terça-feira, janeiro 23, 2007

Melhores de 2006


05 - Amantes constantes - Philippe Garrel

Diante de qualquer filme, evito fazer comparações que, por algum critério, me pareçam por demais óbvias. Com "Amantes constantes" (Les amants réguliers) - primeiro longa metragem de Philippe Garrel (veterano que possui outros 26 filmes no currículo) a ser lançado comercialmente no Brasil - a comparação óbvia se torna inevitável por se tratar de um filme-resposta. Em determinado momento das quase 3 horas de "Amantes constantes", a co-protagonista Lilie (Clotilde Hesme) se vira para a câmera e, em tom ao mesmo tempo hilário e despudorado, acusa o culpado: "Bernardo Bertolucci". Apesar da conversa se justificar diegeticamente por "Antes da revolução", Garrel se refere claramente a "Os sonhadores" - desastrosa tentativa de revisão crítica, por Bertolucci, dos eventos de Maio de 1968. O filme de Bertolucci, que se mantinha à mente toda vez que François (Louis Garrel - filho de Philippe e protagonista, também, de "Os sonhadores") entrava em quadro, seria um oposto simétrico a "Amantes constantes", embora ambos tenham intenções históricas (mas não estéticas) parecidas.

Tanto Garrel quanto Bertolucci participaram dos acontecimentos que marcaram Maio de 1968 nos calendários da História. O abismo que os separa na tela é apenas reflexo de duas revisões distintas: a de Garrel, de apaixonada auto-crítica; a de Bertolucci, amargurada em saudosismo. Embora a idéia de filme-resposta possa parecer reducionista (e o filme de Garrel sobrevive muito além disso), é curioso perceber onde as diferentes abordagens bifurcam, e o efeito de tais bifurcações nos filmes. Ambos partem de uma aproximação ao documentário, porém a intenções quase opostas dentro da própria tradição documentarista. Enquanto Bertolucci se aproxima da escola inglesa de John Grierson com a adição de imagens de arquivo à sua reconstituição do episódio da cinemateca francesa (aproximação que será constantemente refletida na ausência de naturalidade das conversas entre os personagens principais - quase discursos oniscientes em off do diretor), Garrel se aconchega ao lado do cinema direto (e do verité francês) construindo uma narrativa de imersão. A declaração feita com essa aproximação é clara: Garrel viveu os momentos que retrata, mas não os viveu de forma imparcial, externa ou soberana. Seu olhar é construído de dentro do momento, e a única maneira justa de conduzir o espectador por essa experiência é colocando-o ao seu lado, no tempo e no espaço (mesmo que recriados). Resta-nos, portanto, viver o filme.

A proximidade, com efeito, é um dado essencial em "Amantes constantes". Seja nas barricadas ou na república onde boa parte do filme se dá, a câmera se coloca como mais um daqueles jovens. E, assim como eles, apaixona-se, entedia-se, olha para o lado (como nos vários belos momentos das barricadas, onde em vez de olhar para o conflito ela dedica atenção a casais que se beijam - a política e o amor são uma só coisa), olha para dentro de si (ato que o preto e branco da fotografia deixa muito claro; o olhar do diretor só pode ser romantizado, e é importante que o espectador tenha clareza sobre isso). E, aos poucos, vamos conhecendo aqueles jovens, entendendo tanto suas paixões quanto suas dúvidas, e experimentando uma época que antes de ser histórica era vivida - facetas que não devem se excluir. O amor não é ato; é sentimento aplicável a potências tão distintas (e, por conta disso, tão iguais) como uma garota, uma causa política, um estilo de vida, uma canção. Um filme. E por isso a política (ou a garota, o cinema, a canção, a vida) extrapola uma mínima necessidade de existência. A presença não existe sem a intensidade. A revolução, para Garrel, não era pragmaticamente social; era necessária enquanto garantia da realização de sonhos inadiáveis. Da fome da existência, tão grande que te mantém acordado durante toda a noite.

Para Garrel, Maio de 1968 não seria o conforto da percepção de que o resto do mundo escrevia por linhas tortas (como o caminhar contra o sentido da multidão, do plano final de "Os sonhadores"), mas sim de que as diferenças entre aquelas pessoas eram, todas, movidas pela paixão. E o fim do sonho não é a queda de uma utopia prática; é a vida em um mundo que impede que o amor se manifeste como bem quer. Por isso a inevitável invasão pragmática que separa Lilie e François - já no pós-revolução - é assassina. Pois Lilie é, para François, manifestação de um sentimento mais amplo que o mantém vivo. E quando razões externas impedem que esse amor (idéia) ganhe presença (concreto), a morte não é caminho ou solução, pois já é fato consumado. O instante se foi, e o que morre não é a memória. O que morre é o amor, puro e simples, e sem ele não há sentido em continuar vivendo.

Se muitos desses dados parecem fomento de pessimismo, o amargor passa longe de "Amantes constantes". Pois se a mudança é inevitável e a memória infiel, o amor é constante. Maio de 1968 seria uma manifestação coletiva desse sentimento (ou essa seria uma interpretação apaixonada dos eventos?), mas a realização do passado não é ponto final. Afinal, o amor é manifestação que se basta, e que não se completa no outro, mas dentro de quem ama. A morte pelo amor não seria mais que uma última liberdade, um ato de entrega final por aquilo que, concordando com a inevitabilidade de si mesmo, se tornou sinônimo da vida.


1 comentários:

Rubem disse...

Oh, nooooo!

Mais um filme que eu não vi.