segunda-feira, janeiro 07, 2008

Melhores de 2007

09 – Possuídos (Bug) – William Friedkin



Sob várias óticas, Possuídos se colocou como o filme-questão internacional mais interessante de 2007 (pois não há dúvida que, entre os nossos, o trono fica para Tropa de Elite). Em primeiro lugar por trazer o nome de William Friedkin – tão oscarizado à época de Operação França e O Exorcista – de volta às pautas (questão muito bem problematizada por Paulo Santos Lima em texto publicado na Cinética). Em segundo, por ter sido apontado por boa parte da crítica como um filme-bifurcação: se, por um lado, Friedkin nos conduz por terreno estético bastante extremo (e extremo me parece o adjetivo mais acertado a acompanhar Possuídos), por outro ele usa esse radicalismo em prol de um discurso político que se colocaria como de extrema direita.

Centrado na relação que se estabelece entre uma mulher solitária (Agnes, a personagem que deveria marcar a carreira de Ashley Judd) que se esconde do violento ex-marido (Harry Connick Jr) num suado quarto de hotel em Oklahoma, e um veterano de guerra de voz mansa e olhos perturbados (Peter, em atuação antológica de Michael Shannon), o filme de Friedkin traz o estado de um mundo com relações políticas em franca ebulição para dentro de casa. A ameaça representada pelo ex-marido logo é substituída – em um exercício de impressionante interiorização do pôr-em-cena – pela paranóia do ex-soldado: ele acredita carregar um chip de monitoração implantado em seu corpo pelo governo, e se vê perseguido por microscópicos insetos (que, a despeito de feridas bem visíveis, a câmera de Friedkin nunca consegue enxergar) que castigam sua pele e acordam seu sono.

Se o filme pode ser lido como uma ironia às teorias conspiratórias que tomam qualquer sociedade em crise, Friedkin lança mão de elementos perturbadores suficientes para nublar as interpretações fáceis. Pois como em qualquer kammerspiel¸ os personagens de Possuídos logo ganham tintas alegóricas: quando uma mãe (figura tradicionalmente associada à pátria em narrativas políticas) que perdeu o filho passa a temer a violência do marido conservador (o homem como gestor fracassado, como responsável pela ordem que não consegue estabelecer), e imediatamente abraça a primeira oportunidade de entrega à loucura que lhe aparece, é difícil não estabelecer paralelos com o terror doméstico instaurado pelos rumos agressivamente conservadores da política americana recente. A paranóia não é, de fato, questionada, mas sim questionada em sua implantação: é preciso criar um terreno bastante fértil para que ela se manifeste. Antes de questionar as teorias conspiratórias, Friedkin pensa o tipo de ambiente que as faz possíveis. Se Possuídos é fruto de um artista de inclinação destra, o filme funciona mais como um alerta à direita efetiva do que como um discurso propriamente conservador.

O que mais impressiona, porém, são as formas de representação que William Friedkin escolhe para sensações tão abstratas. A ameaça da paranóia é feita física por meio de um extraordinário plano aéreo, pelo olho de um helicóptero que se aproxima do hotel sem nunca ser justificado diegeticamente (a ameaça que vem de fora). Uma vez que a loucura encontre condições para se desenvolver (momento preciosamente marcado com o arrancar das telhas do hotel pelo vento gerado pelas hélices do helicóptero – o olho que se torna imagem), Friedkin empurra seus atores em uma vertiginosa ladeira emocional, colocando o espectador em um delicado limite entre acompanhar a trama e assistir a exercícios de entrega extrema na interpretação.

Sim, pois se a primeira metade de Possuídos constrói o ambiente propício à loucura, sua segunda metade aposta em uma doação que por vezes beira à abstração: o quarto perde suas feições, suas paredes são cobertas do prateado de papéis-adesivos que atraem mosquitos, e o calor do tungstênio é substituído pelo azul brilhante das lâmpadas repelentes. Saem Agnes e Peter, entram Ashley Judd e Michael Shannon, de fato, no foco de atenção. Tudo isso em nome de uma construção climática que, por vezes, se aproxima das intenções de Claire Denis em Desejo e Obsessão. Em situação de tamanha incerteza, o lar pode se tornar cenário de ficção científica, e o cinema de gênero pode romper telhados em direção aos extremos do corpo. Para aqueles dispostos a rodar ladeira abaixo com o filme, Friedkin fez uma das experiências cinematográficas mais intensas de 2007.

* * *

Sombras de Goya, o mais novo filme de Milos Forman, ganhou crítica minha na Cinética. Não deixem de conferir o filme e o texto.

3 comentários:

LFGallego disse...

Muito bom seu texto (e olhar) sobre "Goya's Ghosts" no cinética.
assinado: Luiz Fernando Gallego

Pedro Simão disse...

Quando eu vi o filme não associei o filme muito a política não. Me pareceu uma extravagância típica de ficção-científica norte-americana. Mas é bem realidade, afinal nanotecnologia está aí.

Fábio Andrade disse...

luiz, obrigadíssimo pelo comentário. fico feliz com o retorno.

pedro, a tecnologia (e, principalmente, uma certa fobia dela) é uma outra questão essencial no "possuídos", que eu não abordei no texto mas que acho muito presente no filme.