segunda-feira, janeiro 22, 2007

Melhores de 2006


06 - Dália negra - Brian De Palma

Em ano em que grandes diretores americanos - ou que tiveram suas carreiras estabilizadas por lá - lançaram belos filmes (não só Scorsese, Altman e Shyamalan, mas também Spielberg - especialmente com "Munique" - Bryan Singer e seu "Superhomen", Spike Lee com "Plano perfeito", etc), é curioso que Brian De Palma tenha lançado justamente o melhor deles. Curioso por De Palma não ter o destaque dos outros diretores junto a uma certa crítica cinematográfica. Curioso por ser um artista que se entrega mais abertamente ao gênero (terror, no início da carreira; mas, posteriormente, um passeio por todo cinema norte americano), esbaldando-se em suas convenções e potências estéticas. Curioso por, aparentemente, não ser autor de uma obra tão estável quanto as de Scorsese ou Spielberg - o primeiro com intenções freqüentemente vistas como mais "artísticas"; o segundo como um diretor mais comercial (ambas afirmações complicadíssimas) - muitas vezes lançando trabalhos que não são identificados pelo público como parte de um projeto autoral mais amplo (como "Missão impossível" ou "Missão Marte"). Curioso por ser um artista reconhecido popularmente por trabalhos - "Os intocáveis" e "Scarface" - que não necessariamente representam o melhor de sua obra.

Muitos desses fatores parecem estar por trás da resposta negativa generalizada a seu "Dália negra" (The Black Dahlia). Uns diziam que o roteiro do filme era mal resolvido. Outros que o filme era extremamente belo, porém visceralmente fraco. Terceiros, pior, rebateriam com o castigado "o livro é melhor". Tais afirmações me parecem dizer pouco a respeito do filme de Brian De Palma, e muito das expectativas equivocadas de um público que talvez nunca compreendera bem a obra do autor. "Dália negra" é mais um ponto alto na carreira do diretor (que já assinou obras-primas como "Carrie, a estranha" , "Um grito na noite" , "Olhos de serpente" e "Pagamento final" - tradução genérica do título que homenageio no batismo deste blog), sempre buscando explorar faces ainda obscuras da linguagem cinematográfica.

"Dália negra" é um filme que permite várias leituras. Se na superfície é mais uma bela estilização sobre as bases do cinema noir (gênero que é inspiração mais que freqüente no cinema contemporâneo), seu roteiro escancara as estruturas da indústria cinematográfica hollywoodiana à época que o noir se definia como gênero (mesmo que não conscientemente). O gênero, portanto, deixa de ser uma opção somente estética, e se coloca como dado de coerência temporal. O noir em "Dália negra" - cinema movido pela descrença do pós-guerra - não é superficial como o carrinho de bebê que referencia a escadaria de Odessa de "O encouraçado Potemkin" , em "Os intocáveis"; é elemento essencial de construção narrativa e climática, pois expressa cinematograficamente o sentimento do tempo diegético (trazendo para "Dália negra" uma camada não existente em outros neo-noir, como "O homem que não estava lá" , "Corpos ardentes" ou mesmo "Blade Runner, o caçador de andróides" ). Se a reapropriação de gêneros é constante na obra do diretor, é justamente quando ela ganha esse tipo de densidade que rende filmes mais interessantes. Quando o dispositivo é repensado enquanto estrutura, e não só aparência.

O romance de James Ellroy - que não li - é base para que Brian de Palma prossiga com sua pesquisa das potencialidades do cinema enquanto articulação do tempo e do espaço. Se o diretor redefinira o espaço como elemento de construção narrativa na magistral seqüência do baile de formatura em "Carrie, a estranha", ele parecia atingir o paroxismo em "Olhos de serpente". O uso dos falsos planos-seqüências como exploração da visibilidade das informações (tudo era mostrado, mas nada era visto no filme de 1999) chegava a um estágio onde o que importava não era a ausência do corte, mas a aparência da ausência. O visível se limita à aparência, não à existência de fato (solução visual coerente à trama de "Olhos de serpente"). Em um dos momentos mais deslumbrantes de "Dália negra", o plano-seqüência não mais tenta disfarçar o corte: a câmera sobe pelo telhado para mostrar uma moça assassinada nos fundos do prédio, e gira pelo espaço buscando um casal que caminha pela rua. Antes que o plano se estruture de fato como seqüência, o diretor corta para um rápido insert, mais próximo do casal, para logo em seguida retornar ao plano anterior. É como se De Palma chamasse à atenção o princípio de que um plano-seqüência não é somente um plano sem cortes (não é a duração do plano ou a ausência do corte que o define como seqüência), fazendo um insert pouco sutil - ou mesmo necessário - que desestabiliza a expectativa de quem vê o filme.

