sábado, outubro 13, 2007

Festival do Rio – Dia 14 e repescagem

DIA 14

I’m not there – Todd Haynes




Existe uma armadilha inerente a processos de reconstituição biográfica: como ordenar uma vida essencialmente caótica sem assassinar as ambigüidades? Qual estória deve ser tornada história? O que fazer quando o biografado, como qualquer pessoa, se mostra por demais contraditório para ser um personagem crível na dramaturgia mais tradicional? Não seria esse ato de criação de personagem – a partir da realidade ou buscando a realidade – o problema primeiro da ficção? O que fazer quando percebemos que a ficção parece, por motivos óbvios e absolutamente naturais, simplesmente não ser capaz de dar conta? É possível confinar a biografia de alguém a amarras narrativas sem, com isso, mutilar tudo aquilo que torna a vida daquela pessoa digna de maior interesse? Não seria todo processo biográfico necessariamente redutor? Por outro lado, não estaríamos, todos e o tempo todo, reduzindo o outro para tentar compreende-lo?

Diversos realizadores já se embrenharam na selva da vida alheia para tentar extrair dali algum sentido. Boa parte deles – “Johnny & June”, de James Mangold, vem imediatamente à cabeça – opta por ignorar os agentes complicadores para construir, a partir dessa simplificação, uma trajetória de pícaro, uma narrativa do herói clássico. Somente os heróis seriam dignos da história, então a solução é fazer de todo biografado um herói. “I’m not there”, último filme de Todd Haynes, é uma suposta biografia de Bob Dylan. Suposta porque, logo nos créditos iniciais, Haynes demarca seu terreno: baseado nas muitas vidas de Bob Dylan, diz a legenda. Ao longo de “I’m not there”, uma imagem (nunca mostrada) não me saía da cabeça: Todd Haynes faz um filme sobre uma pedra atirada em uma vidraça. Bob Dylan seria a pedra, e o filme de Haynes não seria tanto sobre a pedra, mas sobre os cacos do vidro partido.

Das muitas vidas de Bob Dylan, nenhuma delas ganha seu nome. Faz-se um filme sobre alguém que inventou seu próprio nome, seu próprio passado. “I’m not there” é, antes de qualquer coisa, um filme feito a partir de um dos mais influentes criadores de ficção do século XX (da história, diria). Em vez de absorver a realidade pela ficção – como é comum nas biografias – Haynes usa a ficção para absorver outras ficções, pois seu biografado fez de sua vida um espaço-tempo para a criação ficcional (processo semelhante, embora mais radical, ao adotado por Milos Forman em “O mundo de Andy”). Em “I’m not there”, Bob Dylan está tão presente quanto ausente: se o próprio título do filme sugere a ausência, as estórias filmadas por Haynes conferem a Dylan uma deística onipresença; quem não está em lugar algum, está, naturalmente, em todo lugar. O maravilhoso está na impossibilidade de sua apreensão, embora sua presença seja sempre sentida e reconhecida. A pedra já varou a vidraça; restam, agora, os cacos.

O primeiro plano de “I’m not there” já diz muito de sua intenção enquanto registro: em câmera subjetiva, caminhamos pelo backstage e subimos ao palco onde uma banda (e toda uma platéia) nos espera. Embora a câmera tome o ponto de vista de um dos personagens, enxergamos pelo preto e branco granulado que imediatamente remete a “Don’t look back”, documentário sobre Bob Dylan realizado em 1967 por D.A. Pennebaker. Como se aproximar de Bob Dylan sem a granulação, sem o preto e branco? Como pensar seu olhar sobre o mundo sem passar pelo olhar que o mundo tem sobre ele? Como alcançar o artista driblando os filtros auto-impostos pela sua própria imagem ao longo dos anos? Como fazer uma biografia a partir de imagens que constituirão uma nova imagem? Como criar fantasmas a partir de fantasmas? Se “I’m not there” é um filme sobre as muitas vidas de Bob Dylan, é também um filme sobre as impossibilidades (e, logo, sobre as possibilidades) da imagem cinematográfica em si. A preocupação que já aflorava em “À prova de morte”, “Planeta Terror” e na imagem-fantasma de “A floresta dos lamentos” toma também o filme de Todd Haynes: o cinema trabalha, sobretudo, com um imaginário imagético criado a partir de impressões físicas (inevitável lembrar de toda a teoria de percepção cinematográfica de Arnheim), e é preciso trabalhar a partir dessas questões. Se seu filme nasce a partir da impossibilidade de um certo registro, é preciso descobrir qual registro pode ser feito. É preciso – como Carl Dreyer ou John Ford – aprender a filmar a onipresença.

