impacto estético do trabalho posterior do diretor, mas que ganha interesse em uma contextualização retrospectiva), segue construindo uma obra com ampla base industrial, mas que problematiza as estruturas narrativas da maior parte dos representantes dessa mesma indústria. Embora boa fatia da crítica tenha limitado "O sexto sentido" ao quase-gênero do final-rasteira (para o bem ou para o mal), o primeiro filme que Shyamalan assina como criador (seus projetos anteriores creditam-no como diretor, não ostentando o "an M.Night Shyamalan film" que abre o restante de sua obra) já traz suas maiores ambições como realizador: a problematização do cinema como mero jogo de aparências; a subversão dos gêneros; a crise das estórias. A aparência de final-rasteira de "O sexto sentido" (embora seja, aqui, necessário lembrar que o filme continua para além da rasteira: a tão comentada surpresa final é revelada com intensa dramaticidade, mas, com mesma a rapidez que desestabiliza o espectador, Shyamalan puxa as rédeas de sua atenção para que a estória continue - seu cinema não é apenas artifício, pois o artifício, quando presente, possui uma função narrativa) ressoa de forma um tanto incômoda em "Corpo fechado", mas desaparece por completo de suas obras mais maduras.

É difícil, porém, fazer uma distinção entre seus primeiros momentos autorais (respeitando a distinção feita pelo próprio realizador em relação aos seus primeiros filmes) e seus três últimos trabalhos. Tudo que encontramos de forma exuberante a partir de "Sinais", já estava presente em "O sexto sentido" e "Corpo fechado". A dupla crise da aparência cinematográfica como gênero e como valor (suspense + amor; super-herói + impotência; catástrofe + fé; terror + medo - de "O sexto sentido" a "A Vila", cronologicamente) se torna uma só em seu último filme: "A dama na água" (Lady in the water) é o primeiro filme de Shyamalan onde gênero e valor se tornam uma só coisa, como a "moral dos travellings" de Rosselini. "A dama na água" problematiza a fabulação em tema e gênero (em vez de usa-los como contrapontos), gerando uma equivalência entre valor e visualidade.

Assim como em "A vila", a limitação intencional do espaço narrativo o impõe como microcosmo: dessa vez estamos em um condomínio chamado "The cove" (algo que pode ser traduzido como "vale" ou "estreito" - um espaço natural, portanto), e acompanhamos Cleveland (Paul Giamatti), zelador do prédio. No centro do condomínio fica a piscina onde aparece Story (Bryce Dallas Howard), a ninfa do Mundo Azul que teria vindo parar no mundo real por uma passagem dentro da piscina. Cleveland precisa ajudar a "estória" a voltar para o mundo fantástico, ao qual pertence, a salvo. Os perigos, porém, não são naturais ao lado de cá da piscina: Story é perseguida por criaturas fantásticas que querem impedir seu retorno.

A crise da estória, portanto, tem raiz no universo das estórias. Shyamalan faz uma fábula sobre fábulas. A aparência do gênero já havia sido desconstruída em "A vila"; a questão agora, portanto, é de natureza mais profunda. Os habitantes do "The cove" têm, como todos nós, uma constante relação com a fabulação. Para entender o mundo da ninfa e planejar seu retorno (que não pode ser providenciado sozinho: cada pessoa tem uma função), Cleveland precisa da ajuda dos mais diferentes moradores do prédio. A fábula, porém, liberta tanto quanto ludibria (às vezes por ruído na compreensão dos papéis - como acontece na primeira tentativa de salvamento de Story - às vezes por uma relação esquemática com uma atividade criativa essencialmente orgânica - como é o caso do crítico de cinema interpretado por Bob Balaban, que morre por não acreditar na originalidade, tentando interpretar a ficção de forma esquemática, ignorando as particularidades da criação ao tentar enquadra-la em uma estrutura pré-definida). Para libertar a estória, Cleveland precisa destruir as aparências e buscar a essência de cada elemento necessário para a sua libertação.

A sinergia de mise en scène e valor faz de "A dama na água" um novo estágio na obra de Shyamalan. Não à toa, é um filme que encanta à mesma medida que gera estranhamento. Se seus trabalhos anteriores buscavam uma aparência realista para problematiza-las enquanto ficção, "A dama na água" cria um mundo real (basta prestarmos atenção às notícias da televisão que conectam "The cove" ao mundo contemporâneo para percebermos que - como em "Superman: o retorno" - a fronteira entre a ficção e o real não mais existe) tão estilizado que uma personagem fantástica não parece tão distante dos personagens mundanos. A piscina do condomínio é, sem dúvida, uma passagem; mas, se toda passagem é também um conector de mundos que se comunicam, esses mundos são, necessariamente, distintos. A crise da estória é a crise dessa distinção, pois as notícias da guerra do Iraque na tv passaram a habitar o universo da ficção como as fábulas se escondem no mundo real. Para restituir o valor de ambos os mundos é preciso restabelecer essa fronteira.