A imagem, em "Dália negra", comunica ao espectador os sentimentos dos personagens; fragmenta-se em espelhos e projeções como a relação de "Bucky" Bleichert (Josh Hartnett) com o sistema de estúdios (à época em seu auge) que constrói e despedaça sonhos e histórias que eventualmente reaparecem por debaixo das engrenagens (como os estúdios abandonados que guardam a solução do crime, no final do filme). É desse mundo com algum encanto, mas pouca esperança, que De Palma fala com suas imagens. Imagens, essas, que não seriam mais que a cristalização - tempo - de tudo que Hollywood - espaço - constrói, com a capacidade de fascinar típica de uma femme fatale, para depois desestabilizar (como a própria carreira do diretor) em nome de uma nova construção. Uma indústria cujos principais nomes podem, hoje, parecer distantes; mas que, sob a aparência de novidade, ainda mantém uma mesma estrutura em funcionamento.

7 comentários:

Anônimo disse...

Não houve tempo de comentar o filme anterior, justamente o que farei agora: o filme tem constantes referências literárias, como quando o personagem de Nicholson cita Joyce, ou quando Di Caprio cita Hawthorne, no que Wahlberg retruca perguntando porque ele não cita Shakespeare... chegando enfim à analogia encontrada por Fábio localizando a história com Rei Lear.
Não sei o quanto me engano, mas o jogo já está colocado logo nos primeiros planos; são apresentados os personagens centrais, muito antes do anúncio do filme em questão (que acontece na formatura do Di Caprio e Dammon). Já sabemos o que vai acontecer, o filme nos lança ao óbvio da história, sabemos como vai terminar, o que interessa então? A construção em colapso, o que me remeteu aos Irmãos Coen. O Gênero é um lugar fadado ao comum das ações, mas Scorcese dá nova nota e interesse justamente pela forma, não há claro deslizamento temporal, apesar de personagens polares, o filme não descamba pra processos dialéticos um tanto datados. É espécie de descontrução moral, desmonte do esquema de valoração... Di Caprio de família suspeita não é aceito; Dammon uma espécie de yuppie da corporação. As personalidades transitam em um ambiente de nublações.
Fábio cita o cinema japonês... a violência permanente de "os infiltrados" me remeteu rapidamente ao filme de Kitano sobre o universo da máfia (não sei se há outros, mas cito: "Brothers"). E são algumas das minhas impressões...

agora quanto ao "Dália Negra" (que não vi por uma incrível falta!), sobre o comentário blasfemo de "o livro é melhor":
em uma entrevista do Truffaut com Hitchcock, Truffaut lança essa pergunta: livro ou filme, blá-blá-blá... Hitchcock conta uma piada: Dois bodes comiam um rolo de filme, o bode do lado exclama: é até bom, mas o livro é muito melhor.
Mas no fim diz que é bem besta essa coisa comparativa, e diz que só livros médios e ruins dão bons filmes; livros geniais não são possíveis de transposição. O que justifica, talvez, a existência de um Senhor dos Anéis.

Anônimo disse...

Desculpa, mas vou ter que pular este post. Apesar de ter lido o livro, ainda não vi o filme...

Anônimo disse...

oi

Anônimo disse...

O maior flerte que Dália Negra fez com Hollywood foi afirmar indústria e não criticá-la. É um show de técnica, de artifícios estéticos, de reviravoltas no roteiro com pouco conteúdo, ou densidade artística... Destaque para a voz grossa forçada de Bucky em sua narração a la Bob Torton em "O Homem". Viva a canastrice!!
O momento explicação do filme quase que merecia um "Aaaaaah bom!" em voz alta no cinema, mas sabia do projeto de lei do vereador de BH. ;)

Fábio Andrade disse...

capilé - concordo. não tem sido fácil escrever esses textos pq - com exceção dos dois primeiros lugares, ainda por vir - são filmes que só vi uma vez. e sempre lembro da frase do robert altman, falando que qndo as pessoas diziam que tinham visto alguns filmes dele, ele sabia que elas queriam dizer que só tinham visto seu filme uma vez. mas acho que é parte do jogo, e tem que falar assim mesmo. por isso os comentários são complemento.

quanto ao kitano; praticamente todos os filmes dele giram em torno desse universo. "brother", "sonatine", "kids return" ou o próprio "hana bi"... não vi todos os filmes dele, mas me parece que os que abandonam o universo são exceção.

rubinho - dá mole. tem que ver.

