terça-feira, fevereiro 27, 2007

Melhores de 2006 - Discos



06 - The Lemonheads - The Lemonheads

Se existe algo que, apesar dos vários motivos, não aprendi em meus 24 anos é a me tornar imune a uma novidade referente ao Lemonheads. Que venham as formações duvidosas, outro renascimento de Evan Dando do submundo das drogas, ou o show de reunião que exige que você deixe seus ouvidos na entrada para não perceber o claro desentrosamento no palco (preço não de todo desagradável para se poder ouvir uma das melhores vozes do rock alternativo). Poucos compositores são capazes de transparecer tanta naturalidade em suas canções; poucos sabem fazer parecer tão fácil (ressoando em minha memória recente uma citação não identificada de que a função do artista seria justamente criar essa impressão de facilidade, apesar de todo o trabalho escondido por trás da obra). Naturalmente, quando fiquei sabendo que Evan Dando havia cativado seus (e de todos nós) heróis adolescentes, Karl Alvarez e Bill Stevenson (respectivamente baixista e baterista dos Descendents - sem dúvida alguma a cozinha mais talentosa da história do punk rock), para acompanha-lo em um novo disco, palpitações receosas chegaram com a primeira lufada de vento.

Meses depois, escuto The Lemonheads pela primeira vez. Procuro, obstinado, pelos hits flutuantes; canções que pudessem se juntar a “Confetti”, “If I could talk I’d tell you” ou “Into your arms”. Nada. Mudo o alvo para as baladas folk/country que temperavam o passado da banda, e sustentavam o último registro de Dando até então - o solo Baby I’m bored. Nenhuma nova “The outdoor type” à vista. Tento novamente, mas o que chega aos meus ouvidos são canções cruas e velozes, até mais diretas do que as da época em que Ben Deily ainda dividia os vocais da banda. Todas as faixas soam parecidas, e o disco dá a impressão de se dissolver no ar que o separa do ouvinte.

É provável que, se não estivéssemos falando de Evan Dando, eu tivesse deixado o álbum de lado após essas primeiras audições (e tenho calafrios ao calcular o número de grandes discos que perco nessas desistências). Mas como ainda não aprendi a desacreditar no talento do moço, insisti na travessia de mais um par de audições infrutíferas. E, em algum momento, a massa disforme e não-identificável que corrompeu minhas inocentes expectativas na primeira audição começou a ganhar corpo. Assim como fez em toda a sua carreira, Evan Dando nos nega qualquer legitimidade de pré-julgamento. Nossas expectativas são problema nosso, não dele. A ele cabe, e não é pouco, nos entregar o disco que quis fazer. E quando me recuperei do forçado exercício de humildade, me vi diante do melhor álbum da carreira do Lemonheads.

Por mais que certas canções fizessem valer o preço de cada um dos discos anteriores, Evan Dando nunca dosou seu talento igualmente em todas as faixas de uma gravação. It’s a shame about Ray tinha “Confetti”, “Alison’s starting to happen” e “My drug buddy”, mas também tinha “Kitchen” e “Ceiling fan in my spoon”. Come on feel the Lemonheads seria um disco perfeito, não fossem as duas versões de “Ricky James style” e “The jello fund”. Car button cloth é o lar de “If I could talk I’d tell you”, “Hospital” e “The outdoor type”, mas também trazia outro meio disco quase inaudível. The Lemonheads, o novo, não tem faixas de brilho tão imediato quanto as citadas acima; mas traz 11 excelentes canções que, juntas, formam o melhor disco da banda para se ouvir do início ao fim. A aparente falta de variedade nos arranjos se torna coesão, uma vez percebidas as inspirações particulares de cada composição, e a produção de Bill Stevenson dá ao Lemonheads uma solidez até então inédita. A música soa espontânea e inconseqüente, mas busca esses valores na maturidade de três músicos de raro talento.

Em obra tão inteira, difícil a tarefa de escolher pontos altos. “Black gown” abre o disco de forma mais urgente do que "Rocking stroll" fez 14 anos antes, enquanto “Let’s just laugh” usa as curvas da dinâmica para manter a pegada no refrão mais sorridente de todo o cd. “Pittsburgh” e “Poughkeepsie” trazem alguns dos melhores trabalhos de guitarra já feitos por Dando, livre sobre as bases surpreendentemente econômicas de Alvarez e a batida inconfundível de Stevenson. O baterista do Descendents é, também, autor de duas boas canções (“Steve’s boy” e “Become the enemy”), enquanto Tom Morgan (nome por trás de algumas das melhores canções já gravadas pelo Lemonheads – “The outdoor type” no topo da lista) co-assina “No backbone” e a quase-balada “Baby’s home”. Além disso, J.Mascis desenha seus inconfundíveis solos sobre “Steve’s boy” e “No backbone”, Gibby Haines (do Butthole Surfers) faz uns barulhinhos que ninguém percebe, e Garth Hudson, tecladista do lendário The Band, participa em duas faixas com ruídos um pouco mais perceptíveis.

É com esse disco de um só fôlego que Evan Dando reafirma sua relevância atual para além da formação de bons compositores (basta lembrarmos dos três Bens – Lee, Kweller e Folds - todos suas crias). Com os parceiros certos (e nunca foram tão certos quanto agora) ele continua mestre em seu ofício: criar canções boas de se ouvir. Diante da pretensão que pesa a mão de boa parte do pop atual (Keane, Demian Rice, Radiohead), o compromisso que Dando assume com o descompromisso permanece vivo e cativante. Reconheço que o diálogo reto que sua obra sempre travou com seus ouvintes aparece, aqui, meio que do avesso (um disco do Lemonheads que não funciona na primeira audição é uma contradição tão difícil de se conceber que só poderia ser real). Mas, no fim do dia, as contradições e irrelevâncias de Evan Dando continuam me sendo mais interessantes que as de quase qualquer outro artista por aí.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Melhores de 2006 - Discos



07 - Bob Dylan - Modern times

Foi lugar mais que comum na imprensa musical a afirmação de que Modern times seria o retorno de Bob Dylan a seus melhores dias (além de a surpresa geral pela menção a Alicia Keys, em um dos primeiros versos do disco, ter rendido mais pautas que a qualidade das canções). Embora o disco mostre, decerto, o compositor em grande forma, Modern times é o passo natural de Dylan após o também ótimo Love and theft, de 2001. Dar o passo mais natural não significa, porém, repisar pegadas recentes: se o blues cafeinado que era predominante em Love and theft ainda rende boas canções em Modern times, o gênero é usado estrategicamente em faixas esparsas, conferindo à fruição do disco um ritmo quase respiratório. Pois entre horas de dentes trincados, Bob Dylan adoça o álbum com uma mão cheia das melhores baladas de sua carreira.

