terça-feira, janeiro 16, 2007

Melhores de 2006


08 – A dama na água - M. Night Shyamalan

A trajetória de M. Night Shyamalan é das mais curiosas no cinema atual: lançado ao mundo como talentoso "estreante" em seu terceiro filme (ao contrário da crença popular, antes de "O sexto sentido" Shyamalan já havia lançado Praying with Anger - que ainda não vi - e "Olhos abertos" - filme que não tem o impacto estético do trabalho posterior do diretor, mas que ganha interesse em uma contextualização retrospectiva), segue construindo uma obra com ampla base industrial, mas que problematiza as estruturas narrativas da maior parte dos representantes dessa mesma indústria. Embora boa fatia da crítica tenha limitado "O sexto sentido" ao quase-gênero do final-rasteira (para o bem ou para o mal), o primeiro filme que Shyamalan assina como criador (seus projetos anteriores creditam-no como diretor, não ostentando o "an M.Night Shyamalan film" que abre o restante de sua obra) já traz suas maiores ambições como realizador: a problematização do cinema como mero jogo de aparências; a subversão dos gêneros; a crise das estórias. A aparência de final-rasteira de "O sexto sentido" (embora seja, aqui, necessário lembrar que o filme continua para além da rasteira: a tão comentada surpresa final é revelada com intensa dramaticidade, mas, com mesma a rapidez que desestabiliza o espectador, Shyamalan puxa as rédeas de sua atenção para que a estória continue - seu cinema não é apenas artifício, pois o artifício, quando presente, possui uma função narrativa) ressoa de forma um tanto incômoda em "Corpo fechado", mas desaparece por completo de suas obras mais maduras.

É difícil, porém, fazer uma distinção entre seus primeiros momentos autorais (respeitando a distinção feita pelo próprio realizador em relação aos seus primeiros filmes) e seus três últimos trabalhos. Tudo que encontramos de forma exuberante a partir de "Sinais", já estava presente em "O sexto sentido" e "Corpo fechado". A dupla crise da aparência cinematográfica como gênero e como valor (suspense + amor; super-herói + impotência; catástrofe + fé; terror + medo - de "O sexto sentido" a "A Vila", cronologicamente) se torna uma só em seu último filme: "A dama na água" (Lady in the water) é o primeiro filme de Shyamalan onde gênero e valor se tornam uma só coisa, como a "moral dos travellings" de Rosselini. "A dama na água" problematiza a fabulação em tema e gênero (em vez de usa-los como contrapontos), gerando uma equivalência entre valor e visualidade.

Assim como em "A vila", a limitação intencional do espaço narrativo o impõe como microcosmo: dessa vez estamos em um condomínio chamado "The cove" (algo que pode ser traduzido como "vale" ou "estreito" - um espaço natural, portanto), e acompanhamos Cleveland (Paul Giamatti), zelador do prédio. No centro do condomínio fica a piscina onde aparece Story (Bryce Dallas Howard), a ninfa do Mundo Azul que teria vindo parar no mundo real por uma passagem dentro da piscina. Cleveland precisa ajudar a "estória" a voltar para o mundo fantástico, ao qual pertence, a salvo. Os perigos, porém, não são naturais ao lado de cá da piscina: Story é perseguida por criaturas fantásticas que querem impedir seu retorno.

A crise da estória, portanto, tem raiz no universo das estórias. Shyamalan faz uma fábula sobre fábulas. A aparência do gênero já havia sido desconstruída em "A vila"; a questão agora, portanto, é de natureza mais profunda. Os habitantes do "The cove" têm, como todos nós, uma constante relação com a fabulação. Para entender o mundo da ninfa e planejar seu retorno (que não pode ser providenciado sozinho: cada pessoa tem uma função), Cleveland precisa da ajuda dos mais diferentes moradores do prédio. A fábula, porém, liberta tanto quanto ludibria (às vezes por ruído na compreensão dos papéis - como acontece na primeira tentativa de salvamento de Story - às vezes por uma relação esquemática com uma atividade criativa essencialmente orgânica - como é o caso do crítico de cinema interpretado por Bob Balaban, que morre por não acreditar na originalidade, tentando interpretar a ficção de forma esquemática, ignorando as particularidades da criação ao tentar enquadra-la em uma estrutura pré-definida). Para libertar a estória, Cleveland precisa destruir as aparências e buscar a essência de cada elemento necessário para a sua libertação.

A sinergia de mise en scène e valor faz de "A dama na água" um novo estágio na obra de Shyamalan. Não à toa, é um filme que encanta à mesma medida que gera estranhamento. Se seus trabalhos anteriores buscavam uma aparência realista para problematiza-las enquanto ficção, "A dama na água" cria um mundo real (basta prestarmos atenção às notícias da televisão que conectam "The cove" ao mundo contemporâneo para percebermos que - como em "Superman: o retorno" - a fronteira entre a ficção e o real não mais existe) tão estilizado que uma personagem fantástica não parece tão distante dos personagens mundanos. A piscina do condomínio é, sem dúvida, uma passagem; mas, se toda passagem é também um conector de mundos que se comunicam, esses mundos são, necessariamente, distintos. A crise da estória é a crise dessa distinção, pois as notícias da guerra do Iraque na tv passaram a habitar o universo da ficção como as fábulas se escondem no mundo real. Para restituir o valor de ambos os mundos é preciso restabelecer essa fronteira.

Shyamalan - que além de criador, faz aqui seu cameo menos modesto como Vick Ran, o personagem que escreve o livro que virá a salvar o planeta de sua própria destruição - precisa trazer Story para o mundo real não só para que o mundo fantástico volte a ser visto como tal, mas também para que nós possamos voltar a entender o nosso próprio mundo. Precisamos da ficção para descobrir quem realmente somos, assim como Cleveland identifica em seus vizinhos os valores necessários para preencherem determinados papéis no salvamento da estória. A crise da aparência, levantada por Shyamalan em toda a sua obra, chega ao extremo em "A dama na água". Porque, se a superfície da piscina é também espelho (o reflexo da aparência), suas profundezas guardam uma vida que a nossa simples razão nunca será, felizmente, capaz de decodificar por completo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Grande! Grande! Quando vc falou de "espelho" no final... não quis falar "especular" por quê?

(momento piada interna)

Rafael disse...

Achei bem fraco esse filme.
O Labirinto do Fauno, outra fábula com história semelhante, é bem melhor.