Shyamalan - que além de criador, faz aqui seu cameo menos modesto como Vick Ran, o personagem que escreve o livro que virá a salvar o planeta de sua própria destruição - precisa trazer Story para o mundo real não só para que o mundo fantástico volte a ser visto como tal, mas também para que nós possamos voltar a entender o nosso próprio mundo. Precisamos da ficção para descobrir quem realmente somos, assim como Cleveland identifica em seus vizinhos os valores necessários para preencherem determinados papéis no salvamento da estória. A crise da aparência, levantada por Shyamalan em toda a sua obra, chega ao extremo em "A dama na água". Porque, se a superfície da piscina é também espelho (o reflexo da aparência), suas profundezas guardam uma vida que a nossa simples razão nunca será, felizmente, capaz de decodificar por completo.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Melhores de 2006


09 – A última noite - Robert Altman

É muito comum que diretores usem o primeiro plano de seus filmes como síntese de tudo o que está por vir no resto da película. "A última noite" (A Prairie Home Companion) começa com um longo take da chegada do anoitecer sobre uma paisagem do interior dos EUA. Na banda sonora, um rádio é sintonizado. É dessa forma que Robert Altman começa seu derradeiro (de fato, o diretor faleceu no dia 20 de Novembro de 2006) filme, uma observação da hipotética última apresentação do famoso programa de rádio norte-americano que dá o título original à obra. O poente (metáfora para a morte desde que o mundo é mundo) do rádio (A Prairie Home Companion é um raro sobrevivente dos tradicionais programas de rádio americanos realizados frente a uma platéia, em um teatro, com banda residente, inserções publicitárias fictícias e apresentações musicais ao vivo), portanto, dá o tom superficial do filme. Após o longo plano, porém, Altman adicionará novas intenções ao seu último trabalho cinematográfico: as luzes de neon de uma típica lanchonete americana é cama visual para a narração em off de um detetive particular que se apresenta com o sugestivo nome de Guy Noir (Kevin Kline), e diz ter sido contratado para garantir que nada dê errado na edição final do programa. O algoz? A especulação imobiliária.

A introdução de claras evidências de um gênero - o texto soturno em primeira pessoa, o detetive particular como narrador, o Noir como sobrenome - tão marcante no segundo plano de "A última noite" desencadeia a problematização do tema aparente do filme. Por que a organização teria contratado um detetive aos moldes da literatura policial de Raymond Chandler e Dashiell Hammett para fazer a segurança do show? Aos poucos, somos apresentados a outras curiosas figuras: duas irmãs dixie singers (Meryll Streep e Lily Tomlin), uma diva (Jearlyn Steele), três cowboys (John C. Reily, Woody Harrelson e L.Q. Jones), um apresentador que construiu toda a sua carreira no rádio (Garrison Keillor). Os personagens principais de "A última noite" parecem, quase todos (com exceção da personagem-contraponto de Lindsay Lohan e do pessoal da produção do evento), vindos do passado. Porém, todo o entorno deixa claro que o filme se passa no presente. O que personagens construídos como claros fragmentos de uma iconografia americana já passada estariam fazendo por ali?

Pelas próximas duas horas, o espectador acompanhará a realização do programa em tempo real. Atores se misturam ao elenco residente do programa (o apresentador Garrison Keillor, por exemplo, faz papel de si mesmo, e ainda assina o roteiro do filme) nos excelentes números musicais (todos registrados em performances ao vivo), e a câmera dança delicadamente entre o palco e a coxia. Nos bastidores, nos são oferecidos pequenos fragmentos das vidas daqueles personagens fora dos palcos. As relações amorosas entre artistas e pessoas da produção, as discussões da personagem de Meryl Streep com sua filha (Lindsay Lohan), a insistência do diretor do programa para que a dupla de cowboys de Reily e Harrelson não apresente canções que possam ofender a audiência familiar do programa (recomendação que eles iriam desrespeitar com a hilária "Bad jokes"). Rondando o ambiente, porém, surge mais uma figura curiosa: uma mulher de cabelos loiros cacheados, toda vestida de branco, que o filme identificaria com o nome de Dangerous Woman (interpretada por Virginia Madsen). A estranha mulher causa fascínio nos personagens principais (especialmente no detetive Guy Noir), mas ao mesmo tempo transita pelo palco sem ser notada. Se o elenco de A Prairie Home Companion parece saído do passado, a mulher de branco vem de outro mundo.

