quinta-feira, janeiro 18, 2007

Melhores de 2006


07 – Os infiltrados - Martin Scorsese

"Os infiltrados" (The Departed), seguramente, não é o melhor filme já feito por Martin Scorsese (demérito nenhum, considerada a relevância constante de toda a sua obra); mas talvez seja o filme que melhor sintetiza sua trajetória como artista. De um lado temos a intenção de investigar as fundações da América - intenção que foi a tônica de seus dois trabalhos anteriores (os ótimos "Gangues de Nova York" e "O aviador" ). Do outro, o retorno ao cinema de gênero (em especial aos filmes de máfia) que ele ajudara a redefinir com seus primeiros clássicos. O retorno, porém, evidencia um terceiro ingrediente: "Os infiltrados" é uma refilmagem de Infernal Affairs , produção de Hong Kong dirigido por Andrew Lau, nunca lançado no Brasil.

O dado é relevante por reforçar uma das características mais importantes do cinema de Martin Scorsese. Se o diretor foi um dos principais nomes da renovação de Hollywood dos anos 70 (a saber, uma primeira geração oriunda das escolas de cinema nos EUA - e que tentava trazer para o cinema norte-americano as inovações dos cinemas novos - e que incluía nomes como Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Brian de Palma) e redefiniu os filmes de gangster com "Caminhos perigosos", em 1973, seu cinema acabou sendo influência marcante para uma nova geração de cineastas que percebiam na obra de Scorsese um potencial ainda inexplorado para uma radical transformação do cinema de gênero. A influência de "Caminhos perigosos" ressoou de forma particularmente impressionante no cinema de ação asiático (Hong Kong em especial, porém não somente), gerando novos estetas do gênero como John Woo, Johnnie To, Andrew Lau, e influenciando até mesmo a primeira fase de Wong Kar-wai (lembrando que Andrew Lau trabalhou com Kar-wai em dois de seus filmes - incluindo aí As tears go by, flerte mais evidente do diretor com o seminal filme de Scorsese).

Retomar Infernal affairs é o reconhecimento, por parte de Scorsese, da transformação de seu legado. É a percepção de que o gênero que ele ajudara a redefinir continuou sendo trabalhado de forma relevante por outros artistas, e que ele - bom autofágico que sempre foi - tem interesse em dar sua visão sobre esses novos códigos. O cinema pelo cinema continua o interessando como no princípio de sua carreira (ao lado da nouvelle vague francesa, a nova Hollywood foi um dos movimentos cinematográficos que mais apaixonadamente assumiu o cinema como sua própria fonte de renovação), e agora ele tem a seu favor uma indústria gigantesca (em contraponto ao baixo orçamento dos anos 70) que aguarda seus trabalhos como campeões de indicações ao Oscar em potencial. Ainda assim, a trajetória de Martin Scorsese na indústria sempre pareceu funcionar como uma colaboração mútua, nunca uma assimilação; de "Cabo do medo" a "Os infiltrados", suas intenções artísticas nunca aparecem submissas aos projetos que aceita fazer.

Sua pesquisa da estrutura da sociedade americana (raciocínio que pode ser resumido no último plano de "Gangues de Nova York", onde o sangrento campo de batalha dos Five Points evolui até as torres do World Trade Center) considera, em "Os infiltrados", um novo personagem. Se em "Gangues de Nova York" temos a divisão do país em honrados grupos rivais, e em "O aviador" ganha foco o empreendedorismo sem limites, em "Os infiltrados" surgem os párias. Os ratos. Os que buscam atalhos. Tendo "Rei Lear" como molde, Scorsese conta a estória do chefe mafioso Frank Costello (Jack Nicholson - em seu melhor trabalho em bons pares de anos), que precisa repassar seu reino para um de seus "filhos" (Billy Costigan - Leonardo DiCaprio; e Colin Sullivan - Matt Damon). A diferença entre Costello e o velho rei shakespeareano é que ele sabe que algo o impede de fazer a escolha certa: ela não existe. A ética é personagem terminal, e Costello tem consciência disso. Tanto Costigan como Sullivan respondem a códigos novos, muito diferentes dos seus. Seu mundo está fadado a desaparecer com os grupos de "Gangues de Nova York". É com esse novo andar na fundação que Scorsese se aproxima politicamente, de maneira bastante improvável, do cinema de David Lynch; o plano final do filme parece sintetizar - em dialética dentro do próprio plano - a magistral seqüência de abertura de "Veludo azul": por baixo de toda cerca branca existe alguém fazendo um trabalho escuso para mante-la. O final, aberto, indica um herdeiro; só não saberemos de quem.

Acima de tudo, porém, "Os infiltrados" é uma jornada cinematográfica intensa e divertida. Seja pelo auto-humor do personagem de Jack Nicholson, pela precisão da mise en scène de Scorsese, pelo esvaziamento da violência como choque moral (mas suas infinitas possibilidades estéticas) - seja a violência física, de fato, ou a estética (como a montagem sempre agressiva de Thelma Schoonmaker) - Scorsese repensa o cinema em cada plano, em cada corte. E, como o cinéfilo que sempre foi, parece ainda se divertir intensamente com tudo isso.

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