“I’m not there” se preocupa, principalmente, com os efeitos da pedrada chamada Bob Dylan. Temos ali alguns personagens mais próximos do Dylan que conhecemos – Jack Rollins (Christian Bale) e Jude Quinn (Cate Blanchett) revivem momentos famosos da vida do artista, enquanto Robbie (Heath Ledger) é um ator que interpreta Jack Rollins no cinema. A essa encruzilhada de camadas narrativas (o ator que interpreta um ator que interpreta um personagem que interpreta Bob Dylan), é somado um dos mais belos processos de decomposição artística já feitos pelo cinema: paralelamente às narrativas dos que representam Bob Dylan, correm as estórias de Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) – um garoto negro de talento musical nato, que canta o sofrimento da Depressão enquanto vai visitar seu ídolo, o Woody Guthrie que conhecemos, no hospital (como fez Dylan) – Arthur Rimbaud (Ben Whishaw) - poeta marginal que tem seu projeto artístico questionado em uma espécie de interrogatório policial - e Billy The Kid (Richard Gere), uma espécie de yojimbo, de estranho sem nome, personagem de western (referência ao filme de Peckinpah com trilha composta por Dylan) que troca de nome à medida que muda de cidade. Esses três personagens não só sintetizam valores que a narrativa atribui a Bob Dylan, mas o fatiam filosoficamente. A multiplicidade do artista é mais que respeitada; é encarada enquanto tal, e nisso torna-se o centro de interesse de Todd Haynes.

Tenho para mim que o primeiro passo de todo artista consiste em aprender a ser um bom ladrão. Como no essencial “Pickpocket”, de Robert Bresson, existe nesse primeiro estágio um misto de coragem e encantamento nos olhos do ladrão que observa seu objeto de desejo não para possuí-lo, somente, mas para dominar o trajeto até ele. O artista olha para as obras que admira com a intenção de decifra-la, de reproduzi-la, de conquista-la, de torna-la sua. Com a intenção de aprender os caminhos que o levam ao arrebatamento. Compõe músicas roubando frases de seus cantores favoritos, escreve um romance colando parágrafos de outros autores, faz um filme mimetizando seqüências inteiras na esperança de apreender o indizível, a ausente onipresença que percebia nas obras que sempre lhe encantaram. Em dado momento de “I’m not there”, uma senhora aconselha o jovem Woody Guthrie a abandonar o universo de suas referências para cantar sobre as questões do seu próprio tempo. É o momento em que o jovem ladrão percebe que os mesmos caminhos não necessariamente levam aos mesmos lugares, e compreende o roubo como um primeiro passo no exercício de abstração que é alcançar a mágica a partir do nada, a partir de um lugar que é só seu. Todd Haynes, portanto, não filma o Dylan linear, físico, o corpo que apodrece ao longo do tempo (e o fato de “I’m not there” começar com a morte do cantor é evidência clara disso). Filma o artista, não o corpo. Filma Dylan decomposto em idéias, idéias de tempo algum que seguem transformando o próprio tempo. Pois quem não canta sobre tempo algum, acaba cantando sobre todo o tempo.

REPESCAGEM

Não toque no machado (Ne touchez pas la hache) - Jacques Rivette



Dos filmes que ficaram para a repescagem, o único que realmente me pareceu essencial (dado o cansaço pelas duas semanas de festival pós-trabalho) foi “Não toque no machado”, filme de Jacques Rivette que só chegou nos últimos dias, e acabou tendo apenas uma sessão oficial (à tarde – para mim, inacessível) programada. Assim como falei de Chabrol, conheço pouco da filmografia de Rivette; gosto muito, porém, do que vi. Nenhuma surpresa, portanto, que sua adaptação do texto de Honoré de Balzac viesse fechar o festival em alta nota.

“Não toque no machado” conta a estória de Armand de Montriveau (Guillaume Depardieu), um general francês que comanda uma missão de restauração do Rei Ferdinando VII ao trono. Esse pano de fundo histórico, porém, esconde uma batalha pessoal de Armand: reencontrar Thérèse (Jeanne Balibar), novo nome adotado por Antoinette de Navarreins, uma antiga amante que, logo descobrimos, tornara-se freira em um convento espanhol. O mal-sucedido reencontro – que acontece, mas é logo interrompido pela própria freira – é uma primeira evidência do jogo de dominação que o longo flashback do filme revelará ter guiado o relacionamento de Armand e Antoinette.

O que parece interessar Rivette, porém, é como os protagonistas lidam com as constantes inversões da personalidade dominante do relacionamento. Em um primeiro encontro, Antoinette se aproxima de Armand, e demanda que ele lhe faça visitas noturnas diárias. O interesse dela, porém, é desviado por sua posição social (ela é esposa de um duque), e aquilo que começa como uma clara manifestação de desejo se torna, logo, terreno para um jogo de personalidade e posições sociais. Uma vez que Armand decide recuperar sua dignidade e não mais cortejar Antoinette, é vez de ela se sentir perdida sem a retribuição de seu interesse e de, então, tentar desesperadamente reconquistar o interesse de Armand.

Observando amantes que se matam está a elegantíssima câmera de Rivette, que nos conduz pelo contrastado ambiente de exuberância (com luzes altas demais para não denotarem a construção cênica) e baixeza dos jogos sociais interpretados por dois atores impressionantes (com duplo sentido). É com esse interesse distante e com alguma ironia (as cartelas; toque de gênio que fazem de “Não toque o machado” muito mais que um simples melodrama de época – coisa que, para não sair do festival, pode ser dita de “Uma velha amante”) que Rivette realiza mais um belo filme, e sobe para as primeiras posições de minha lista de cineastas a estudar mais cuidadosamente.

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