"Thunder on the mountain", a tal canção sobre a Alicia Keys, abre com um pé no disco anterior. Mas se a canção parece pedir o andamento acelerado de "Summer days" - ou mesmo do clássico maior "Subterranean homesick blues" - Dylan segura o compasso pela coleira fazendo a canção deslizar por quase 6 minutos, e desenrola suas palavras com uma voz mais paciente do que em qualquer gravação passada. Essa leve distorção, impressa pelo autor, das convenções do gênero se repete na balada seguinte: "Spirit on the water" parece combinar "Bye and bye" e "Moonlight" como base musical para sua poesia; mas a belíssima segunda faixa de Modern times alcança, na repetição exaustiva de duas linhas melódicas apenas, mais que a soma dos minutos das duas canções de Love and theft que toma como inspiração. A duração das músicas em Modern times (oscilando, em geral, entre os 5 e os 8 minutos - ultrapassados na última faixa) é apenas evidência mais concreta de uma das intenções primordiais do disco: trata-se de um tratado sobre o tempo.

Essa intenção se dá em todas as esferas principais da obra. Dono de métrica sempre desafiadora, Bob Dylan parece especialmente solto com as palavras em Modern times. Enquanto sua banda de apoio o confina em bpms, sua voz entorta pronúncias, espreme 15 palavras em um verso composto para cinco, termina uma frase antes que a melodia se desenhe por completo. Dylan está em descompasso com o título de seu disco: diante de olhos tão serenos, o mundo moderno passa em velocidade grande demais para ser percebido com clareza. Em um disco que comenta a velocidade da vida, as mais inspiradas canções de Modern times não poderiam ser outras que não as baladas.

A já falada "Spirit on the water", conduzida por sua frágil linha de guitarra, flutua por quase 8 minutos que só são percebidos quando a canção acaba e, por hábito, tornamos a conferir o relógio. E, enquanto ela parece buscar uma leveza transcendente, Dylan não a deixa terminar sem um arranhão de auto-ironia ("I wanna be with you in paradise / And it seems so unfair / I can't go back to paradise no more / I killed a man back there"). "When the deal goes down" ressucita o esquecido compasso 3x4, e se aconchega, melódica e liricamente, próxima ao universo de Tom Waits. Embora os dedos em riste insistam armarem-se com a cronologia (o fato de que Waits não seria quem é se Dylan não tivesse sido quem foi), o trabalho artístico de Bob Dylan (assim como o de Scorsese, no cinema) permite tais inversões de forma legítima. Sua obra é o andamento de uma tensão entre amor e roubo, seja do passado ou de seus próprios frutos. O artista constrói canções reinterpretando frases (verbais ou melódicas) e idéias que pertencem ao mundo. Se a voz de Tom Waits é hoje aceita a ponto de ser imitada em comerciais de tv (processo de redefinição da figura do artista pop iniciado - caso encerrado – quando um jovem anasalado do Minnesota ganhou mundos com "Blowin’ in the Wind"), Dylan não se constrange em retirar imagens do universo particular de Waits – as orações invisíveis que flutuam como nuvens, na quinta linha de "When the deal goes down", por exemplo. O tempo, mais uma vez, aparece como dado constrangedor, e a bela melodia da canção espreita por trás de fragilidade semelhante à das flores e das horas, exposta em um dos mais belos versos do disco ("More frailer than the flowers, these precious hours / That keep us so tightly bound / You come to my eyes like a vision from the skies / And I'll be with you when the deal goes down).

Os pontos em que Modern times se aproxima de Love and theft são essenciais para a compreensão de um projeto artístico autofágico como o de Dylan. Não existe obra fechada, pois o mundo seria uma obra maior em eterna transformação, e o artista é justamente aquele que percebe os caminhos abertos, no passado, e faz deles estrada para algum lugar. A obra de Bob Dylan segue sendo contada e reinterpretada pelo próprio artista, e uma canção como "Beyond the horizon" (quase uma terceira parte de "Spirit on the water" – que por sua vez já parecia derivada de canções anteriores) é a exploração de uma possibilidade antes já esboçada, mas não levada a cabo. O que limita o artista diante da obra aberta do mundo é sua mortalidade, e por isso o tempo é tão importante em Modern times. Não à toa Dylan canta, em uma das melhores letras do disco, que além do horizonte (metáfora clara para a morte) a vida teria apenas começado, e que lá seria fácil amar (amor que espera por todos, cantaria alguns versos depois). Agir sobre o mundo é, portanto, uma tentativa de transcender a morte ("Beyond the horizon the night winds blow / The theme of a melody from many moons ago").

A força da percepção da finitude coloca Modern times ao lado de "2046 – Os segredos de amor", e do último Altman, como as três mais contundentes obras sobre o tempo e a memória lançadas em 2006. E se Dylan batiza seu mais novo disco com o nome de um dos clássicos maiores do cinema, sua cena-síntese é "Workingman’s blues #2". Em um vôo pela História, ele narra pequenos contos de trabalhadores que, em épocas mais diversas, viram a função que lhes dá nome (o trabalho) ser transformada pelo tempo. A sensação de ter sido esquecido (que na canção se multiplica em sujeitos possíveis: uma amante, a História, Deus) em um corte seco da vida sintetiza o sentimento de beleza (do que foi vivido) e melancolia (o que não será vivido) que faz de Modern times um disco tão forte. "There's an evenin' haze settlin' over the town / Starlight by the edge of the creek / The buyin' power of the proletariat's gone down / Money's gettin' shallow and weak / The place I love best is a sweet memory / It's a new path that we trod / They say low wages are a reality / If we want to compete abroad "; começa a canção, pensando sobre um mundo onde a vida social imediatamente se confunde com a particular. Uma vida onde o sono é uma "morte temporária", e o amor só pode se confirmar na memória (que também é morte). É em relação a esse mundo moderno que Dylan desacelera a passada. Pois uma vez que o fim se torna uma certeza desafiadoramente nítida, tudo que acontece até lá não é mais que um borrão.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Breve interrupção dos "Melhores de 2006" para mais um post da série "Frases nunca antes formuladas (na história da humanidade)"

"Folião baleado na pipoca." - chamada do Jornal da Band, dia 20/02/2006.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Melhores de 2006 - Discos



08 – Regina Spektor – Begin to hope

2006 foi um excelente ano para cantoras/compositoras mulheres. Corinne Bailey Rae fez a trilha-sonora oficial do ano com o merecido hit "Put your records on"; a Pink retornou com o surpreendente I’m not dead (lar de "Who knew", uma de suas mais inspiradas canções); as Pippetes renderam justo tributo aos princípios de Ronnetes/Phil Spector no adorável We are the pippetes; Neko Case e a estranhíssima Joanna Newson lançaram discos densos e instigantes. E enquanto os indies molhavam as roupas de baixo com o novo do Justin Timberlake e o irritante sorriso da Lily Allen, a moscovita (residente em Nova York) Regina Spektor lançava, sem nenhum alarde, o melhor disco pop do ano.

