quinta-feira, janeiro 11, 2007

Melhores de 2006


09 – A última noite - Robert Altman

É muito comum que diretores usem o primeiro plano de seus filmes como síntese de tudo o que está por vir no resto da película. "A última noite" (A Prairie Home Companion) começa com um longo take da chegada do anoitecer sobre uma paisagem do interior dos EUA. Na banda sonora, um rádio é sintonizado. É dessa forma que Robert Altman começa seu derradeiro (de fato, o diretor faleceu no dia 20 de Novembro de 2006) filme, uma observação da hipotética última apresentação do famoso programa de rádio norte-americano que dá o título original à obra. O poente (metáfora para a morte desde que o mundo é mundo) do rádio (A Prairie Home Companion é um raro sobrevivente dos tradicionais programas de rádio americanos realizados frente a uma platéia, em um teatro, com banda residente, inserções publicitárias fictícias e apresentações musicais ao vivo), portanto, dá o tom superficial do filme. Após o longo plano, porém, Altman adicionará novas intenções ao seu último trabalho cinematográfico: as luzes de neon de uma típica lanchonete americana é cama visual para a narração em off de um detetive particular que se apresenta com o sugestivo nome de Guy Noir (Kevin Kline), e diz ter sido contratado para garantir que nada dê errado na edição final do programa. O algoz? A especulação imobiliária.

A introdução de claras evidências de um gênero - o texto soturno em primeira pessoa, o detetive particular como narrador, o Noir como sobrenome - tão marcante no segundo plano de "A última noite" desencadeia a problematização do tema aparente do filme. Por que a organização teria contratado um detetive aos moldes da literatura policial de Raymond Chandler e Dashiell Hammett para fazer a segurança do show? Aos poucos, somos apresentados a outras curiosas figuras: duas irmãs dixie singers (Meryll Streep e Lily Tomlin), uma diva (Jearlyn Steele), três cowboys (John C. Reily, Woody Harrelson e L.Q. Jones), um apresentador que construiu toda a sua carreira no rádio (Garrison Keillor). Os personagens principais de "A última noite" parecem, quase todos (com exceção da personagem-contraponto de Lindsay Lohan e do pessoal da produção do evento), vindos do passado. Porém, todo o entorno deixa claro que o filme se passa no presente. O que personagens construídos como claros fragmentos de uma iconografia americana já passada estariam fazendo por ali?

Pelas próximas duas horas, o espectador acompanhará a realização do programa em tempo real. Atores se misturam ao elenco residente do programa (o apresentador Garrison Keillor, por exemplo, faz papel de si mesmo, e ainda assina o roteiro do filme) nos excelentes números musicais (todos registrados em performances ao vivo), e a câmera dança delicadamente entre o palco e a coxia. Nos bastidores, nos são oferecidos pequenos fragmentos das vidas daqueles personagens fora dos palcos. As relações amorosas entre artistas e pessoas da produção, as discussões da personagem de Meryl Streep com sua filha (Lindsay Lohan), a insistência do diretor do programa para que a dupla de cowboys de Reily e Harrelson não apresente canções que possam ofender a audiência familiar do programa (recomendação que eles iriam desrespeitar com a hilária "Bad jokes"). Rondando o ambiente, porém, surge mais uma figura curiosa: uma mulher de cabelos loiros cacheados, toda vestida de branco, que o filme identificaria com o nome de Dangerous Woman (interpretada por Virginia Madsen). A estranha mulher causa fascínio nos personagens principais (especialmente no detetive Guy Noir), mas ao mesmo tempo transita pelo palco sem ser notada. Se o elenco de A Prairie Home Companion parece saído do passado, a mulher de branco vem de outro mundo.

É com essa forte crença simbólica que Robert Altman discorrerá sobre a morte. A mulher de branco que ronda a última edição do programa se aproxima dos personagens como o poente no plano inicial do filme, e traça seus destinos. "A última noite" não é apenas um filme sobre a destruição de um bem cultural pela especulação imobiliária, mas sim sobre o ocaso de uma iconografia que não encontra mais lugar na sociedade americana contemporânea. A sociedade que gerou o cinema noir, as divas do jazz, a música country, o western, se transformou (se aceitarmos a personagem de Lindsay Lohan como indicador do presente dessa sociedade, ela hoje venderia artigos religiosos pela internet), e não consegue mais conviver com esses ícones (e a readaptação não é disfarce real para a morte - como deixa claro o extraordinário desfecho).

A morte, portanto, é destino incontornável. Ciente disso, Robert Altman se despede com um filme que é tão melancólico quanto vibrante. E se as irmãs cantoras exorcizam a tristeza da perda pela música, "A última noite" nos leva para dançar por duas horas com números musicais deliciosos e atuações curiosamente estilizadas. Embora para muitos se torne uma jornada desagradável - é, de fato, um filme que parece ter tanta facilidade para cativar certos espectadores quanto para afastar outros - a última obra de Robert Altman é mais que o relato de um homem que já se vê próximo da morte o suficiente para olha-la nos olhos. É a constatação desse mesmo homem de que o mundo em que ele está morrendo pouco tem a ver com aquele no qual ele nascera. E que essa diferença, essa mudança, é justamente o que ele pode chamar de vida.

1 comentários:

Anônimo disse...

vai acabar levando um oscar póstumo. entrado na lista.