terça-feira, janeiro 09, 2007

Melhores de 2006

Depois de muito assoar o nariz para tentar me livrar do sangue dos candidatos que por tanto tempo se degladiaram em minha cabeça, chega a hora de anunciar meus heróis. Curiosa esta idéia de listar as coisas. Pensando em tudo que vi/ouvi em 2006 (considerando que só farei listas dos melhores filmes e discos do ano), é inevitável perceber as mãos do acaso sempre guiando meus cotovelos: a maior parte dos filmes que figuram a lista não foi sequer lançada oficialmente em 2006 (uso como critério o lançamento comercial do filme no Rio de Janeiro, o que faz com que várias obras exibidas, aqui, com atraso ganhem posições na lista), e os discos que mais ouvi em 2006 não foram de fato lançados no ano recém-finado (como o lançamento nacional seria um critério inviável, guio-me pelas datas de lançamento oficiais, tirando da lista todos os discos de 2005 que só fui ouvir em 2006).

Essas escolhas, portanto, não passam de uma série de coincidências. São os filmes e discos que, por maior ou menor obra do acaso, cruzaram meu caminho em 2006 de forma significativa. Remoendo a lista de filmes (pela qual começo, hoje), por exemplo, quase não resisto à tentação de guardar poltronas para novas obras de realizadores que admiro, mas que por algum motivo ainda não consegui assistir. Penso em "Espelho Mágico", de Manoel de Oliveira (que ano passado sentou-se ao trono com o impressionante "Um filme falado"), "O novo mundo" de Terrence Malick (diretor que sempre surpreende ao lançar um novo filme – lembrando que vinte anos se passaram entre "Dias no paraíso" e "Além da linha vermelha"), "Eu me lembro", longa de estréia do baiano Edgar Navarro (autor do extraordinário "SuperOutro"), ou mesmo "Eleição", de Johnnie To (filme não exibido no Rio - embora lançado em outros lugares do Brasil - primeira parte da trilogia fechada pelo impressionante "Exiled", que vi no Festival do Rio).

Ainda assim, reconhecendo toda essa aleatoriedade, essas listas são apenas desculpas. Desculpas para tentar detectar novas tendências artísticas, para regurgitar o impacto pessoal de determinadas obras, para escrever com maior regularidade, ou mesmo para discutir toda essa gratuidade. Desculpas, portanto, para coisas boas, o que já me parece motivo suficiente para faze-las. Antes que a musiquinha do Oscar comece a tocar e os seguranças disfarçados de modelos decotadas venham me tirar do palco, começo pelo décimo melhor filme de 2006.


10 – O ano em que meus pais saíram de férias – Cao Hamburger

Não sei se é por condescendência ou não, mas todo ano um filme brasileiro encontra lugar nas minhas listas de melhores do ano. Apesar de não ter faltado confete por aí ao último filme de Karin Ainouz (o bom, porém tímido, "O céu de Suely"), há muito não me via tão encantado com um filme nacional como fiquei ao assistir "O ano em que meus pais saíram de férias", segundo longa de Cao Hamburger (que estreou em longas-metragens com "Castelo Rá-Tim-Bum, o filme", em 1999).

Embora a idéia central aparente trazer vários cacoetes do cinema brasileiro contemporâneo (a opção pelo passado como tempo narrativo; a escolha de um tema historicamente "grande"; a necessária ambientação de época; a obrigação de ter uma superfície de relevância política), o filme de Cao Hamburger é mais uma prova de que a arte diz mais respeito ao "como" do que ao "o quê": mesmo tratando de um período memorial já muito castigado pelo cinema nacional (a ditatura militar), o diretor deita sobre seu tema um olhar particular e extremamente sensível.

A estória acompanha os olhos de Mauro (Michel Joelsas), filho único deixado aos cuidados do avô para que seus pais possam sair "de férias". Ao longo do trajeto, o nervosismo dos pais ao passar por um comboio militar denota as férias como forçadas. Mauro, no banco de trás, olha para os soldados da mesma forma que admira os prédios altos de São Paulo, através do vidro do carro. Chegando no prédio do avô – um edifício habitado predominantemente por famílias judaicas – descobrimos com Mauro que seu avô falecera, em uma improvável coincidência de eventos que é articulada pelo diretor sem nenhuma estranheza. Mauro será adotado pelo vizinho Shlomo (Germano Haiut), e aos poucos por todo o resto da comunidade, até que seus pais retornem.