A presença de Begin to hope nessa lista diz muito sobre a aleatoriedade do recorte. Embora o disco tenha sido lançado, de fato, em 2006, foi só nos primeiros dias de 2007 que vi, pela primeira vez, o simpático clipe de "Fidelity" na tv. O clipe me perseguiu por alguns dias (obrigado ao canal Sony por só passar os mesmos cinco clipes - desde que para cada jabá do Seven Cities nós ganhemos uma Regina Spektor) até que eu percebesse estar diante de uma das canções mais bacanas de 2006. Busquei confirmação do talento em seu terceiro álbum (o primeiro em uma gravadora grande), e aos poucos fui descobrindo que, debaixo da garota de preto e branco do clipe, existe uma artista talentosa, de voz madura, composições bem acabadas e um universo lírico personalíssimo.

De alguma forma, Regina Spektor sintetiza os melhores traços femininos do pop contemporâneo. O gosto irrepreensível de Leslie Feist, o tino pop de Dido ou Norah Jones, e até mesmo toques da excêntrica inteligência de Joanna Newson; tudo isso convive dentro de uma mesma artista, com o porém de Regina Spektor não trazer em seu sangue nem a frivolidade da Pink, nem a tendência para o inaudível da Bjork (clara influência, porém só até certo ponto, em algumas faixas do álbum). Das canções mais pop às mais herméticas, Regina tem um apreço valioso pela leveza, e é exatamente nessa casualidade que Begin to hope se torna irresistível.

A já falada "Fidelity" abre o disco. As cordas saltitantes arredondam as pontas de um beat quadradão, e aos poucos piano e baixo vão construindo a dinâmica da canção. Mas em vez de a dinâmica crescer até o ponto de saturação, ela culmina no refrão com apenas bateria e piano, em um maravilhoso anticlímax. Na letra da canção, Regina começa a apresentar os personagens e situações que mais encantam seu olhar: uma garota que, por pudor, nunca se entregara por completo a nenhuma paixão, e se perde em um amor fictício que cria em sua cabeça. "I hear in my mind all these voices / I hear in my mind all these words / I hear in my mind all this music / and it breaks my heart", ela escreve. Regina abre seu disco cantando palavras que parecem dizer tanto sobre ela quanto sobre qualquer um de seus ouvintes. Palavras em música.

Begin to hope pode ser dividido em três partes (razoavelmente simétricas). Uma delas é composta de baladas, como as belas "Samsom", "Field below" e a derradeira "Summer in the city". O terço menos interessante é das canções que se escondem atrás de gracejos conceituais e modernices que pouco me dizem (como "20 years of snow" e "That time"). E a terceira, e mais vigorosa, parte é justamente a de canções de coração leve, como o single "Fidelity". É desse naco que saem os momentos mais brilhantes do disco, como a dançante "Hotel song", a guitarreira "Better", e o segundo single, "On the radio".

É também nessas canções que Regina Spektor exibe suas maiores conquistas como letrista. "On the radio" se derrama em oposições de existencialismo em forma bruta (aos moldes de "Hello goodbye", dos Beatles, ela emenda - "This is how it works / You're young until you're not / You love until you don't / You try until you can't / You laugh until you cry / You cry until you laugh / And everyone must breathe / Until their dying breath") para recusa-las com um lúcido reconhecimento de carência ("No, this is how it works / You peer inside yourself / You take the things you like / And try to love the things you took / And then you take that love you made / And stick it into some / Someone else’s hearts / Pumping someone else’s blood / And walking arm in arm / You hope it don't get harmed / But even if it does / You'll just do it all again"), não sem tempo de se deslumbrar - epifanicamente - com a beleza de um momento íntimo visto com olhos destacados (mas apenas no ângulo de visão, pois mantém a paixão de quem participa do momento), ao som de "November rain" ("And on the radio / We heard ‘November rain’ / That solo’s really long / But it’s a pretty song"). E quando a pureza da letra parece chegar ao paroxismo, Regina Spektor assina com um fino traço de auto-humor, dizendo que a longa canção do Guns n’ Roses foi tocada duas vezes, pois o DJ cedera ao sono no meio da execução.

A leveza de sua sensibilidade impressiona, pois está além dos temas. Se Regina canta sobre tangerinas ou viciados em cocaína, suas palavras são tomadas de uma generosidade que não faz distinções, e que, por isso, beira o desconcertante. Assim como ela não resiste e se deixa cantarolar melodias do piano (com um simpático "pam pa-ram pa-ram" que imita o som das teclas), ou irrompe em palmas no meio de um refrão, ela canta sobre o que vê, sobre o que a encanta antes de se tornar passado. A impressão é a de um olhar que salpica o mundo de pureza e encatamento - descartando qualquer moral que não a do próprio olhar - como as notas picadas que do encontro de seus dedos com o piano. Pois, afinal, "November rain" não escolhe seus ouvintes; apenas se oferece, generosamente, para ser escolhida como epifania individual. Como reconhece em "Fidelity" (mais um caso onde um título aparentemente banal se torna surpreendente por uma leve distorção de sentido), só as canções que ouvimos em nossa cabeça nos são, incodicionalmente, fiéis. E só por isso despejamos nosso coração por aí, esperando que ele seja magoado para que possamos, enfim, fazer tudo novamente.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Melhores de 2006 - Discos



09 – The Killers – Sam's town

Na América do Norte, o Killers é mais um daqueles casos em que uma banda deixa de ser levada a sério pela crítica mais segmentada pelo excesso de execução pública. Com seu álbum de estréia, Hot Fuss (e, mais especificamente, o hit "Mr. Brightside"), a banda se tornou enormemente popular nos EUA, mas sua música não é distante o suficiente dos mais novos ícones indie para ser abraçada como pop de qualidade pela Pitchfork (caso de Justin Timberlake e Lily Allen, por exemplo). Ao sul do continente, porém, os ecos de tais implicâncias não provocam mais que leves cócegas (motivo pelo qual acredito que Chorão e seu Charlie Brown Jr. ainda serão descobertos como gênios do pop rock em algum canto distante do nosso), e o sempre confiável atraso brasileiro em assimilar as mais novas pragas da indústria (para o bem e o para o mal) nos mantém indiferentes o bastante para receber Sam’s town com moderadas expectativas.