É com essa forte crença simbólica que Robert Altman discorrerá sobre a morte. A mulher de branco que ronda a última edição do programa se aproxima dos personagens como o poente no plano inicial do filme, e traça seus destinos. "A última noite" não é apenas um filme sobre a destruição de um bem cultural pela especulação imobiliária, mas sim sobre o ocaso de uma iconografia que não encontra mais lugar na sociedade americana contemporânea. A sociedade que gerou o cinema noir, as divas do jazz, a música country, o western, se transformou (se aceitarmos a personagem de Lindsay Lohan como indicador do presente dessa sociedade, ela hoje venderia artigos religiosos pela internet), e não consegue mais conviver com esses ícones (e a readaptação não é disfarce real para a morte - como deixa claro o extraordinário desfecho).

A morte, portanto, é destino incontornável. Ciente disso, Robert Altman se despede com um filme que é tão melancólico quanto vibrante. E se as irmãs cantoras exorcizam a tristeza da perda pela música, "A última noite" nos leva para dançar por duas horas com números musicais deliciosos e atuações curiosamente estilizadas. Embora para muitos se torne uma jornada desagradável - é, de fato, um filme que parece ter tanta facilidade para cativar certos espectadores quanto para afastar outros - a última obra de Robert Altman é mais que o relato de um homem que já se vê próximo da morte o suficiente para olha-la nos olhos. É a constatação desse mesmo homem de que o mundo em que ele está morrendo pouco tem a ver com aquele no qual ele nascera. E que essa diferença, essa mudança, é justamente o que ele pode chamar de vida.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Melhores de 2006

Depois de muito assoar o nariz para tentar me livrar do sangue dos candidatos que por tanto tempo se degladiaram em minha cabeça, chega a hora de anunciar meus heróis. Curiosa esta idéia de listar as coisas. Pensando em tudo que vi/ouvi em 2006 (considerando que só farei listas dos melhores filmes e discos do ano), é inevitável perceber as mãos do acaso sempre guiando meus cotovelos: a maior parte dos filmes que figuram a lista não foi sequer lançada oficialmente em 2006 (uso como critério o lançamento comercial do filme no Rio de Janeiro, o que faz com que várias obras exibidas, aqui, com atraso ganhem posições na lista), e os discos que mais ouvi em 2006 não foram de fato lançados no ano recém-finado (como o lançamento nacional seria um critério inviável, guio-me pelas datas de lançamento oficiais, tirando da lista todos os discos de 2005 que só fui ouvir em 2006).

Essas escolhas, portanto, não passam de uma série de coincidências. São os filmes e discos que, por maior ou menor obra do acaso, cruzaram meu caminho em 2006 de forma significativa. Remoendo a lista de filmes (pela qual começo, hoje), por exemplo, quase não resisto à tentação de guardar poltronas para novas obras de realizadores que admiro, mas que por algum motivo ainda não consegui assistir. Penso em "Espelho Mágico", de Manoel de Oliveira (que ano passado sentou-se ao trono com o impressionante "Um filme falado"), "O novo mundo" de Terrence Malick (diretor que sempre surpreende ao lançar um novo filme – lembrando que vinte anos se passaram entre "Dias no paraíso" e "Além da linha vermelha"), "Eu me lembro", longa de estréia do baiano Edgar Navarro (autor do extraordinário "SuperOutro"), ou mesmo "Eleição", de Johnnie To (filme não exibido no Rio - embora lançado em outros lugares do Brasil - primeira parte da trilogia fechada pelo impressionante "Exiled", que vi no Festival do Rio).

Ainda assim, reconhecendo toda essa aleatoriedade, essas listas são apenas desculpas. Desculpas para tentar detectar novas tendências artísticas, para regurgitar o impacto pessoal de determinadas obras, para escrever com maior regularidade, ou mesmo para discutir toda essa gratuidade. Desculpas, portanto, para coisas boas, o que já me parece motivo suficiente para faze-las. Antes que a musiquinha do Oscar comece a tocar e os seguranças disfarçados de modelos decotadas venham me tirar do palco, começo pelo décimo melhor filme de 2006.


10 – O ano em que meus pais saíram de férias – Cao Hamburger

Não sei se é por condescendência ou não, mas todo ano um filme brasileiro encontra lugar nas minhas listas de melhores do ano. Apesar de não ter faltado confete por aí ao último filme de Karin Ainouz (o bom, porém tímido, "O céu de Suely"), há muito não me via tão encantado com um filme nacional como fiquei ao assistir "O ano em que meus pais saíram de férias", segundo longa de Cao Hamburger (que estreou em longas-metragens com "Castelo Rá-Tim-Bum, o filme", em 1999).

