quinta-feira, janeiro 03, 2008

Melhores de 2007

Então cá estou eu novamente, catando miúdos de memória para juntar minha muito anunciada lista de melhores do ano. Mais uma vez, a lista é feita tendo como base os lançamentos comerciais em salas do Rio de Janeiro (não valem festivais, pré-estréias, mostras, etc). Mais uma outra vez, não vi alguns filmes que andam aparecendo em várias listas de gente confiável por aí (Os Anjos Exterminadores e Fora de Jogo, por exemplo). Mais uma outríssima vez, consegui perder um lançamento de um diretor que gosto muito (Cartas de Iwo-Jima, de Clint Eastwood, embora seu A Conquista da Honra não apareça por aqui por não me parecer, de fato, bom o suficiente). Esse ano, porém, consegui um feito inédito: fechei o ano sem ver o filme mais comentado do país (Tropa de Elite, de José Padilha). Nenhuma antipatia pelo diretor do excelente Ônibus 174; apenas um certo fastio em relação a todo o disse-me-disse que me fez adiar, constantemente, a ida ao cinema. Preferi deixar pra ver com a cabeça em um lugar mais justo. Ficam de fora um ou outro filme de bons diretores que mostraram fôlego reduzido (O Sobrevivente, Viagem a Darjeeling) e, por questões numéricas, outros que marcaram algumas das sessões mais agradáveis do ano: Superbad – É hoje; Planeta Terror; Zodíaco; Estamos Bem Mesmo Sem Você; Antes Só do que Mal Casado; Mutum; Lady Chatterley; Direito de Família; Ratatouille; Os Simpsons – O filme; Sombras de Goya; Borat – todos filmes que acabariam entrando em uma lista proporcionalmente maior. Dito isso, começo pelo décimo. A idéia é tentar trazer um novo filme a cada dia, mas sabemos que eu não serei homem de manter essa periodicidade. Fiquem, portanto, com a fração de homem que eu conseguir ser. E que venham, em seqüência, os discos.

Filmes

10 – Jogo de Cena – Eduardo Coutinho


Muito se falou de Jogo de Cena como uma virada de estratégia supostamente necessária à carreira de Eduardo Coutinho. Embora ache a necessidade discutível (mesmo não advogando a Peões ou O fim e o princípio um lugar paralelo ao de Edifício Máster – filme onde muitas das estratégias do diretor eram levadas ao paroxismo), colocar Jogo de Cena como filme de exceção me parece, sim, se deixar levar pelo jogo (de espelhos? De fumaça? De máscaras?) que o filme permite existir. Não significa, portanto, que a aparente mudança traga uma nova postura, de fato, de Coutinho em sua consistentíssima obra. Toda a resituação proposta pelo realizador distrai o espectador naquilo que é apenas uma mudança de dispositivo: se Coutinho vem ouvindo personagens filme após filme, é exatamente isso que ele seguirá fazendo em Jogo de Cena. O que muda são as personagens, a maneira de elas falarem, e o recorte em que estão circunscritas. Mas não seria essa mudança a única constância na filmografia recente de Eduardo Coutinho?

Jogo de Cena começa em caminho que todo filme de Coutinho eventualmente pisará: as regras do jogo. Aqui, um anúncio de jornal convida mulheres interessadas em contar suas histórias de vida. Logo em seu segundo depoimento, as cadeiras de teatro que fazem fundo de cenário se justificam com um corte: a imagem salta do rosto que a conta para continuar no da atriz Andréa Beltrão. A história, porém, permanece. Ao fim do depoimento, ela fala da experiência de recontar aquela história, de suas dificuldades e impressões ao recriar a personagem que a inspira. Mas algo sai dos eixos. Sai dos eixos porque, contrastando com a tranqüilidade da mãe que conta a perda do filho, Andréa Beltrão não consegue passar pela história sem se render às lágrimas. Lágrimas da atriz ou da personagem? Ela diz serem delas, mas aos poucos tudo que se diz em Jogo de Cena passa a ganhar uma mesma dimensão. Em cortes de rostos desconhecidos para atrizes populares, o jogo (de encaixe?) proposto por Coutinho logo se descola da adivinhação e se aproxima da auto-exposição completa. Pois uma vez que atrizes e personagens não são mais passíveis de distinção, o que sobra é a matéria-prima básica de onde Coutinho sempre moldou seus filmes: a palavra.