À primeira audição, o segundo disco do Killers parece um quarto extremamente bagunçado de um jovem rapaz que nutre uma secreta paixão por plumas. Apesar da reaparição dos sintetizadores à Duran Duran que garantiram o sucesso do primeiro disco, a idéia de combinar rock clássico com atmosfera de cabaré pé-sujo do segundo parece longe de funcionar. Logo na primeira faixa o disco já faz lembrar o hediondo Kaiser Chiefs, e nenhuma das outras 11 é pronta candidata ao posto de nova "Mr.Brightside" (como no parágrafo anterior, também para o bem e para o mal). O que mais surpreende, porém, é que depois de algumas audições toda essa bagunça começa a fazer um sentido danado, e Sam’s town se revela um disco até mais consistente do que Hot Fuss.

Mais consistente porque em vez de Duran Duran e rock pós-Strokes, temos uma combinação desorientadora de Queen, U2, Bruce Springsteen, David Bowie e Meat Loaf. Sim, o Killers decidiu resgatar o esquecido rock de arena, e nada mais justo que tal resgate seja protagonizado por uma das poucas bandas que enchem arenas na atualidade. Seja pelo quase conceito criado nas simpáticas "Enterlude" e "Exitude", ou pelos coros que tentam levar os refrões aos pés de Vosso Senhor, o Killers quer criar canções maiores do que a vida. E embora a tentativa não seja exatamente bem sucedida, a ingenuidade com que eles se jogam em tal jornada tem momentos de particular beleza. Tanto nas canções mais próximas à essência de Hot Fuss - como "Read my mind" (nova encarnação da melancólica "Smile like you mean it") ou "When you were young" (que regurgita os riffs quase-The Edge que faziam de "All the things that I’ve done" uma canção memorável) - ou em momentos de maior frescor, - a inusitada construção melódica de "For reasons unknown", ou os metais galhofeiros de "Bones" - o Killers transita por territórios extremamente duvidosos com inabalável vitalidade.

Esse excesso de confiança - escancarado no vibratto do desinibido, e apropriadamente batizado, Brandon Flowers - é tão constrangedor quanto comovente, pois Sam’s town não deixa de ser uma seqüência de reapropriações musicais. Se a guitarra de The Edge e os sintetizadores mofados têm influência constante, a atmosfera teatral de Queen e Meat Loaf sustenta canções como "Blig (confessions of a King)" e "Why do I keep counting?", a dramaticidade viril de Bruce Springsteen entoa "My list" e "This river is wild", e o Killers parece reinterpretar todos esses elementos por realmente acreditar em sua força dramática. E isso não é menos que coerente, pois o rock de arena é o espaço onde quem é atração principal não é a banda ou suas canções, mas o espetáculo em si. Em seu segundo disco, o Killers parece incorporar valores tão broadwayanos - ou carnavalescos - e com tamanha consciência, que acaba indo muito mais longe do que qualquer outro filho do mundo pós-Strokes (que, ao contrário do Killers, nunca passou no teste do segundo disco). E quando a derivação é feita às claras, ela deixa de ser entrave e se torna conceito.

Mais do que pela derivação em si, o Killers acerta por buscar boas fontes. Com isso, muitas das intenções aos arredores de Sam’s town acabam sendo, por fim, bem sucedidas. E se todo o glamour decadente que perpassa as 12 faixas do álbum não é propriamente inédito, a releitura feita pela banda é extremamente convidativa. Enquanto Hot Fuss acertava em alguns de seus tiros aleatórios, Sam’s town sabe onde está atirando, e por isso é um disco muito mais coeso. O quarto bagunçado com plumas sob a cama, que estranhamos na primeira faixa, é o mesmo, do início ao fim. A diferença é que em algum momento você embarca na fanfarronice, e ao fim do dia não consegue mais se lembrar qual era mesmo o problema que via nas tais plumas.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Melhores de 2006 – Discos

Embora pouquíssimas obras-primas musicais tenham sido lançadas em 2006 (ao menos que eu tenha tomado conhecimento), o ano que passou trouxe um número bastante satisfatório de discos bem legais. Se, por um lado, 2006 serviu para que Eugene Kelly, dEUS, Samiam e Gin Blossoms voltassem à ativa com novidades que nada devem a seus respectivos catálogos, artistas interessantes lançassem bons novos discos (Guster, Pete Yorn, Andrew WK, Decemberists, Head Automatica, Yellowcard, Flaming Lips), e os mais apreciados veteranos se exibissem em ótima forma, por outro serviu também para que bandas outrora favoritas afundassem em seus trabalhos mais irrelevantes (Goo Goo Dolls com Let love in, e o desnecessário retorno do Everclear, com Welcome to the drama club, álbum tão inexpressivo quanto os dois que antecederam o fim da banda). Foi também um ano de boas descobertas musicais (Snow Patrol, Peter, Bjorn & John, The Long Winters, Camera Obscura, Drag the River, I’m from Barcelona), e de uma safra impressionante de artistas mulheres (Pink, Neko Case, Pippetes, Joanna Newson, Corinne Bailey Rae) lançando novos discos.

Essa lista – assim como a dos filmes – não traz, porém, necessariamente os discos mais impressionantes de 2006 (especialmente nas últimas posições), mas sim trabalhos que me interessaram, pelos mais variados motivos, a ponto de querer escrever sobre. Sintomática a ausência de bandas de punk rock (mesmo com os bons lançamentos de Lawrence Arms, Strike Anywhere, Draft, Dead to Me, Loved Ones), que me deixa com a estranha sensação de estar saindo de um cômodo onde nunca realmente entrei. Antes que o parágrafo se estenda e a entrada roube o apetite do prato principal, vamos, portanto, à trilha-sonora de um ano defunto.




10 – Ben Kweller – Ben Kweller

Não há dúvida que o Ben Kweller é um cara gente boa. E, como todo cara gente boa, sua companhia pode ser entusiasticamente agradável em determinados momentos, e irritantemente sem sal em outros. Se o ex-menino prodígio do Radish (banda que ganhou alguns minutos de estrelato com o single "Little pink stars”, em meados de 1997) mostrara sua enorme habilidade em se tornar amigo favorito com o impressionante Sha sha (seu disco de estréia em carreira solo), a maior parte do sucessor, On my way, parecia o equivalente musical de comida congelada. Embora o disco tivesse, vá lá, duas ou três canções interessantes, a produção minimalista resultava em arranjos mal resolvidos para canções que não pareciam de fato terminadas.

Ben Kweller - o disco - não é exatamente o retorno de Ben Kweller - o músico - à sua melhor forma. Onde Sha sha temperava eximiamente canções do pop mais tradicional com guitarrices noventisas, e On my way se perdia na psicodelia dos anos 70 (que aqui reaparece em "This is war” – faixa menos interessante do disco), o terceiro álbum de Kweller parece despido de qualquer disfarce: 11 canções inspiradas nos momentos mais pueris de Beach Boys, Beatles e tudo aquilo que moldou o que hoje conhecemos como pop.