Embora a idéia central aparente trazer vários cacoetes do cinema brasileiro contemporâneo (a opção pelo passado como tempo narrativo; a escolha de um tema historicamente "grande"; a necessária ambientação de época; a obrigação de ter uma superfície de relevância política), o filme de Cao Hamburger é mais uma prova de que a arte diz mais respeito ao "como" do que ao "o quê": mesmo tratando de um período memorial já muito castigado pelo cinema nacional (a ditatura militar), o diretor deita sobre seu tema um olhar particular e extremamente sensível.

A estória acompanha os olhos de Mauro (Michel Joelsas), filho único deixado aos cuidados do avô para que seus pais possam sair "de férias". Ao longo do trajeto, o nervosismo dos pais ao passar por um comboio militar denota as férias como forçadas. Mauro, no banco de trás, olha para os soldados da mesma forma que admira os prédios altos de São Paulo, através do vidro do carro. Chegando no prédio do avô – um edifício habitado predominantemente por famílias judaicas – descobrimos com Mauro que seu avô falecera, em uma improvável coincidência de eventos que é articulada pelo diretor sem nenhuma estranheza. Mauro será adotado pelo vizinho Shlomo (Germano Haiut), e aos poucos por todo o resto da comunidade, até que seus pais retornem.

"O ano em que meus pais saíram de férias" é mais um relato do momento – sempre sofrido, mas também sempre fascinante – em que o mundo infantil é atormentado por questões propriamente adultas (tema já explorado com abordagens tão distintas como a de Shinji Aoyama em "Eureka", ou Richard Donner em "Goonies"). Fascinante por a infância ser, talvez, a fase de manifestação mais bruta da humanidade. Mauro se chateia por não poder ver a Copa do Mundo ao lado do pai – como ele havia lhe prometido – mas não deixa, por isso, de vibrar com os jogos ao lado de sua nova "família". Ele pode estar distante de sua mãe, mas ao mesmo tempo está descobrindo o amor, seja pelo platonismo (a seqüência em que o garoto manifesta sua admiração pelo namorado de Irene é dos momentos mais cativantes de todo o filme), seja por se sentir simplesmente querido (sua relação com a amiga Hanna, personagem de Daniela Piepszyk, autora da mais notável atuação entre as crianças do filme). Seu avô não está mais presente, mas todos os idosos do prédio se mostram avós em potencial.

O filme, porém, não estabelece uma lógica de substituição como solução (o que fica claro em todo o desenrolar final), mas sim flagra a capacidade humana de se restabelecer e seguir com a vida. Temos, sim, um mar de tristezas, mas temos também um enorme mundo a descobrir pela frente. Temos a ditadura militar, mas temos também a seleção brasileira de futebol. E, aos moldes de Hayao Myiazaki na obra-prima "Meu vizinho Totoro", Hamburger guia o espectador pelos olhos da criança: assim como Mauro, percebemos signos ao nosso redor (nesse sentido, a direção de arte é preciosa: não temos nenhuma dúvida de estarmos vendo uma estória que se passa nos anos 70, mas não por isso precisamos ser confrontados com ícones de época a cada fotograma), mas esses signos trazem informações insuficientes, incompletas (ainda mais se levarmos em consideração que, não se tratando propriamente de um filme infantil, o espectador possui uma bagagem de signos mais ampla do que os olhares infantis de quem os guia). Sentimos os efeitos dos acontecimentos, mesmo que eles só sejam vistos parcialmente (ou sequer isso, como o destino do pai). A câmera, assim como Mauro, enxerga por frestas, por reflexos, por molduras criadas pelo próprio ambiente. A História é sempre entreouvida, nunca mais que isso.

A comparação com recentes sucessos do cinema argentino, portanto, é explicável: "O ano em que meus pais saíram de férias" traz à superfície o vigor melodramático de "Valentín" (Alejandro Agresti), alinhando-se, nas entrelinhas, à estratégia de discurso de Juan José Campanella (que, com o belíssimo "O filho da noiva", fez possivelmente o melhor filme sobre a recente crise política Argentina). A semelhança, porém, está na leveza das pinceladas: toda a abordagem de Hamburger prima pela delicadeza, e a delicadeza é chave de muitas portas. "O ano em que meus pais saíram de férias" é político, mas não é panfleto; é brasileiro (se é que tal idéia existe esteticamente), mas prefere escrever com letras minúsculas; é triste, mas faz rir; é cunhado com mãos precisas, porém extremamente leves; é sobre a História, mas é sobretudo sobre como ela transforma a vida das pessoas. Ao fim do filme, o que fica é aquela sensação incômoda - tão particular aos momentos em que decidimos tirar a poeira do passado - aquela inquietação quando percebemos que a vida, em cada um de seus momentos, é uma estranha combinação de tristeza com felicidade.