minas de ouro - curiosa a sua afirmação, pq acho que a crítica a hollywood no filme é constante (em termos de indústria... esperar que de palma criticasse a estética hollywoodiana seria, no mínimo, uma contradição).

a narração não emula bob tornton, né, emula aqueles que o tornton emulava no "homem que não estava lá". o buraco é mais embaixo. é uma marca do gênero que o de palma - como quase todo cineasta que decide explorar o noir como estilização - usa... até pq tu aprendeu na aula do antônio carlos que noir sem narração não é noir, pelo menos não puro!!

quanto à explicação final - e ainda assim teve gente falando que o roteiro era confuso e não dava pra entender. isso me faz lembrar da sessão que vi "herói", em que saiu gente falando que não conseguia diferenciar as estórias... às vezes nem fazer uma de cada cor parece adiantar.

ainda assim, acho que o que você chama de "explicação" tá dentro do tempo do filme. se você parar pra pensar, a narrativa toda aposta nessa saturação como linguagem. não é como "guerra dos mundos", que no final precisa botar uma narração em off explicando o que não foi mostrado...

Anônimo disse...

hum...
Fico imaginando se alguns "funcionários" do filme não se submeteram de alguma maneira para pegar o trabalho (assim como a senhorita dos testes no filme). Se não puxaram o saco de alguém etc. (e se forem fixos de algum estúdio, qd conseguiram o emprego então)

E pra viajar um pouco é engraçada essa crítica que "repete" o modelo que critica, que se insere nele, mesmo podendo sair. O sujeito que critica Hollywood com um filme em Hollywood, e que depois continua a fazer filmes por lá. (hum..provavelmente é um cara que está insatisfeito com algumas coisas mas que gosta muito de outras, e acha o saldo positivo, não está disposto a mudar de praça)

Não achei que a narração funcionou mto bem com aquele ator. C Bob Torton funciona melhor, ou mesmo c Mickey Rourke.

Em se tratando de filme x livro dá pra se ter uma idéia bstt clara que o filme veio de um livro assistindo o filme. Mesmo sem saber (acho q tanto pela super-elaboração do roteiro qt pelo excesso de offs). E eu acho que na verdade é bem por aí a pega. Mtas pessoas que adoraram o filme são pessoas que adoram esse tipo de romance policial, cheio de reviravoltas. Mas em se tratando da história, acho que as micro-coincidências, ou micro-pistas que aparecem no filme, qd reveladas, me parecem mais apropriadas mesmo a um livro, mais verossímeis em um livro, onde o cenário, a cidade, os personagens não são definidos fisicamente e podem ser "transformados" pelo leitor (ou redescobertos) para que tudo faça sentido.





abç!

Fábio Andrade disse...

as questões que você expõe são mais de índole do que de indústria. até pq, o "dália negra" é uma produção basicamente européia. foi todo filmado na bulgaria, com base de produção na alemanha. até onde sei, os eua só assinam como co-produção por conta de distribuição. de palma não vai bem em hollywood há tempos, o que acho que um motivo para ele ter feito esse filme. pode até ser amargurado nesse sentido, mas em princípio não há contradição. tem uma resenha bacana na cinética sobre o filme que fala isso e, melhor ainda, uma entrevista com o zsigmond, fotógrafo do filme, onde ele esclarece alguns detalhes da produção. se tiver curiosidade -
http://www.studiodaily.com/main/technique/tprojects/7036.html

a minha implicância com filme x livro é pq eu acho que isso raramente é um argumento relevante.
pode ter saído de qualquer lugar, mas a partir do momento que virou filme se torna obra autônoma. a comparação é bisonha pq são meios completamente diferentes, artistas completamente diferentes... ir pro cinema esperando uma transcrição visual do livro (vide "sin city") é pouco pra mim. até pq, cinema é imagem... roteiro é pretexto; woody allen mesmo já falava que um bom diretor pode fazer um bom filme d e um péssimo roteiro, mas que não tem obra-prima literária que salve uma má direção. john ford fez vários livros medíocres virarem clássicos. acho que o argumento diminuiu o cinema, só isso. e, discordando do hitchcock do capilé, acho que a qualidade da obra original não é determinante. como falar que obras-primas literárias não viram obras-primas no cinema depois de ver "morte em veneza"?

e no caso do cinema noir, é preciso lembrar que é um gênero que nasceu da literatura. não que isso o torne refém, mas é natural que as estruturas se assemelhem. o pulo foi justamente criar uma expressão visual para tudo aquilo que é sugerido. isso, claro, o "dália negra" explora até o esgotamento (pq isso é uma característica do cinema do de palma), com direito a luz entrando pela persiana e tudo mais hehehe.