É justamente quando Kweller assume sem pudor a luz de tais influências que seu terceiro disco brilha. "I gotta move”, quarta na seqüência, reproduz tão bem toda a cartilha do cancioneiro pop que já soa irresistivelmente familiar na primeira audição; seu refrão mais que direto bebe na leveza irresponsável dos primeiros clássicos dos Beach Boys. "I don’t know why” e "Run” justificam versos sem muito brilho como justa precaução para que eles não atrasassem a chegada dos memoráveis refrões e pontes. A seqüência de "Red eye” e "Until I die” mostra que Kweller ainda sabe escrever boas baladas (embora não consiga alcançar a perfeição de "Falling”), e os pianos do single "Sundress” começam a revelar um novo lado do artista que pode vir a render boas surpresas no futuro.

Se o domínio da construção pop faz de Ben Kweller um álbum imediatamente agradável, esse mesmo domínio acaba dissipando seu próprio brilho após algumas audições. Sha sha (e até mesmo alguns momentos do segundo álbum) era sublinhado por uma dose de nonsense em suas letras que o mantinha fresco por muito mais tempo (basta lembrarmos da seqüência de abetura – "How it should be” e "Wasted and ready”, ainda hoje memoráveis); aqui, as letras parecem apenas encaixar palavras preguiçosas nas melodias vocais. Embora a vontade de juntar as coisas que importam e fugir - que domina as melhores canções do álbum - tenha lá seu apelo, a falta de dedicação impressa nas letras acaba por trair pequenos feitos musicais. Por qual outra razão, senão essa, a linha do refrão de "Nothing happening” - bela e melancólica quando guiada pela slide guitar da introdução - perderia todo o seu brilho quando base para generalidades como "nothing is happening, it’s all confusion, it’s all confusion”?

Em seu terceiro disco, Ben Kweller se encontra em delicado equilíbrio, entre o pleno domínio de composição e o esvaziamento da fórmula. Suas canções ainda são boas o suficiente para render audições das mais agradáveis (não à toa ele entra na minha lista dos melhores do ano), mas começam a desafiar com o olhar o desgaste quando rodamos o disco algumas vezes. O equilíbrio, com efeito, passa longe de ser um mau lugar. Mas deixa a curiosa impressão de que, dependendo de em qual perna Kweller venha a relaxar o peso de seu corpo, seu próximo disco será ou o melhor, ou o pior de sua carreira.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Melhores de 2006


01 - 2046 - Os segredos do amor - Wong Kar-wai

O mais novo filme de Wong Kar-wai é a síntese metalingüística de sua obra. Trata-se da suposta terceira parte de uma trilogia acidental que o diretor começara 15 anos antes, com "Dias selvagens" (finalmente em cartaz no Rio). Concebido como um díptico sobre a década de 1960, "Dias selvagens" inaugurou a carreira de fracassos locais do diretor (até hoje seus filmes amargam magérrimas bilheterias em Hong Kong, e só um deles foi lançado na China continental), e sua segunda parte acabou nunca sendo realizada (daí o enigmático plano final da única parte realizada). Alguns dos rostos do filme de 1991 retornariam, 9 anos depois, em "Amor à flor da pele", gerando especulações de que o filme seria, na verdade, uma continuação de "Dias selvagens". A chave, porém, só viria em seu trabalho seguinte: se "Amor à flor da pele" trazia tantas relações quanto rupturas com "Dias selvagens", "2046" confere à trinca um status de trilogia de pontas soltas (uma trança, diria). Segundo o diretor, a idéia de fazer de "Amor à flor da pele" uma continuação de "Dias selvagens" veio de uma dificuldade no set: quando a atriz Maggy Cheung disse estar tendo problemas para se projetar na época do filme, o diretor pediu que a interpretasse como uma progressão da personagem que encarnara no filme de 1991 (mesmo que a cronologia diegética dos dois filmes não seja exata). Já "2046" (filme originalmente concebido para falar sobre o último ano em que a organização político-econômica atual de Hong Kong será mantida pela China) teria se tornado uma continuação por estar sendo rodado simultaneamente a "Amor à flor da pele". Kar-wai dizia que filmar duas estórias diferentes ao mesmo tempo seria como ter duas namoradas, e por isso aproximou os dois filmes.

"2046" (que para o diretor nasce tempo mas se torna espaço - de um ano para um quarto de hotel - mas para seu personagem principal faz o trajeto inverso) se torna síntese por revelar, em sua própria feitura, todas as principais características da arte de Wong Kar-wai. Seu cinema do improviso (Kar-wai filma uma quantidade enorme de material, sem um roteiro exatamente definido - ao contrário de diretores que conectam fotogramas como engrenagens, ele filma baseado em idéias e improvisos, para só depois "encontrar" o filme de fato na ilha de edição) repisa a sensação de que existe uma continuidade (os atores - e muitas vezes os personagens - que reaparecem a cada trabalho) em sua obra, mas que essa continuidade é fluida (muitos dos personagens retornam com características antagônicas às suas aparições passadas). Aos poucos, começamos a perceber a obra do artista como uma contundente declaração sobre o mundo. Se isso pode parecer indispensavelmente óbvio para qualquer trabalho consistente, o que salta aos olhos nesse caso é a maneira que discurso e obra se articulam. Sim, pois a construção dos filmes de WKW reflete um olhar muito particular sobre o mundo contemporâneo (mesmo em seus filmes "de época"), e esse olhar é tanto político quanto estético (por ser a estética também uma política, e vice-versa). Para ele, trata-se um mundo onde as pessoas estão escrevendo, constantemente, sua própria história, mas essa história é guiada pelo acaso. Um mundo onde as pessoas se encontram com a mesma facilidade que se desencontram, e cujos destinos são traçados justamente pela gratuidade desses encontros. Os significados são frutos do acaso, parece dizer Kar-wai. O mundo, em si, não significa nada; mas é potência para que possamos injetar paixões e desejos. O mundo é neon.

As remanescências de "Dias selvagens" e "Amor à flor da pele", portanto, vêm guiadas por esse sentimento. Pois se o mundo está em constante movimento, só é possível conferir sentido aos acontecimentos uma vez que eles se tornam passado. E o fruto disso é uma grande celebração (com tons de melancolia, só que uma melancolia que é mais leve que o ar) da habilidade humana de completar internamente lacunas deixadas pela vida externa. Se muitos encaram os filmes de Wong Kar-wai como o triunfo da impossibilidade do amor, é por se endereçarem ao amor com olhos por demais práticos. Quando Chow Mo Wan (Tony Leung) se lembra da mulher que mais amou na vida, é justamente um amor que nunca foi consumado. Mas ao chamá-lo de amor, o personagem de Tony Leung o encara como sentimento, que, como tal, é consumado no sujeito, nunca no outro. A fabulação em "2046" não vem chorar cinzas, mas sim promover, no presente, encontros que não se deram em presentes passados.