Nesse sentido, Jogo de Cena talvez só faça expor mais abertamente aquilo que sempre foi o centro dos documentários de Eduardo Coutinho, e o jogo de adivinhação deixa de fazer sentido, pois vai contra uma questão essencial para o diretor: não existem mentiras em sua obra, pois ela não se interessa por verdades. A verdade, para Coutinho, não é questão factual: é fruto de comprometimento. As atrizes de Jogo de Cena logo se revelam idênticas a quaisquer personagens de sua obra passada: são pessoas lidando com a expectativa de uma câmera. Alguns desses momentos podem parecer mais simpáticos (acho toda a presença de Andréa Beltrão de uma doçura comovente), enquanto outros talvez despertem certa desconfiança (as maneiras como Marília Pêra e Fernanda Torres parecem se esforçar para dar a Coutinho tudo que elas acreditam que ele espera receber me faz franzir vários cenhos). Ainda assim, a construção de Jogo de Cena é tão escancarada que tudo se torna uma questão para filme: se uma atriz se oferece de maneira mais ou menos óbvia, isso acrescenta uma nova camada de relação entre as expectativas daquelas mulheres (é isso que, mais ou menos essencialmente, todas elas são) e a câmera que as capta em representação. No cinema de Coutinho toda e qualquer fala é, sempre, uma representação.

Por isso não há diferença entre a dificuldade de Fernanda Torres em entrar no papel e o desejo da médica que retorna para um novo depoimento, por ter acreditado que sua fala anterior havia ficado pesada demais. Por isso a história que se repete com dois rostos diferentes (mais igualmente anônimos) não gera interrogações de veracidade, mas sim interesse por duas interpretações distintamente verdadeiras. E se somos tomados por estranhamento ao ouvir Coutinho fazer uma mesma pergunta duas vezes, aprendemos que a pureza (adjetivo que, usado de forma leviana, tantas vezes reduziu seu cinema) da estrutura documental do diretor é uma questão que deve, sempre, ser repensada pelo espectador.

Em Jogo de Cena, Eduardo Coutinho expõe as regras do jogo não só de seu filme, mas da própria relação com quem consome (e, mais do que nunca, completa) seu trabalho. Pois em uma obra onde as expectativas sobre sua própria feitura sempre foram centro de interesse (o que são os documentários de Coutinho que não registros dos encontros que o próprio filme proporciona?), é natural que, em algum momento, o espectador fosse o convidado de honra. Somos nós os convidados a jogar com sua cena.

2 comentários:

Anônimo disse...

Quase sempre, como uma reclamação condominal, trago algumas impossibilidades de exibição nas salas juizforanas; o que, invariavelmente, levará minha assistência às posteridades. Mas Coutinho sempre é uma proposta "reconhecível" - ainda que eu confunda, constante, o nome do diretor com um antigo técnico do Flamengo [Cláudio Coutinho] -, e reconhecível digo como uma reserva de expectativa, sempre algo a ser visto.
Do que já vi, aos pedaços comentados pelos atores e diretor, o que é caro [querido] no filme é justamente as impossibilidades de representação "naturalizada", e nós, assolados pelo naturalismo de consumo das tvs, mas também na literatura, tornam o filme - que não assisti - mais um dado pra questão. Fábio disse do que fica em Coutinho, a palavra; no que me parece ali, é justamente a palavra como representada, e logo, sempre insuficiente. Mas a linguagem não fica enclausurada; é sempre potencial.

só uma coisa, Fabito: onde vc escreve "resituação", sugiro "re-situação", hifenizada. Ou você quis ganhar som de "z"?

esperando o que vem!

Anônimo disse...

O comentário, acabo de constatar, é como a fala: incorrigível. Uma vez publicada a "fala", tudo fica irreparável. Como só leio depois, vejo sempre as minhas bobagens de concordância. Mas como sempre, ficam... não pelo irreparável, mas pelo ar das respirações daquele momento.