"O ano em que meus pais saíram de férias" é mais um relato do momento – sempre sofrido, mas também sempre fascinante – em que o mundo infantil é atormentado por questões propriamente adultas (tema já explorado com abordagens tão distintas como a de Shinji Aoyama em "Eureka", ou Richard Donner em "Goonies"). Fascinante por a infância ser, talvez, a fase de manifestação mais bruta da humanidade. Mauro se chateia por não poder ver a Copa do Mundo ao lado do pai – como ele havia lhe prometido – mas não deixa, por isso, de vibrar com os jogos ao lado de sua nova "família". Ele pode estar distante de sua mãe, mas ao mesmo tempo está descobrindo o amor, seja pelo platonismo (a seqüência em que o garoto manifesta sua admiração pelo namorado de Irene é dos momentos mais cativantes de todo o filme), seja por se sentir simplesmente querido (sua relação com a amiga Hanna, personagem de Daniela Piepszyk, autora da mais notável atuação entre as crianças do filme). Seu avô não está mais presente, mas todos os idosos do prédio se mostram avós em potencial.

O filme, porém, não estabelece uma lógica de substituição como solução (o que fica claro em todo o desenrolar final), mas sim flagra a capacidade humana de se restabelecer e seguir com a vida. Temos, sim, um mar de tristezas, mas temos também um enorme mundo a descobrir pela frente. Temos a ditadura militar, mas temos também a seleção brasileira de futebol. E, aos moldes de Hayao Myiazaki na obra-prima "Meu vizinho Totoro", Hamburger guia o espectador pelos olhos da criança: assim como Mauro, percebemos signos ao nosso redor (nesse sentido, a direção de arte é preciosa: não temos nenhuma dúvida de estarmos vendo uma estória que se passa nos anos 70, mas não por isso precisamos ser confrontados com ícones de época a cada fotograma), mas esses signos trazem informações insuficientes, incompletas (ainda mais se levarmos em consideração que, não se tratando propriamente de um filme infantil, o espectador possui uma bagagem de signos mais ampla do que os olhares infantis de quem os guia). Sentimos os efeitos dos acontecimentos, mesmo que eles só sejam vistos parcialmente (ou sequer isso, como o destino do pai). A câmera, assim como Mauro, enxerga por frestas, por reflexos, por molduras criadas pelo próprio ambiente. A História é sempre entreouvida, nunca mais que isso.

A comparação com recentes sucessos do cinema argentino, portanto, é explicável: "O ano em que meus pais saíram de férias" traz à superfície o vigor melodramático de "Valentín" (Alejandro Agresti), alinhando-se, nas entrelinhas, à estratégia de discurso de Juan José Campanella (que, com o belíssimo "O filho da noiva", fez possivelmente o melhor filme sobre a recente crise política Argentina). A semelhança, porém, está na leveza das pinceladas: toda a abordagem de Hamburger prima pela delicadeza, e a delicadeza é chave de muitas portas. "O ano em que meus pais saíram de férias" é político, mas não é panfleto; é brasileiro (se é que tal idéia existe esteticamente), mas prefere escrever com letras minúsculas; é triste, mas faz rir; é cunhado com mãos precisas, porém extremamente leves; é sobre a História, mas é sobretudo sobre como ela transforma a vida das pessoas. Ao fim do filme, o que fica é aquela sensação incômoda - tão particular aos momentos em que decidimos tirar a poeira do passado - aquela inquietação quando percebemos que a vida, em cada um de seus momentos, é uma estranha combinação de tristeza com felicidade.

7 comentários:

Anônimo disse...

qual é a frase que o totoro carrega numa tabuleta, tem uma coisa com não alimente, não tem? ou me confundo (pra variar)?

texto poderia figurar na contracampo; fácil.

Fábio Andrade disse...

seria isso uma crítica ou um elogio?

Rubem disse...

Eu tomaria como ofensa.

E falando em Cao Hamburguer, no fim de semana eu comi um hamburguer muito bom no hard rock cafe.

Anônimo disse...

é elogio, cacete! qdo melhorar (mais), cahier du cinemà.

como diria "seu" Walter Lima comentando o "deus e o diabo na terra do sol": "Glauber precisava de alguém que falasse esse idioma chamado 'cinemês'". Basicamente como me sinto quando em confronto com seu texto fílmico.

Rubem disse...

Fabito,

O Casal Osterman do Peckinpah nas Lojas Americanas por 9,99.

Anônimo disse...

Texto bom mesmo!
(sou mais o moleque como "atuação infantil"!)Abç

Anônimo disse...

atuação infantil é exploração de menores?