Nesse sentido, Chow Mo Wan é o alter ego estético do diretor. O texto de ficção científica que ele cria com lembranças de sua própria vida é análogo ao quê o diretor faz com seus personagens (e a personagem herda, do diretor, a capacidade de dobrar todo e qualquer gênero a uma visão de mundo - antes os filmes de ação, a comédia, o melodrama, o wuxia, e agora a ficção científica). Assim como ele mistura futuro com passado para conferir sentido ao presente (presente que é muito efêmero, pois a compreensão só é possível em retrocesso), Wong Kar-wai costura os cotovelos de seus personagens uns nos outros, com linhas frágeis o bastante para se partirem com facilidade, mas grossas o suficiente para deixarem marcas que nunca cicatrizam. E ter contato com obras de arte que refletem tamanha fé do realizador em seu próprio estatuto é, no mínimo, acachapante.

Não à toa, a carreira de WKW é idêntica à sua obra (e por isso "2046" é síntese estética de uma percepção prática). Pois sua crença no acaso e na ficção como organizadora (nunca censora, sempre complementar - são olhos que pertencem a um outro tempo) desse acaso é tão grande que seu método de produção (realizar metade de um díptico que, quinze anos depois, se tornaria a primeira parte de sua mais célebre trilogia - reorganizando o passado, portanto) nos parece o único coerente. Porque assim como Wong Kar-wai não poderia criar de outra maneira que não com o acaso, sua obra toda depende que significado e significante se tornem uma só coisa. Por isso o comentário, tão comum, de que ele seria responsável por alguns dos melhores enquadramentos do cinema contemporâneo é redutor (embora certamente justo); pois significar, para seus quadros, é verbo intransitivo. Suas imagens não funcionam para ou a partir de sua narrativa, suas imagens são a sua narrativa. Não se trata, portanto, de um cinema calcado em roteiro, mas também não é um cinema que exclui o roteiro para resgatar a pureza das imagens: suas imagens são seu roteiro, e seus roteiros vêm de suas imagens. O resultado (de precisão e riscos impressionantes nesse último filme) atinge um equilíbrio deslumbrante (pleonástico, de fato) entre a complexidade do discurso artístico e o diálogo com o público.

Muito desse equilíbrio parece vir de uma crença anterior que é essencial: não existe cineasta antes do artista. É por isso que suas obras-de-arte são a confluência de todas as outras artes (confluência essa que está na gênese do cinema). A arquitetura sempre presente, mas levada a novo patamar nos cenários futuristas do livro dentro do filme (com a parceria inestimável de William Chang, diretor de arte e montador de confiança de Kar-wai); o texto precioso que ele espalha na boca de seus personagens e em suas particularíssimas cartelas; o design (sua primeira formação acadêmica) de seus enquadramentos e da paleta de Christopher Doyle (que rompe uma parceria de longa data com o diretor ao lançamento do "2046"); a plasticidade de rostos e corpos que circulam pelo outro lado do mundo, mas que já nos são tão íntimos por conta de seus filmes; e a música, aqui ressucitando Nat King Cole e a onipresente "Perfídia", que reflete (tratando-se de Kar-wai, em espelho enferrujado) um mundo que não acredita em fronteiras, pois coisas tão importantes como a arte e o ser (e tudo que surge do encontro dessas duas coisas; encontro de dois seres; amor, afinal) não podem ser subjugados a meras formalidades geográficas. E todos esses elementos refletem uma única visão, porque essa visão não é a de um cineasta, mas a de um artista. É uma posição sobre o mundo, não sobre um meio.

"2046" é mais uma obra-prima de um artista que quase só lançou obras-primas. Filmes que - como seus próprios personagens - se esbarram e se separam ao sabor da lembrança do espectador, e cujos planos também são potência, esperando uma dose diferente de significado e afeto. Os rostos que se misturam, os nomes que reaparecem, os adereços que trocam de corpos, tudo isso é a reticência que o diretor se permite colocar em uma obra onde não cabem pontos finais. Pois somos como seus personagens, e Wong Kar-wai tem plena consciência que seus filmes também se tornam memórias a serem reorganizadas e completadas pelos criadores que, diariamente, somos.

sábado, fevereiro 03, 2007

Melhores de 2006


02 - O sabor da melancia - Tsai Ming-liang

Nos primeiros planos de "O sabor da melancia" (Tian bian yi duo yun), Hsiao-Kang (protagonizado por Lee Kang-sheng - rosto costumeiro dos filmes de Tsai Ming-liang) está deitado na cama com uma mulher que traja metade (a de cima) de uma fantasia de enfermeira. A dinâmica do plano mimetiza preliminares sexuais, mas, entre as pernas, a mulher se esconde atrás de uma melancia partida ao meio. A cena prosseguiria como uma típica encenação sexual cinematográfica, não fosse a melancia que media (e impede) o contato do casal. Alguns minutos depois, uma outra garota (Shiang-chyi - nome tanto da atriz quanto da personagem) abraça, com as pernas (aperna?!?), uma almofada em formato de flor enquanto assiste televisão. O telejornal dá as regras do jogo: Taiwan estaria passando por um enorme período de seca, e a falta de água teria feito o consumo de melancia aumentar exponencialmente. Como a oferta da fruta era enorme, o preço havia caído muito, e ela acabara se tornando um novo signo de comunicação entre as pessoas: quando os jovens mais tímidos queriam se aproximar de uma garota, davam uma melancia de presente para indicar o desejo de intimidade.

Se as regras do jogo são dadas, é preciso aceitá-las para seguir viagem. Ao declarar novos símbolos como guias do trajeto (a água que está em falta, sendo substituída pela melancia - água que se tornou carne - não só para matar a sede, mas também para que as pessoas possam se relacionar - como na cena de sexo que abre o filme), Tsai Ming-liang pede que abramos mão de todas as convenções que carregamos conosco para a sala de cinema. Os signos serão redefinidos no decorrer da obra, portanto é mister abandonar códigos de qualquer mundo onde a água não falte, e a melancia não signifique mais que - ora - uma melancia. A oposição entre água - uma essência que estaria em falta - e melancia - fruto que trás água em si, mas que não substitui a água em toda a sua plenitude - é a chave para começar a se compreender mais esse enigma criado pelo artista de origem malaia, radicado em Taiwan. "O sabor da melancia" é um grande jogo de tensões. Líquido e sólido. Essência e carne. Origem e derivação. Música e silêncio. Drama e comédia. Reta e círculo. Espírito e corpo.

O filme se concentra em dois personagens principais (retirados, a propósito, de filmes anteriores do diretor). Hsiao-Kang é um ex-vendedor de rua que se tornara ator de filmes pornográficos; Shiang-chyi mora sozinha no mesmo prédio em que o último filme de Hsiao-Kang está sendo produzido, e passa boa parte do tempo estocando garrafas d’água e tentando abrir uma mala cuja chave foi acidentalmente prensada no asfalto da rua em frente ao prédio. A geografia de Tsai, porém, é a do isolamento. A plasticidade de seus corredores e passarelas - sempre filmados com grande-angular - separa as pessoas, o que só faz destacar os momentos onde as personagens se encontram. E é quando Shiang-chyi reencontra Hsiao-Kang, e passa a carregar para todo lado uma melancia como se fosse um bebê, que começamos a entender o filme de Tsai Ming-liang. A pornografia, em "O sabor da melancia", não é gratuita. Está lá como contraponto (como melancia) à relação que começará a ser desenvolvida por Hsiao-Kang e Shiang-chyi. O sexo não é visto de maneira depreciativa; apenas anda sendo tomado por algo que não é (ou por uma parte do todo). É necessário restaurar o contato, a proximidade, pois as pessoas se tocam sem realmente encostarem umas nas outras. E é exatamente nessa relação que o filme floresce.

Apesar de o simbolismo causar uma curiosa estranheza visual (ainda mais por estar reconfigurando signos que têm um significado no mundo fora da tela), duas pessoas que se apaixonam, se apaixonam sempre da mesma maneira. As cenas do casal (tomadas por uma leveza que não encontramos, sequer, nas mais convencionais comédias românticas hollywoodianas - sem falar nos encantadores números musicais) são infiltradas por esses objetos que, uma vez assumidos como signos, ganham uma expressividade acachapante. Cenas como a que Shiang-chyi serve suco de melancia (melancia em formato líquido - corpo travestido de espírito - sexo que tem aparência de amor) a Hsiao-Kang, ou a que ele consegue tirar a chave dela do asfalto (fazendo jorrar água do buraco deixado pela chave no pavimento - chave de uma mala que ela trancou e não mais tem a ferramenta para abrir) se tornam tão mais belas por sua visualidade simbólica. Em todos os momentos onde o sexo é explícito (em um deles o casal de atores faz uma cena no banheiro, e um contra-regra joga água suja sobre os atores para fingir que o chuveiro funciona - simulando também o amor, mas um amor que não é real, não é cristalino, um simulacro), os corpos aparecem frios, desanimados. A sexualidade não é questão de visualidade, mas sim de intenção. As longas cenas de sexo nunca trazem o calor do copo de suco oferecido por Shiang-chyi (que Hsiao-Kang joga pela janela, pois, como ator pornô, não agüenta mais ter melancia como se fosse água), e essa capacidade de reorganizar o mundo é o que mais impressiona em "O sabor da melancia".

Essa reorganização, porém, demanda um pacto. O filme de Ming-liang conta com uma entrega voluntária do espectador, e isso explica o número alto de pessoas que não conseguem chegar ao final do filme (mesmo ele não tendo sequer duas horas). Se Ming-liang chama o amor de água e a paixão de melancia, é porque andamos fazendo uma bagunça enorme com termos tão abstratos. É preciso torná-los concretos para resgatar seus significados. A radical reconfiguração proposta pelo diretor chega ao ápice na cena final do filme. Pois só quando despimos as essências de todas as suas aparências uma cena de quase necrofilia (que chega perto de ser fisicamente insuportável de se assistir) pode guardar o mais puro final feliz que passou pelas telas da cidade em 2006. O encontro final de Hsiao-Kang com Shiang-chyi acaba sendo o primeiro encontro de fato do casal: o amor rompe as limitações físicas (sensação criada pelo quase split-screen da janela na parede do quarto), as convenções impostas pela aparência, e Shiang-chyi - a garota que guardava dúzias de garrafa d’água na geladeira, mas continuava servindo suco de melancia a seu amado - deixa escorrer uma lágrima. A água revela sua fonte, e, no meio disso tudo, aprendemos a amar novamente.


sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Melhores de 2006


03 - O homem urso - Werner Herzog

"Cada um projeta no vulcão a quantidade de raiva, de cumplicidade com a destruição, de ansiedade quanto à capacidade de sentir que já existe na sua cabeça".

"Amar realmente alguma coisa é desejar morrer dela.
Ou viver apenas nela, o que é a mesma coisa. Subir e nunca precisar descer".
(citações de "O amante do vulcão", de Susan Sontag)

Durante 13 anos, Timothy Treadwell passou seus verões isolado no território dos ursos pardos, no Alasca. O intermitente convívio chegaria ao fim em 2003, ano em que Treadwell e sua namorada (a também ativista, Amie Huguenard) foram devorados por um dos ursos locais. Até o momento de sua morte, Treadwell registrara em vídeo mais de 100 horas dos cinco anos finais dessa relação, afim de tornar conhecido um mundo que estava sendo, aos poucos, extinto.

É desse material bruto que Werner Herzog constrói a maior parte de seu "O homem urso" (Grizzly Man). O filme começa, porém, com uma visita de Herzog - ao lado do piloto de avião responsável por transportar Treadwell em suas temporadas no Alasca - ao acampamento onde o ativista e sua namorada teriam sido atacados. Embora Treadwell tenha sempre feito suas expedições sozinho, ele morre justamente no ano em que está acompanhado - "É natural que os amantes da música gostem de colaborar, de tocar juntos. Extremamente não natural colecionar em conjunto. Cada um quer possuir (e ser possuído) sozinho". Enquanto a exuberante paisagem contrasta com as descrições da cena pelo piloto, um onipresente som de insetos toma a banda sonora. É dessa natureza incômoda e impiedosa que Herzog tratará em seu "O homem urso". Uma natureza diferente daquela matizada pelo olhar de Treadwell. Uma natureza que se devora em crueldade - como diz o próprio diretor, na narração em que ele se coloca a respeito das imagens - e que não parece trazer em si um sinal sequer da compaixão não-humana que Treadwell enxergava nos olhos de seus amigos ursos, impressão de que "Amar alguém é tolerar imperfeições que nunca desculparíamos em nós mesmos".

Começamos a conhecer Treadwell pelos olhares alheios. Assim como ouve seus amigos e familiares, Herzog dá voz aos homens que mataram o urso assassino (em um dos mais atordoantes dos vários paradoxos de toda a situação - a morte do defensor dos ursos acaba provocando o assassinato de dois de seus protegidos) e ao médico que tirara os restos mortais do casal de dentro do estômago do animal. O choque das opiniões divergentes dos que o amavam e dos que o chamavam de louco - ""Louco por quadros", um amigo da juventude o chamava - a natureza de um sendo para outro a idéia da loucura; do desejo imoderado" - é lacuna que Herzog nunca tentará preencher: seu Treadwell não é louco nem deus, é um olhar sobre o mundo. A oposição dos discursos parece apenas indicar os ângulos possíveis de se deter sobre uma paixão; paixão essa que nunca parece poder ser compreendida por qualquer pessoa que não seu próprio portador.

Na primeira metade do filme, a paixão de Treadwell se mostra como coleção. Suas imagens dos ursos impressionam por uma proximidade física destemida - "Nunca se aproximava da cratera sem apreensão - em parte medo do perigo, em parte medo da decepção" - mas determinam um recorte que não sai da superfície física do foco de sua paixão. As imagens "oficiais" de Treadwell exibindo seu objeto de fascínio não revelam a natureza de seu amor (escondida pelo ativista, mas mais tarde reconstruída por Herzog), mas sim o foco momentâneo de uma coleção mais ampla. "As coleções unem. As coleções isolam. Elas unem os que amam a mesma coisa (Mas ninguém ama como eu; o bastante). Elas isolam dos que não compartilham essa paixão (Infelizmente, quase todos). Então vou tentar não falar sobre o que mais me interessa. Falarei sobre aquilo que interessa a você. Mas isso me fará lembrar, muitas vezes, daquilo que não posso compartilhar com você. Ah, escute. Pois então você não vê? Não vê como é bela?". É fugindo da inebriante paisagem do Alasca e reconstruindo o passado de seu personagem que Herzog busca compreender uma condição, mais abrangente, onde os ursos - a coleção - são apenas um detalhe.

Treadwell nascera em uma família de classe média norte americana bastante convencional. Muito antes de se apaixonar pelos ursos, fora apaixonado por esportes. Depois, tentara construir uma carreira de ator (fazendo um teste para o papel que viria a ser de Woddy Harrelson, na série "Cheers"). Com a ruína da crença em uma carreira artística, apaixonara-se pelo álcool e pelas drogas. Só aí vieram os ursos. "Não existe colecionador monógamo. A vista é um sentido promíscuo. O ávido olhar sempre quer mais". A parte do material filmado por Treadwell que parece mais interessar a Herzog não é dedicada aos ursos; são os momentos em que o ativista usa a câmera como confidente, e fragmentos desse passado começam a surgir como aparições de uma vida não de todo abandonada. A paixão que Treadwell oficializa diante da câmera parece encantada e pró-ativa, mas esconde seus momentos de mais intensa manifestação."Ele apenas relata; e, ao relatar, o caráter odioso da coisa vai diminuindo e se torna uma narrativa, nada que perturbe demais. (...) Já que ele tem apenas palavras para contar, pode então explicar (...), pode condescender, pode ironizar. Pode ter uma opinião (não consegue descrever sem tomar partido sobre o que está descrevendo), e essa opinião já terá se mostrado superior aos fatos dos sentidos, já os terá descorado, desodorizado, abafado seu vozerio". Uma coleção, de fato.

O que Herzog busca é o sentimento por trás do objeto. A fonte. São as palavras que saem pelas beiradas quando Treadwell parece menos vigilante. São os impropérios, as inseguranças, as frustrações, os motivos. Os ursos parecem apenas estar no lugar certo, na hora certa. Mas não parecem nada de especial. O que parece especial - e admirável - é o sentimento que conduz até os ursos. É o que diferencia um colecionador de um amante. "O envolvimento do amante com os objetos é o oposto do envolvimento do colecionador, cuja estratégia consiste numa ardorosa auto-anulação. Não olhe para mim, diz o colecionador. Eu não sou nada. Olhe o que eu tenho. Não é belo, não são belos? O mundo do colecionador fala da existência esmagadoramente grande de outros mundos, energias, esferas, épocas diversas daquela em que ele vive. A coleção aniquila a pequena fatia de existência histórica do colecionador. A relação do amante com os objetos aniquila tudo exceto o mundo dos amantes. Este mundo. Meu mundo. Minha beleza, minha glória, minha fama". São esses dois personagens que convivem dentro de um mesmo Treadwell. O personagem que ele gostava de encarnar - aquele que queria, e por fim consegue, virar urso, desaparecer, fundir-se com seu objeto amado - e o outro que teima em reaparecer aqui e acolá, sempre falando em voz alta, com gestos maiores que o mundo, e que não hesita em sentar sobre a mesa bem no meio do jantar.

Mas quando exatamente as duas coisas se misturam? Quando o colecionador e o amante se tornam um só Treadwell? Quando o homem se torna urso? Em um polêmico momento do filme, Werner Herzog se põe frente à câmera, ao lado de uma amiga do casal de ativistas. Essa tal amiga dá a Herzog uma fita que, diz ela, nunca tivera coragem de assistir. Trata-se do último registro feito por Treadwell ainda enquanto homem; registro que é apenas sonoro, pois ele não tivera tempo de tirar a tampa da lente da câmera. Herzog põe um par de fones de ouvido e ouve a gravação que o homem fizera da própria morte. Embora estivesse sendo atacado pelo urso, Treadwell apertara o REC da câmera para atestar sua própria destruição ("(...)a maioria das imagens que mostram as estranhas figuras e mutações produzidos pela atividade vulcânica contêm figuras humanas: um espetáculo exige a representação de um olhar"). Herzog ouve a fita, mas decide não incluir o conteúdo em seu filme. O que parece importante não é exatamente o que foi registrado, mas o simples fato de o registro existir. Se o colecionador exclui a si mesmo e o amante exclui a todo o resto do mundo, os dois personagens só podem se encontrar quando o colecionador se torna sua própria coleção. "Todo colecionador é também um cúmplice do ideal da destruição. Pois o próprio caráter excessivo da paixão por colecionar também faz do colecionador um homem que despreza a si mesmo. Cada paixão de colecionador contém em si a fantasia da sua própria abolição". Treadwell não se torna urso ao ser devorado por um, mas sim ao final de uma cadeia de eventos que começa quando ele registra sua própria morte. Embora a oposição assumida entre documentarista e personagem provoque em muitos a leitura do filme de Herzog como obra depreciatória, trata-se, na verdade, de uma parceria que transcende o espectador. Pois se Treadwell é autor da maior parte das imagens do filme de Herzog, é o perfil construído pelo diretor que permite que colecionador e amante se tornem um só. É Herzog quem faz de Treadwell "O homem urso".